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4.3 O DIREITO DE PETIÇÃO COMO DIREITO FUNDAMENTAL

4.3.3 Restrições ao direito de petição

sobre a petição, quer para acolhê-la, quer para desacolhê-la, com a devida motivação” (SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à constituição. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 130). A esse respeito, o Superior Tribunal de Justiça, ao decidir que a formulação de representação por supostos atos de improbidade administrativa não leva necessariamente à instauração de investigação sobre os fatos, afirmou: “O ‘direito de petição aos poderes públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder’, assegurado pelo art. 5º, XXXIV, I, da CF, tem natureza instrumental: é direito, assegurado ao cidadão, de ver recebido e examinado o pedido em tempo razoável e de ser comunicado da decisão tomada pela autoridade a quem é dirigido. Nele não está contido, todavia, o direito de ver deferido o pedido formulado” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Primeira Turma. Recurso Ordinário em Mandado de Segurança n° 16.424/DF. Recorrente: José Vigilato da Cunha Neto. Recorrido: Câmara Legislativa do Distrito Federal. Relator: Min. Teori Albino Zavascki. Brasília, 05 abr. 2005. Diário da Justiça da União, 18 abr. 2005, p. 212).

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O Supremo Tribunal Federal atualmente considera inconstitucional a exigência de depósito prévio para a interposição de recurso administrativo, fundamentando esse entendimento exatamente na gratuidade do direito de petição, bem como no direito ao contraditório e à ampla defesa: “A exigência de depósito ou arrolamento prévio de bens e direitos como condição de admissibilidade de recurso administrativo constitui obstáculo sério (e intransponível, para consideráveis parcelas da população) ao exercício do direito de petição (CF, art. 5º, XXXIV), além de caracterizar ofensa ao princípio do contraditório (CF, art. 5º, LV). A exigência de depósito ou arrolamento prévio de bens e direitos pode converter-se, na prática, em determinadas situações, em supressão do direito de recorrer, constituindo-se, assim, em nítida violação ao princípio da proporcionalidade.” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Pleno. Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 1.976/DF. Requerente: Confederação Nacional da Indústria. Requerido: Presidente da República. Relator: Min. Joaquim Barbosa. Brasília, 28 mar. 2007. Diário da Justiça da União, 18 mai. 2007, p. 64).

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A propósito, Artur Cortez Bonifácio afirma: “O direito de petição é por natureza informal, vale dizer, não está sujeito a formas ou processos específicos. Nada obstante, recomenda-se a redução a termo das petições ofertadas verbalmente, a fim de se prevenir com mais energia possíveis reparações de responsabilidades” (BONIFÁCIO, Artur Cortez. Direito de petição: garantia constitucional. São Paulo: Método, 2004. p. 86).

A Constituição de 1988 sujeita o direito de petição a restrições diretamente constitucionais, bem como a restrições implicitamente constitucionais. Não há restrições indiretamente constitucionais ao direito fundamental em questão.

A primeira restrição diretamente constitucional ao direito de petição consiste na vedação ao anonimato, prevista no artigo 5°, inciso IV, do texto constitucional. Em virtude da parte final de tal dispositivo, os pedidos dirigidos a autoridades públicas para defesa de interesses particulares ou gerais devem conter a identificação dos seus autores.

O direito de petição é uma modalidade específica da liberdade de manifestação do pensamento.373 Por isso, seria possível argumentar que entre o direito de petição e a liberdade de manifestação do pensamento haveria uma concorrência aparente de direitos fundamentais. Esse concurso de direitos fundamentais seria resolvido mediante a prevalência do direito especial. O direito fundamental especial, no caso, é o direito de petição. Assim, tal direito fundamental não poderia submeter-se a uma restrição diretamente constitucional própria da liberdade de manifestação do pensamento, como a vedação ao anonimato.

No entanto, a prevalência do direito fundamental especial em relação ao geral não ocorre sempre.374 O critério da especialidade pode ceder em consideração a razões relevantes de outra ordem. No caso, não submeter o direito de petição à vedação ao anonimato, restrição diretamente constitucional relacionada à liberdade de manifestação do pensamento, seria esvaziar significativa parcela da proibição à expressão e à informação ou comunicação de ideias por pessoas não identificadas.375 Realmente, a maior utilidade da vedação ao anonimato

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Sobre o assunto, Carlos Maximiliano aduz: “O direito de petição é o que autoriza qualquer indivíduo a dirigir aos órgãos ou agentes do poder público um escrito no qual exponha opiniões, pedidos ou queixas. É uma consequência da liberdade individual, em geral, e da de opinião, em particular” (MAXIMILIANO, Carlos. Comentários à Constituição Brasileira de 1891. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2005. p. 701).

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Tratando da concorrência de direitos fundamentais, Rodrigo Meyer Bornholdt ressalta que os direitos em concurso, em certas situações, podem, em vez de excluir-se mutuamente, aplicar-se em conjunto e adquirir um novo sentido: “Note-se ainda que, como afirmam Müller e Rühl, muitas vezes os direitos concorrentes, pela recíproca influência entre eles, e simultânea aplicabilidade, ganham novo significado. Portanto, não será sempre que um dos direitos concorrentes será afastado, a fim de que apenas um deles seja aplicável. Por fim, cabe salientar que, conforme estejam ligados sistematicamente os direitos, haverá situações que poderão aumentar ou diminuir seu âmbito normativo, bem como permitir que princípios que desfrutem apenas parcialmente de um status de direito fundamental tenham sua incidência alargada” (BORNHOLDT, Rodrigo Meyer. Métodos para resolução do conflito entre direitos fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 97).

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A compreensão da vedação ao anonimato como restrição incidente apenas sobre o direito fundamental de liberdade de manifestação do pensamento leva inclusive a que se questione a utilidade prática da proibição em referência, como ressalta Leonardo Martins: “Nada obstante, o idiotismo desta imposição, que, todavia, corresponde à vontade soberana do constituinte brasileiro, não cabendo aqui questioná-la em si (assunto para a política constitucional que se ocupa das conveniências das garantias e limites delas e não para a ciência do direito constitucional), pode-se verificar uma reduzida relevância prática: se, de um lado, a expressão anônima do pensamento tem o condão de ferir um bem jurídico, sendo relevante para o direito infraconstitucional, sobretudo para o direito penal, a expressão anônima do pensamento é irrelevante para o direito constitucional ora

se relaciona às delações de ilícitos ao poder público por meio do exercício do direito de petição. Nessa esfera é que se mostra mais relevante verificar a credibilidade dos dados e identificar o autor da representação para fins de possível responsabilização por eventuais abusos. As principais questões referentes à proibição a manifestações anônimas do pensamento têm sido discutidas exatamente quando se trata de comunicações de ilícitos ao poder público. Tem-se exigido, nessas situações, em regra, a correta identificação do responsável por tais atos.376

Na concorrência entre a liberdade de manifestação do pensamento e o direito de petição, apesar da relação de generalidade e especialidade entre ambos, não pode haver prevalência de um direito fundamental em relação ao outro. A disciplina desses direitos fundamentais deve ser aplicada em conjunto, especificamente no que tange à restrição diretamente constitucional relativa à vedação ao anonimato. Isso é uma decorrência dos princípios hermenêutico-constitucionais da força normativa da constituição e da máxima efetividade. O critério da especialidade, no particular, cede em favor da obrigatoriedade de que se confira a maior eficácia possível às normas constitucionais, particularmente à norma constitucional que proíbe a manifestação anônima do pensamento. Por isso, as petições dirigidas ao poder público no exercício do direito previsto no artigo XXXIV, alínea a, da Constituição de 1988 devem, em princípio, conter a indicação da verdadeira identidade do peticionante.377

discutido, pois, sem a designação da autoria, o direito fundamental específico nunca será atingido para além de uma apreensão do material publicado, que, em regra, já poderá ter atingido o seu alvo, o público” (MARTINS, Leonardo. Notas sobre o julgamento da ADPF 130 (“Lei de Imprensa”) e princípios de uma ordem da comunicação social compatível com a Constituição Federal. In: Revista Brasileira de Estudos Constitucionais, Belo Horizonte, a. 3, n. 10, p. 183-228, abr./jun. 2009. p. 191).

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O Supremo Tribunal Federal já chegou a decidir: “Não serve à persecução criminal notícia de prática criminosa sem identificação da autoria, consideradas a vedação constitucional do anonimato e a necessidade de haver parâmetros próprios à responsabilidade, nos campos cível e penal, de quem a implemente” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Primeira Turma. Habeas Corpus n° 84.827/TO. Paciente: José Liberato Costa Póvoa. Impetrante: Nathanael Lima Lacerda. Impetrado: Superior Tribunal de Justiça. Relator: Min Marco Aurélio. Brasília, 07 ago. 2007. Diário da Justiça da União, 23 nov. 2007, p. 79).

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Tanto os autores que adotam concepções formalistas do direito de petição como os que não sujeitam tal direito fundamental a maiores formalidades defendem a obrigatoriedade de identificação dos peticionantes, posicionando-se contrariamente ao anonimato. Tratando do direito de petição, Pinto Ferreira afirma: “As petições devem ser formuladas por escrito. A autoridade que as receber tem o direito de verificar a autenticidade de suas formas, não sendo lícitas as clandestinas ou anônimas” (FERREIRA, Pinto. Comentários à Constituição brasileira. São Paulo: Saraiva, 1989. v. 1. p. 139). Sobre o assunto, José Joaquim Gomes Canotilho e Vital Moreira afirmam: “O exercício do direito de petição não está sujeito a formas ou processos específicos, tendo caráter essencialmente informal (cfr. L n° 43/90, art. 9°). Apesar disso, há de reputar-se justificado que, pelo menos para certos efeitos, se exija a forma escrita (que pode ser por via postal, telégrafo, telex, telefax, email) e a identificação do peticionante” (CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa anotada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. v. 1. p. 695). Bodo Pieroth e Bernhard Schlink sustentam que “os pedidos anónimos não são petições” (PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos fundamentais: direito estadual II. Lisboa: Universidade Lusíada, 2008. p. 333). No plano internacional,

Os artigos 137, inciso II, e 138 da Constituição de 1988, que tratam da decretação do estado de sítio, estabelecem a segunda restrição diretamente constitucional ao direito de petição. De acordo com tais dispositivos, quando o estado de sítio for decretado por guerra ou resposta armada a agressão estrangeira, poderão ser suspensas quaisquer garantias constitucionais, inclusive o direito de petição.

As restrições implicitamente constitucionais ao direito de petição decorrem da obrigatoriedade de consideração de outros direitos fundamentais, assim como de bens, interesses ou valores coletivos ou comunitários constitucionalmente protegidos. Alguns direitos fundamentais e bens, interesses ou valores coletivos ou comunitários constitucionalmente tutelados podem colidir com o direito de petição, exigindo que se realizem ponderações diante de casos concretos, as quais podem levar a ingerências no direito fundamental em questão.

O direito fundamental à honra, previsto no artigo 5°, inciso X, da Constituição de 1988, o direito fundamental à segurança jurídica, que protege a coisa julgada, nos termos do artigo 5°, caput e inciso XXXVI, do texto constitucional, e o princípio da eficiência administrativa, bem ou valor coletivo ou comunitário previsto no artigo 37, caput, da Constituição de 1988, por exemplo, podem restringir o direito de petição. O direito fundamental à honra pode conduzir à exigência de que os pedidos formulados a autoridades estatais para defesa de interesses particulares ou gerais sejam elaborados de maneira respeitosa, sem termos ofensivos ou impróprios, bem como mediante a adoção das devidas cautelas.378 O direito fundamental à segurança jurídica pode fundamentar a inadmissibilidade

em regra, exige-se que as petições individuais dirigidas a tribunais internacionais, comissões, conselhos ou comitês de acompanhamento contenham a identificação dos interessados, como salienta Antônio Augusto Cançado Trindade: “Os tratados de direitos humanos que estabelecem sistemas de petições ou denúncias, ao dispor sobre as condições de admissibilidade destas últimas, estipulam, em sua virtual totalidade, que a petição não pode ser anônima” (TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. A personalidade e capacidade jurídicas do indivíduo como sujeito do direito internacional. Revista do Instituto Brasileiro de Direitos Humanos, Fortaleza, a. 3, v. 3, n. 3, p. 30-63, 2002. p. 41). No entanto, algumas normas internacionais, como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (artigo 6°, n° 1, do Protocolo Facultativo) e a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (artigo 56, n° 1), admitem a possibilidade de o nome do peticionante ou interessado não ser revelado, permanecendo oculto (GARCIA, Emerson. Proteção internacional dos direitos humanos: breves reflexões sobre os sistemas convencional e não-convencional. 2. ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 80, 95).

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O Superior Tribunal de Justiça tem condenado à reparação de danos morais os responsáveis por comunicações de ilícitos maliciosas ou negligentes que levem à indevida instauração de inquéritos policiais: “Em princípio, o pedido feito à autoridade policial para que apure a existência ou autoria de um delito se traduz em legítimo exercício de direito, ainda que a pessoa indiciada em inquérito venha a ser inocentada. Desse modo, para que se viabilize pedido de reparação, fundado na abertura de inquérito policial, faz-se necessário que o dano moral seja comprovado, mediante demonstração cabal de que a instauração do procedimento, posteriormente arquivado, se deu por má-fé, ou culpa grave, refletindo na vida pessoal dos autores, acarretando-lhes, além dos aborrecimentos naturais, dano concreto, seja em face de suas relações profissionais e sociais, seja em face de

de pretensões dirigidas a autoridades estatais em contrariedade a decisão judicial transitada em julgado.379 O princípio da eficiência administrativa, que impõe organização ao aparelho estatal, pode levar à sujeição do direito de petição a requisitos formais e procedimentais.380

A análise da liberdade de manifestação do pensamento, da vedação ao anonimato e do direito de petição fornece os pressupostos indispensáveis ao exame da comunicação de ilícitos penais a autoridades investigantes. Em seguida, consideram-se as particularidades do tema relacionadas à investigação criminal e à vedação ao anonimato no sistema jurídico brasileiro.

4.4 A COMUNICAÇÃO DE ILÍCITOS PENAIS A AUTORIDADES INVESTIGANTES