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Evolução histórica da vedação constitucional ao anonimato

4.2 A VEDAÇÃO CONSTITUCIONAL AO ANONIMATO

4.2.1 Evolução histórica da vedação constitucional ao anonimato

Desde a organização dos primeiros grupos humanos houve a necessidade de identificação dos respectivos integrantes. Surgiu assim o nome como o sinal exterior por meio do qual se designam os indivíduos na sociedade.326

Na Idade Antiga, os gregos e os romanos atribuíam aos cidadãos denominações formadas por três elementos: o prenome, elemento próprio e individual, que distinguia os integrantes de uma mesma família; o nome, elemento mais importante, que indicava a tribo do indivíduo; e o cognome, elemento que designava as diferentes famílias de uma mesma tribo.327 Desse modo, não se admitia que alguém ficasse sem nome. Não havia, contudo, uma imposição de que as manifestações do pensamento contivessem a identificação de seus autores ou responsáveis. Não existia uma proibição ao anonimato na expressão e na informação ou comunicação de ideias.

Na Idade Média, sob a influência dos povos germânicos, houve uma tendência no sentido de estruturar a denominação dos indivíduos com apenas um elemento.328 Toda pessoa tinha um nome, embora geralmente composto de forma simples. Continuou a não existir o dever de identificação dos autores ou responsáveis pelas manifestações do pensamento. Não havia vedação ao anonimato na expressão e na informação ou comunicação de ideias. Exatamente nessa época as notícias apócrifas de supostas heresias foram bastante utilizadas para a instauração de procedimentos punitivos pela inquisição medieval, tendo havido também a ocultação do nome de testemunhas ouvidas durante a apuração dos fatos.

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Manuel Vilhena de Carvalho formula um conceito de nome: “O nome é o sinal ou rubrica através do qual se designam e individualizam as pessoas, quer consideradas individualmente, quer em referência à família a que pertencem” (CARVALHO, Manuel Vilhena. O nome das pessoas e o direito. Coimbra: Almedina, 1989. p. 11).

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AMORIM, José Roberto Neves. Direito ao nome da pessoa física. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 2-3.

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A forte presença do catolicismo na era medieval também contribuiu para o predomínio do nome único. A propósito, Rubens Limongi França ressalta que, “na Idade Média, de modo geral, o nome é quase sempre único e, não raro, constituído da denominação já anteriormente adotada por um santo da Igreja” (FRANÇA, Rubens Limongi. Nome civil das pessoas naturais. 3. ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1975. p. 33).

Na Idade Moderna, em face do crescimento populacional, com o objetivo de melhor identificar os indivíduos, voltou-se a formar a denominação das pessoas mediante o uso de mais de um elemento. Acrescentou-se o nome de família, de caráter hereditário, ao nome próprio, adotando-se modelo de designação de indivíduos semelhante ao atual. Toda pessoa tinha um nome. No entanto, ainda não se exigia que os autores ou responsáveis pelas manifestações do pensamento se identificassem. Não existia proibição ao anonimato na expressão e na informação ou comunicação de ideias. As inquisições espanhola e romana continuaram a admitir as notícias apócrifas de ilícitos, tendo sido praticada inclusive a ocultação da identidade de inquisidores e testemunhas. Os modelos processuais penais inquisitivos adotados pelos Estados absolutistas também aceitavam que representações anônimas servissem de base à instauração da persecução penal, chegando até mesmo a haver incentivo às delações formuladas por pessoas não identificadas. Na época, uma forma de ocultação da verdadeira identidade das pessoas tornou-se comum entre escritores e artistas, notadamente após o aparecimento da imprensa: o pseudônimo, nome fictício usado em substituição ao nome verdadeiro de um indivíduo.329

Na Idade Contemporânea, as denominações das pessoas revestiram-se de considerável complexidade, variando de acordo com o país.330 Geralmente, apontam-se os seguintes elementos como possíveis integrantes do nome: o prenome, nome próprio ou nome individual é o sinal que distingue a pessoas de um mesmo núcleo familiar, podendo ser simples ou composto; o sobrenome, cognome, nome de família, apelido de família ou patronímico é o sinal que identifica a procedência familiar das pessoas, podendo também ser simples ou composto; o agnome é o sinal que distingue os membros de uma mesma família que tenham o mesmo prenome e o mesmo sobrenome, indicando o grau de geração ou parentesco de um em relação ao outro ou alguma qualidade do portador; a partícula é a preposição ou conjunção que eventualmente une os elementos do nome. As pessoas também

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O uso de pseudônimos teria começado na Idade Antiga. Em Roma, Fedro, na verdade, seria o pseudônimo que o escritor Políbio utilizava para escrever fábulas. No entanto, o recurso a pseudônimos consolidou-se e difundiu-se, de fato, apenas na Idade Moderna, com o surgimento da imprensa (VIEIRA, Tereza Rodrigues. Nome e sexo: mudanças no registro civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 47-56).

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Manuel Vilhena de Carvalho classifica os sistemas atuais de composição dos nomes do seguinte modo: “Na actualidade sobressaem, como principalmente adoptados, os seguintes sistemas de denominação das pessoas: 1° Sistema árabe e eslavo no qual, ao lado da designação individual, figuram outras que indicam, a par da filiação, qualidades e procedência da pessoa. 2° Sistema europeu, que é seguido pela maior parte dos países e que consiste na atribuição de um nome próprio seguido do apelido paterno em geral único e obrigatório. 3° Sistema peninsular, adoptado em Portugal, Espanha e alguns países sul-americanos e africanos, em que se faz seguir ao nome próprio apelido das duas linhas, paterna e materna, com variações quanto a determinação do último apelido e particularidades próprias de regulamentação conforme os países (...)” (CARVALHO, Manuel Vilhena. O nome das pessoas e o direito. Coimbra: Almedina, 1989. p. 14-15).

costumam ser designadas pelos seguintes sinais distintivos secundários: o nome vocatório, que é aquele pelo qual o indivíduo é normalmente conhecido, sendo formado por parte do seu nome; a alcunha, o apelido ou o epíteto, que é a designação, diversa do nome, pela qual o indivíduo é geralmente chamado, contendo referência a alguma característica sua; o hipocorístico, que é a designação carinhosa atribuída a um indivíduo, formada a partir de um dos elementos do seu nome, comumente o prenome.331 Continuou a existir o dever de todo indivíduo ter um nome pelo qual seja identificado.332 No entanto, paralelamente ao pseudônimo, surgiu outra forma de ocultação da identidade das pessoas: o heterônimo, nome e personalidade fictícios utilizados em substituição ao nome e à personalidade verdadeiros de um indivíduo, tendo sido adotado pioneiramente, de forma bem sucedida, pelo poeta português Fernando Pessoa no início do século XX.333

Apenas no final da modernidade e no início da contemporaneidade, sob a inspiração do movimento iluminista, formularam-se as primeiras concepções contrárias ao anonimato na manifestação do pensamento, defendendo-se que a expressão e a informação ou comunicação de ideias, especialmente a delação de ilícitos ao poder público, devem ocorrer mediante a identificação dos respectivos autores ou responsáveis. Montesquieu reprovou as cartas anônimas, especialmente as de teor acusatório.334 Cesare Beccaria, insurgindo-se contra as “acusações secretas”, comuns nos modelos processuais penais inquisitivos das eras medieval e moderna, questionou: “Quem poderá defender-se da calúnia, quando esta se protege com o mais forte escudo da tirania, o segredo? Que espécie de governo é esse, em que o regente pretende ver em cada súdito um inimigo e, para assegurar o sossego público, é obrigado a tirar o sossego de cada um?”.335

Uma das grandes figuras do Iluminismo, contudo, François

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AMORIM, José Roberto Neves. Direito ao nome da pessoa física. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 9-16.

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Além do nome e dos sinais distintivos secundários, utilizam-se para designar as pessoas os títulos nobiliárquicos, eclesiásticos, acadêmicos e científicos, bem como os qualificativos de cargo oficial e brasões de família (VIEIRA, Tereza Rodrigues. Nome e sexo: mudanças no registro civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 42-47).

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Sobre o heterônimo, Gustavo Tepedino, Maria Helena Barboza e Maria Celina Bodin de Moraes afirmam: “Distingue-se ainda o conceito de pseudonímia da heteronímia, fenômeno sempre associado ao exemplo do poeta português Fernando Pessoa, falecido em 1935, e caracterizado pela criação de diferentes ‘personalidades’, acompanhadas de nomes distintos, com os quais o artista assina suas produções. Pessoa, com efeito, assinava poesias não apenas em seu nome mas também por meio de heterônimos (Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos são os mais conhecidos) que tinham estilos, preocupações e mesmo ‘biografias’ próprias” (TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Maria Helena; MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil interpretado conforma a Constituição da República. 2. ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 50).

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MONTESQUIEU, Charles-Louis de. Do espírito das leis. Trad. Fernando Henrique Cardoso e Leôncio Martins Rodrigues. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 190.

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BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. José Cretella Júnior e Agnes Cretella. 4. ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 64.

Arouet, adotou o pseudônimo de Voltaire, o que representava uma forma de ocultação de sua verdadeira identidade, por ocasião das diversas formas de manifestação de seu pensamento.

Com o surgimento do constitucionalismo, do Estado de direito e da noção de direitos fundamentais, seria natural que a vedação ao anonimato fosse consagrada nas declarações de direitos e nas constituições, se não como restrição à liberdade de manifestação do pensamento em geral, pelo menos como impedimento à formulação de notícias apócrifas de ilícitos dirigidas ao poder público. No entanto, isso não ocorreu. O tema não foi e ainda não é expressamente tratado nos textos constitucionais em geral.336

No plano internacional, não há uma vedação explícita à manifestação anônima do pensamento. No sentido de evitar o anonimato, como providência essencial à correta identificação das pessoas, algumas normas internacionais sobre direitos humanos limitam-se a estabelecer a obrigatoriedade de atribuição de nomes aos indivíduos. O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, de 1966, em seu artigo 24, n° 2, estabelece que “toda criança deverá ser registrada imediatamente e deverá receber um nome”. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de 1969, conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, estipula em seu artigo 18 o seguinte: “Toda pessoa tem direito a um prenome e aos nomes de seus pais ou ao de um destes. A lei deve regular a forma de assegurar a todos esse direito, mediante nomes fictícios, se for necessário”. A Convenção sobre os Direitos das Crianças, de 1989, em seu artigo 7°, n° 1, estatui que “a criança será registrada imediatamente após o seu nascimento e terá direito, desde o momento em que nasce, a um nome”.

No Brasil, diversamente do restante do mundo, a vedação ao anonimato tem sido prevista na maioria das constituições. A Constituição de 1824 não proibiu, de modo expresso, manifestações anônimas do pensamento. A Constituição de 1891, pioneiramente, ao tratar da liberdade de manifestação do pensamento pela imprensa, em seu artigo 72, § 12, estabeleceu: “Não é permitido o anonimato”.337

A Constituição de 1934, cuidando da liberdade de

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Nos Estados Unidos da América, em face da ausência de vedação constitucional ao anonimato, julgados da Suprema Corte consideram que a divulgação de ideias por meio de panfletos sem identificação de autoria encontra-se protegida pela liberdade de manifestação do pensamento. Isso ocorreu nos casos Talley versus California, de 1960 (Justitia US Supreme Court Center. Talley v. California - 362 U.S. 60 (1960). Disponível em: <http://www.supreme.justia.com>. Acesso em: 28 fev. 2012), e McIntyre versus Ohio Elections Comission, de 1995 (Legal Information Institute of the Cornell University Law School. McIntyre v. Ohio Elections Comission – 514 U.S. 334 (1995). Disponível em: http://www.law.cornell.edu>. Acesso em: 28 fev. 2012).

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João Barbalho, comentando a Constituição de 1891, ressaltou que a vedação ao anonimato existia no direito brasileiro, em sede de legislação ordinária, desde momento bem anterior à existência desse texto constitucional. O Decreto de 18 de junho de 1822 estabelecia: “Todos os escritos deverão ser assinados pelos escritores para sua responsabilidade; e os editores e impressores que imprimirem e publicarem papéis anônimos são responsáveis por eles”. De acordo com o autor, a inclusão da proibição ao anonimato na Constituição de 1891 ocorreu por

manifestação do pensamento em geral, no artigo 113, item 9, também estipulou não ser permitido o anonimato. A Constituição de 1937, ao prever a liberdade de manifestação do pensamento, em seu artigo 122, item 15, preconizava que a imprensa deveria reger-se por lei especial, de acordo com determinados princípios, entre os quais se incluía o seguinte: “é proibido o anonimato”. A Constituição de 1946, em seu artigo 141, § 5°, ao consagrar uma ampla liberdade de manifestação do pensamento, adotou texto bastante similar ao da Constituição de 1934, estatuindo: “Não é permitido o anonimato”. A Constituição de 1967 não previu, de forma explícita, proibição à manifestação anônima do pensamento.338 A Constituição de 1988, atualmente vigente, no artigo 5°, inciso IV, estabelece: “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”. A proibição à expressão e informação ou comunicação de ideias por pessoas não identificadas, portanto, integra a tradição constitucional pátria, consistindo em uma das peculiaridades da maior parte das constituições brasileiras.

A vedação ao anonimato tem uma finalidade que pode ser analisada sob dois aspectos, um individual e outro público. Em seu aspecto individual, de caráter predominantemente subjetivo, a proibição em referência tem por fim evitar que a liberdade de manifestação do pensamento como direito fundamental seja exercida de forma abusiva, causando danos a particulares e ao poder público, sem que seja possível a posterior punição do responsável. A propósito, José Afonso da Silva esclarece: “A liberdade de manifestação do pensamento tem seu ônus, tal como o de o manifestante identificar-se, assumir claramente a

emenda da comissão do congresso constituinte. A iniciativa teve oposição do deputado Francisco Veiga, que afirmou: “O anonimato não protege só o fraco e oprimido contra os fortes e opressores; muita gente honesta, independente e digna, por isso mesmo que o é, serve-se dele para defender, sem poder ser suspeitada, a boa causa quando identificada com os grandes e poderosos”. Antes, sob a égide da Constituição de 1824, o escritor José de Alencar já havia defendido o anonimato: “O anônimo é um direito garantido pela nossa Constituição; é um direito tão sagrado como o segredo das cartas, como o asilo do cidadão. O anônimo é o domicilio da consciência; não se pode penetrar aí senão em nome da lei”. João Barbalho, contudo, posicionou-se de modo favorável à inovação constitucional, salientando que “o argumento de ser a proibição do anonimato uma restrição à liberdade não é por si de grande valor. Restrições sofrem e é preciso que sofram todas as liberdades; do contrário desapareceria o respeito ao direito e às suas garantias. A questão é se a restrição é fundada e justa. E isto é inegável, desde que se observe que ela, no caso, é estatuída para assegurar a responsabilidade do escritor e que oferece aos ofendidos a segurança e facilidade de fazê-la efetiva, nada embaraçando à assinatura que o autor diga o que quiser (e deve cada um mostrar essa coragem, se está convencido de que tem razão no que diz). Sobretudo nas publicações que contêm ataque e alusões ao caráter, à probidade pessoal ou funcional, a assinatura se impõe como indeclinável, para que a honra ofendida não tenha dificuldade de se desagravar pelos meios legais. E esta exigência é de si moralizadora; ela dá comedimento, evita a intemperança, as demasias da imprensa; ao passo que o anonimato favorece os abusos e encoraja no mau caminho a covardia que se encobre e disfarça” (CAVALCANTI, João Barbalho Uchôa. Constituição Federal Brasileira, 1981: comentada. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 1992. p. 320-321).

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Apesar de não ter sido prevista expressamente na Constituição de 1967, a vedação ao anonimato, pelo menos no campo da liberdade de manifestação do pensamento por meio da imprensa, constava do artigo 7° da Lei n° 5.250/1967, conhecida como Lei de Imprensa.

autoria do produto do pensamento manifestado, para, em sendo o caso, responder por eventuais danos a terceiros”.339 Esse geralmente é apontado como o único escopo da

interdição a manifestações anônimas do pensamento.340

Em seu aspecto público, de feitio prevalentemente objetivo, a vedação ao anonimato tem por fim viabilizar a verificação da credibilidade das manifestações do pensamento. A identificação do autor de divulgações de ideias permite que se afira a confiabilidade de suas expressões, informações ou comunicações, o que é imprescindível para um seguro fluxo de dados e um amplo debate crítico, essenciais à democracia. Por isso, tal escopo, embora geralmente não mencionado, merece consideração.

Analisada a evolução histórica da proibição ao anonimato, cumpre formular seu conceito. Faz-se necessário, também, identificar o âmbito de proteção dessa vedação constitucional.