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A dignidade da pessoa humana enquanto pressuposto e fim do Estado de direito

Capitulo II O princípio da dignidade da pessoa humana

1.4 A dignidade da pessoa humana enquanto pressuposto e fim do Estado de direito

O valor da dignidade da pessoa humana93, nos termos do artigo 1º da CRP, não constitui

fundamento de qualquer tipo de Estado, isto porque, Estados de regimes totalitários que

incorporam ideologias traspersonalistas94 tornadas filosofia pública, que não são pressupostos

pelo valor da dignidade humana ou, pelo menos, assumem em relação á mesma dignidade uma visão parcial e redutora. No entanto, será seguramente um pressuposto existencial de um Estado de direito, não só porque o povo, como um dos elementos do Estado, e enquanto fonte de legitimação da soberania, mas também e porque um Estado de direito é servido por um poder politico legitimando pelo respeito do direito, na generalidade, mas em especial, pelos direitos fundamentais das pessoas, constituindo, simultaneamente este valor, como os fins a prosseguir pelo Estado, que não existe por si mesmo, mas na legitimação de servir o “elemento humano”, conformado pelas gerações do passado, do presente e do futuro, isto porque a pessoa humana é previa ao Estado, e enquanto elemento constitutivo do Estado, colocando o Estado ao seu serviço. Desta forma, a Constituição portuguesa, reitera no seu conteúdo normativo antes da organização do poder está o homem, e por isso, a Constituição releva a prevalência dos direitos fundamentais sobre o sistema politico, conformando desse modo a dignidade da pessoa humana, como um importante limite ao poder político, ao qual é vedada a adopção de politicas e filosofias “traspersonalistas” que favoreçam “uma cultura de morte” que secundarizem ou funcionalizem o ser humano, aniquilem a sua vontade e integridade física e psíquica, ou contribuam para a sua sujeição a situações objectivas de

93MORAIS, Carlos Blanco de - Curso de Direito Constitucional - Teoria da Constituição em Tempo de Crise do

Estado Social Tomo II Volume 2. 1ª ed. Coimbra: Coimbra Editora. 2014, op. cit. p. 468-469

94 Transpersonalismo “De acordo com a classificação tripartida de Gustav Radbruch, nas relações entre o

indivíduo e o todo de que o mesmo é parte, surgem três atitudes: o individualismo, o supra-individualismo e o transpersonalismo. Três atitudes típicas, que difeririam quanto ao fim último - ou tipos de valores prosseguidos pelo mesmo conjunto -, às concepções de Estado e às formas de vida em comum. Segundo o mesmo autor, o individualismo considera a liberdade como fim último, o contrato como concepção de Estado, e a sociedade como forma de vida em comum, tendo, como tipos de valores, tanto a personalidade humana individual como uma ética de convicção ou de consciência. Já o supra‑individualismo, que Radbruch teoriza a partir das experiências totalitárias dos anos vinte e trinta deste século, visualiza a nação como fim último, entende o Estado como organismo, defende a totalidade unitária como forma de vida em comum e tem, sobretudo, valores colectivos, marcados pela ética da responsabilidade.”

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degradação ou carência extrema, daí que, nesta ultima dimensão, onde o Estado deve assumir

uma função social de promoção do bem-estar e da qualidade de vida do povo95.

A dignidade da pessoa humana, segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira96, enquanto

princípio, não é jurídico-constitucionalmente apenas e só um principio limite mas um conceito com valor próprio e com uma dimensão normativa específica, porque, desde logo, “está na base de concretizações do princípio antropológico ou personicentrico inerente a muitos direitos fundamentais (direito à vida, direito de desenvolvimento da personalidade, direito á cultura física e psíquica, direito á identidade genética) ”, e por outro lado, alimenta materialmente o princípio da igualdade, proibindo desde logo, qualquer diferenciação ou avaliação de dignidades como “os deficientes”, “os criminosos”, “os desviantes”, onde todos têm a mesma dignidade da chamada “pessoa normal”, e como também referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, os estrangeiros, os apátridas (refugiados, exilados) que têm a

mesma dignidade do cidadão nacional97.

A dignidade da pessoa humana constitui um dado prévio, ou a pré-condição de legitimação da

Republica, enquanto forma de Governo98, não se tratando de um conceito invariável e

abstracto, isto porque a dimensão intrínseca e autónoma da dignidade da pessoa humana articula-se directamente com a liberdade e conformação e orientação de vida de cada pessoa, segundo o seu projecto espiritual, existindo porém, uma abertura á evolução e às novas exigências da própria pessoa humana.

A dignidade da pessoa humana pressupõe ainda relações de reconhecimento intersubjectivo, pois a dignidade de cada pessoa deve ser compreendida e respeitada em termos de

reciprocidade de uns com os outros, ou seja, na articulação deste três princípios99:

 A dignidade como dimensão intrínseca do ser humano

95 Artigo 9º da Constituição da Republica “São tarefas fundamentais do Estado:” alínea d) “Promover o bem-

estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem como a efectivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais, mediante a transformação e modernização das estruturas económicas e sociais”. Constituição da Republica Portuguesa e legislação complementar. Lisboa. AAFDL. 2010

96 CANOTILHO, José Joaquim Gomes: MOREIRA, Vital - Constituição da República Portuguesa Anotada

Volume I Artigos 1º a 107º, p. 198 in fine

97

Idem p. 198

98 Ibidem op. cit. p. 199

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 A dignidade como expressão do reconhecimento recíproco

 A dignidade como dimensão aberta e carecedora de prestações

Estes princípios conformam e explicitam muitas das soluções normativo-constitucionais contempladas na CRP, onde a dignidade do ser humano é entendido como um valor ou um bem específico e autónomo, o qual exige respeito e protecção, em cujo texto constitucional se proíbe a pena de morte, a tortura, as penas desumanas e degradantes, prática de escravatura e servidão, de trabalhos forçados e o tráfico de seres humanos. A título de exemplo, onde a dignidade é compreendida como dimensão aberta e carecedora de prestações que legitimam e

justificam a socialidade, como no acórdão do TC 509/02100 relativamente ao rendimento

social de inserção.

É também a dignidade da pessoa humana no reconhecimento recíproco que está na base de princípios jurídicos como sejam o princípio da culpa e o princípio da ressocialização em

matéria penal (acórdãos do TC 6/84101 e 349/2001102).

A actual CRP ao basear a Republica Portuguesa na dignidade a pessoa humana, esta explicita inequivocamente que o “poder” ou “domínio” da Republica terá imperativa e

obrigatoriamente que assentar em dois pressupostos, a saber103:

1- Em primeiro lugar estará sempre a pessoa humana e só depois a organização politica. 2- A pessoa é sujeito e não objecto, é o fim e não o meio das relações jurídico-sociais.

Face ao exposto, para Gomes Canotilho e Vital Moreira104 é com base nestes dois

pressupostos que radica a elevação da dignidade da pessoa humana como a trave mestra que sustenta e legitima a Republica Portuguesa, e é a partir desses pressupostos que se compreende, limita e organiza o Poder politico.

100ACÓRDÃO N.º 509/02: Processo nº 768/02, Plenário, 19 de Dezembro de 2002. Tribunal Constitucional.

Disponível em: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20020509.html

101 ACÓRDÃO N.º 6/84: Processo n.º 42/83. 2.ª Secção, 18 de Janeiro de 1984. Tribunal Constitucional.

Disponível em: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19840006.html

102 ACÓRDÃO N.º 349/91: Processo: n.º 297/89. 2ª Secção, 3 de Julho de 1991. Tribunal Constitucional.

Disponível em: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19910349.html

103 CANOTILHO, José Joaquim Gomes: MOREIRA, Vital - Constituição da República Portuguesa Anotada

Volume I Artigos 1º a 107º, p. 198

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Haverá que acrescentar que a dignidade da pessoa humana poderá considerar-se como a expressão individualizada do modelo político da Republica Portuguesa consagrada no nº 1 da nossa CRP, onde se preconiza uma “sociedade livre, justa e solidária” ou seja, uma sociedade que respeita a dignidade da pessoa humana, e precisamente aquela em que as pessoas são reconhecidas como pólos de liberdade, tratadas com justiça e apoiadas com solidariedade. Assim sendo, se a vontade popular se subordina finalisticamente à dignidade a pessoa humana, também esta, por sua vez, se liga ao modelo ideal de sociedade que lhe corresponde, ou seja, o de uma “sociedade livre, justa e solidária”.

Todo o articulado da nossa Constituição gira em torno do respeito pelo princípio da dignidade da pessoa humana, enquanto manifestação material relevante do princípio do Estado de direito, significando com isto que, e de um modo geral, a pessoa (o ser humano) é colocada como o fim supremo do Estado de direito, encontrando a sua maior consagração nos direitos fundamentais, pois entende-se que é dentro desta categoria (de direitos) que se encontra o instrumento jurídico que melhor se adequa na garantia dos valores neles inseridos.

A dignidade da pessoa humana constitui em Portugal a fundamentalização do Direito em geral e dos direitos fundamentais em particular, ou seja, “o homem pessoa é o pressuposto decisivo, o valor fundamental e o fim último que preenche a inteligibilidade do nosso tempo”105

como sejam a liberdade e a racionalidade da pessoa antropologicamente sustentada numa inserção social visando garantir o seu desenvolvimento pessoal.

A concepção da dignidade a pessoa humana, segundo os ideais de justiça que o direito positivo deve alcançar, do seu desrespeito resulta a desobrigação perante tal lei, desta forma considerada injusta, existindo aqui a primeira referencia quase obrigatória ao Direito de resistência às leis que atentem contra a dignidade, não só do cidadão, mas do ser humano e

respectiva dignidade106. Esta concepção positivista relativa á dignidade a pessoa humana107 é

a pessoa que se torna o centro dos direitos e valores fundamentais, os quais Jorge Bacelar

Gouveia divide em quatro vertentes, a saber108:

105 GOUVEIA, Jorge Bacelar - Manual de Direito Constitucional Volume II p. 705 in fine

106

Idem op. cit. p. 706-707

107 Ibidem op. cit. p. 708

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“ - É a pessoa concreta e não o individuo abstracto do liberalismo oitocentista - a pessoa situa-se na história e não fora dela, vivendo no seu tempo e sentindo um conjunto de necessidades de ordenação social.

- É a pessoa solidária por que homo homini persona e não alguém geometricamente igualizado num cenário faticamente distorcido - a pessoa que está em relação com os outros, com um desejo constante de promoção social, em que o Direito está atento às desigualdades reais (e não só da lei) através da consagração de direitos de natureza social.

- É a pessoa-fim e não a pessoa instrumento como nos transpersonalismos de direita e de esquerda, que o século XX infelizmente conheceu - a pessoa que se assume como a finalidade última do Direito e do Poder, que não pode ser secundarizada em nome de bens colectivos que espezinhem a sua dignidade elementar.

- É a pessoa-essência e não a pessoa existência, in fieri, que se vai construindo ao sabor da vida e da história pessoal - a pessoa como ser humano que postula sempre certos direitos, não se moldando ao sabor de conjunturas ou de evoluções de vida, mais ou menos ocasionais”

Uma sociedade que respeita a dignidade da pessoa humana, é aquela em que as pessoas são reconhecidas como “pólos de liberdade”, onde são tratadas com justiça e apoiadas com solidariedade, assim sendo, se a vontade popular se subordina finalisticamente á dignidade da pessoa humana, esta, por sua vez, também se liga ao modelo ideal de sociedade que lhe corresponde, ou seja, o de uma sociedade livre, justa e solidária.

Num Estado de direito e nos seus princípios basilares, sobressai em sentido estrito a dimensão garantística ou defensiva que se traduz na garantia dos direitos e liberdades fundamentais e na respectiva segurança jurídica associada, não significando porém, que o principio do Estado de direito possa ser legitimamente invocado contra toda e qualquer intenção e transformação social operada no âmbito e uma democracia politica, porque, na garantia dos direitos fundamentais, nas suas dimensões objectiva e subjectiva, está sempre implícita a necessidade de toda uma actuação positiva que se destina, não só, ao respectivo reconhecimento e protecção, mas também à criação de condições objectivas que possibilitem um exercício efectivo em condições de igualdade real entre os seus titulares, a que ao Estado se refere, não apenas permitindo, como até poderá exigir o desenvolvimento da correspondente acção

politica transformadora109.

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A determinação do conteúdo dos direitos fundamentais, por outro lado, não se pode imobilizar na época e segundo os poderes estabelecidos nesse período, devendo antes actualizar-se acompanhando as evoluções de uma sociedade, que de acordo com o artigo 1º da CRP, esta deverá estar baseada na “dignidade a pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção e uma sociedade livre, justa e solidária”, sociedade esta que se obriga a uma renovação permanente em busca da prossecução desses mesmos valores, logo, o principio do Estado de Direito desenvolve toda uma dimensão de garantia que irá para além da protecção da liberdade individual protegendo os particulares da acção do Estado que de alguma forma os possam afectar e prejudicar. Desta forma, estas exigências (dos particulares) traduzir-se-ão em princípios jurídicos, os quais pretendem concretizar a ideia de que o (s) princípio (s) do Estado de direito, funcionam como limites efectivos á respectiva actuação do Estado, servindo esses mesmos princípios como parâmetros para a avaliação a constitucionalidade dos actos dos poderes públicos, sendo um desses princípios, o princípio central e basilar da actual CRP que é precisamente o princípio da dignidade da pessoa

humana110.