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O DIREITO COMO TEXTO

No documento TEORIA GERAL DO DIREITO (páginas 139-144)

CAPÍTULO V- SEMIÓTICA E TEORIA COMUNICACIONAL DO DIREITO

4. O DIREITO COMO TEXTO

Do processo comunicacional, o que temos acesso é o substrato lingüístico, seu produto, base empírica para que o destinatário construa a mensagem emitida. A mensagem não vem pronta, como muitos pressupõem, ela é o sentido do código estruturado pelo emissor e só aparece na mente do destinatário, com sua decodificação. Até a ilustração reproduzida acima dá-nos a impressão de que o destinatário recebe a mensagem, como se ela viesse pronta, no entanto, o que acontece em qualquer processo comunicacional não é isso. O destinatário tem acesso apenas ao suporte fisco (canal ou contato), nele ele reconhece o código e mediante a existência de um contexto constrói a mensagem na forma de significação.

Com o direito positivo não é diferente. Tudo a que se tem acesso são palavras, um conjunto de signos devidamente estruturados na forma de textos e todo o esforço do destinatário volta- se para a construção do sentido destas palavras, para a decodificação do código e compreensão da mensagem legislada.

Ao conjunto estruturado de signos pelo qual se viabiliza a comunicação, dá-se o nome de linguagem (língua + fala). Daí a afirmação segundo a qual o direito positivo se manifesta em linguagem. Fisicamente ele se apresenta na forma idiomática escrita, é composto por signos arbitrariamente construídos e aceitos por convenções lingüísticas (símbolos). Este é o seu dado empírico, por isso, qualquer estudo jurídico que se pretenda tem como ponto de partida e de retorno a linguagem.

Para sabermos, por exemplo, que regras jurídicas disciplinam as relações familiares, a compra e venda de bens, a constituição de uma sociedade, a contratação de funcionários, etc., temos que nos dirigir aos Códigos Civil, Comercial e à Consolidação de Leis Trabalhistas. E o que encontramos nos Códigos, e nas Leis senão um aglomerado de palavras gravadas num papel? Tudo a que temos acesso, na nossa experiência sensorial com o direito positivo, são palavras estruturadas em frases e sistematizadas na forma de textos. Assim sendo, o trato com o direito positivo sempre nos

conduz ao manejo de textos171.

Não há outra saída para o jurista, o aplicador, o advogado, o estudante de direito senão o manejo de textos. Quando o Poder Constituinte promulga a Constituição Federal, produz um texto, quando o legislador edita uma Lei produz um texto, quando a administração edita atos

administrativos o faz mediante a produção de textos, quando o juiz sentencia, produz um texto, o advogado, ao peticionar, produz um texto, os particulares ao contratarem, também produzem um texto. A Constituição Federal, os Códigos, as Leis, os Decretos, as resoluções, portarias, atos administrativos, sentenças, acórdãos, contratos, regulamentos, etc., apresentam-se invariavelmente como textos. Logo, não há outro modo de lidar com o direito que não seja o trato com textos. É neste sentido que GREGORIO ROBLES MORCHON sustenta ser o “direito um grande texto composto de múltiplos textos parciais”172.

No direito brasileiro estes textos são necessariamente escritos. Pensemos em qualquer manifestação jurídica e logo percebemos que ela se encontra reduzida a termo. Desde as manifestações mais complexas como a Constituição Federal e os compêndios legislativos até as mais simples como as resoluções e portarias se apresentam na forma de texto escrito, cuja função pragmática é direcionar comportamentos intersubjetivos.

4.1. Texto e conteúdo

Toda linguagem só assim o é porque tem um sentido. Se voltarmos nossa atenção ao texto, enquanto conjunto estruturado de símbolos, logo percebemos que ele comporta três ângulos de análise atinentes à ontologia relacional dos signos que o integram. Como já tivemos a oportunidade de estudar, ainda neste capítulo, os signos compõem-se de um substrato material, que tem natureza física e lhes serve de suporte (suporte físico); de uma dimensão ideal construída na mente daquele que o interpreta (significação); e de um campo de referencial, isto é, alusivo aos objetos por ele referidos com os quais mantém relação semântica (significado). Ao compreendermos o texto como um conjunto de signos ordenados com o intuito comunicacional, facilmente podemos visualizar estes três ângulos de observação.

Dos três planos que compõem as relações sígnicas de um texto, aquele a que temos acesso é o seu suporte físico, que é a base para construção das significações e o dado referencial dos significados. É nele que as manifestações subjetivas do emissor da mensagem ganham objetividade e tornam-se intersubjetivas, vale dizer, se materializam e podem ser conhecidas (interpretadas) por outros.

O suporte físico de um texto é o seu dado material empírico. Na linguagem escrita são as marcas de tinta gravadas sobre um papel. É unicamente a estas marcas de tinta que temos

acesso quando lidamos com os textos escritos e é a partir delas, por meio de um processo interpretativo, que construímos seu sentido. Aquele que não sabe manusear tais marcas e que não consegue associá-las a um significado, não é capaz de construir sentido algum, olha para aquele aglomerado de símbolos e só vê marcas de tinta sobre o papel. Isto nos prova duas coisas: (i) primeiro que o sentido não está no suporte físico, ele é construído na mente daquele que o interpreta; e (ii) segundo, que não existe texto sem sentido. Não existe um suporte físico ao qual não possamos atribuir uma significação. Se não houver a possibilidade de interpretá-lo, ou seja, de se construir um sentido, o suporte físico perde sua função e não podemos mais falar na existência de signos.

Atentando para esta unicidade PAULO DE BARROS CARVALHO faz uma distinção quanto ao uso do termo “texto”. Por muitas vezes a palavra é utilizada para denotar o suporte físico, dado material ao qual temos acesso na construção do sentido, por outras vezes, a mesma palavra é utilizada para referir ao suporte físico e seu sentido. Verifica-se aqui, mais uma vez, o problema da ambigüidade que impregna o uso das palavras. Por exemplo, quando se diz: “vamos

interpretar o texto” utiliza-se o termo “texto” na acepção de suporte físico, diferentemente, quando se diz: “o texto é sobre direito positivo”, utiliza-se o mesmo termo na acepção de suporte físico mais sua significação.

Para resolver este problema o autor propõe uma simples, mas precisa, distinção entre

texto em sentido estrito e texto em acepção ampla173. Stricto sensu o “texto” restringe-se apenas ao suporte físico, dado material tomado como base empírica para construção de significações (refere-se ao primeiro exemplo) aquilo que GREGORIO ROBLES denomina de “texto bruto”174. Já em sentido

amplo de “texto” abrange sua implicitude, seu sentido (refere-se ao segundo exemplo).

Transportando estas considerações genéricas para a especificidade dos textos do direito positivo, percebemos estes dois planos: (i) do texto em sentido estrito, suporte físico, dado empírico do direito positivo; e (ii) do conteúdo normativo, composto pelas significações construídas na mente daquele que interpreta seus enunciados prescritivos.

A norma jurídica encontra-se no plano das significações, do conteúdo dos textos do direito positivo. Ela existe na mente humana como resultado da interpretação dos enunciados que

173 Fundamentos jurídicos da incidência tributária, p. 16.

174 Teoria del derecho (fundamentos de teoria comunicacional del derecho), cap. 5. Conforme estudamos no cap. III, item 6

compõem seu plano de expressão. Nos dizeres de PAULO DE BARROS CARVALHO ela é

exatamente o juízo (ou pensamento) que a leitura do texto provoca em nosso espírito175.

4.2. Dialogismo - contexto e intertextualidade

Todo texto (aqui utilizado na sua acepção ampla) é envolvido por um contexto, isto é, encontra-se inserido num processo histórico-social onde atuam determinadas formações ideológicas. Neste sentido, podemos dizer que não há texto sem contexto.

O contexto é formado por todos os enunciados com os quais um texto se relaciona. Nenhum texto é individual, todo discurso, inserto num processo comunicacional, independente de sua dimensão, mantém relação com outros discursos176, pois, segundo os pressupostos com os quais trabalhamos, nenhum enunciado se volta para a realidade em si, senão para outros enunciados que os circundam. Neste sentido, todo texto (em acepção ampla) é atravessado, ocupado por textos alheios, de modo que para apreendermos seu sentido, não basta identificarmos o significado das unidades que o compõem (signos), é preciso perceber as relações que ele mantém com outros textos177.

As relações de sentido que se estabelecem entre dois textos são denominadas de “dialogismo”178. Como todo texto é dialógico, isto é, mantém relações com outros textos, o dialogismo acaba sendo, nas palavras de JOSÉ LUIZ FIORIN, o princípio construtivo dos textos. Construímos um enunciado a partir de outros enunciados e ele é compreendido porque mantém relação dialógica com outros enunciados.

Qualquer relação dialógica é denominada intertextualidade. O direito positivo como texto, relaciona-se cognoscitivamente com outros sistemas (social, econômico, político, histórico, etc), que também são lingüísticos. Há, neste sentido, uma intertextualidade externa (contexto não-jurídico) muito importante, pois, apesar do foco da análise jurídica não recair sobre seu contexto histórico- social, é esta relação dialógica que molda as valorações do intérprete. Como sistema, as unidades do direito positivo também se relacionam entre si. Há, neste sentido, uma intertextualidade interna (contexto jurídico), na qual se justificam e fundamentam todas as construções significativas da análise jurídica.

175 Curso de direito tributário, p. 8.

176 Na Semiótica o termo “texto” é empregado para denotar o plano de expressão, enquanto o termo “discurso” é utilizado

para denotar o plano de conteúdo (Diálogos com Barkhin – ed. UFPR – p. 32).

177 JOSÉ LUIZ FIORIN, Introdução ao pensamento de Barkhin, p. 23.

178 Podemos diferençar dois tipos de dialogismo: (i) o que se estabelece ente o texto produzido pelo emissor da mensagem e

Atento à separação entre texto e contexto, PAULO DE BARROS CARVALHO chama a atenção para a possibilidade de termos dois pontos de vista sobre o texto: (i) um interno; e (ii) outro externo. “Fala-se numa análise interna, recaindo sobre os procedimentos e mecanismos que armam a estrutura do texto, e numa análise externa, envolvendo a circunstância histórica e sociológica em que o texto foi produzido”179. A primeira análise tem como foco o texto como produto do processo comunicacional e a segunda recai sobre o texto enquanto instrumento de comunicação entre dois sujeitos, abarcando as manifestações lingüísticas e extralingüísticas que o envolvem.

Transpondo tais considerações para o direito positivo temos que: (i) uma análise interna leva em conta seu contexto jurídico; e (ii) uma análise externa seu contexto não jurídico. Nossa proposta é uma análise interna do texto jurídico. O contexto histórico-social em que se encontra envolvida sua produção exerce total influência na construção das significações jurídicas, mas não é ele que nos serve como base para construção destas significações. Nossa forma de estudar o direito, conforme já propunha KELSEN180, isola as manifestações normativas e as desassocia de qualquer outra espécie de manifestação que não seja jurídica. É, portanto, uma análise interna aos textos jurídicos. No entanto, tal análise não foge à noção externa. Para concebermos o direito como ele é (numa visão culturalista), não podemos ignorar a existência de seu contexto, mesmo que a análise sobre ele não recaia. Sem a contextualização, não há como dizer qual é o direito, porque para o compreendermos atribuímos valores ao seu suporte físico, e os valores são imprescindíveis de historicidade.

179 Fundamentos jurídicos da incidência tributária, p. 16. 180 Teoria pura do direito, p. 1.

No documento TEORIA GERAL DO DIREITO (páginas 139-144)