• Nenhum resultado encontrado

Língua e realidade

No documento TEORIA GERAL DO DIREITO (páginas 30-32)

LIVRO I PRESSUPOSTOS DO CONSTUCTIVISMO LÓGICO-SEMÂNTICO

2. PRESSUPOSTOS DO CONHECIMENTO

2.4. Língua e realidade

FERDINAND DE SAUSSURE, ao tomar a linguagem como objeto de seus estudos, observou que duas partes a compõem: (i) uma social (essencial), que é a língua; (ii) outra individual (acessória), que é a fala. Língua é um sistema de signos artificialmente constituído por uma comunidade de discurso e fala é um ato de seleção e atualização da língua, dependente da vontade do homem e diz respeito às combinações pelas quais ele realiza o código da língua com propósito de constituir seu pensamento18. No fundo, a língua influencia a fala, pois o modo como o indivíduo lida e estrutura os signos condiciona-se ao seu uso pela sociedade e a fala influi na língua na medida em que os usos reiterados determinam as convenções sociais.

Cada língua tem uma personalidade própria, proporcionando ao sujeito cognoscente que nela habita um clima específico de realidade. Nós, moradores dos trópicos, por exemplo, olhamos para algo branco que cai do céu e enxergamos uma realidade (a neve), os esquimós da Groelândia, por habitarem uma língua diferente da nossa, se deparam com o mesmo dado físico e enxergam mais de vinte realidades distintas. Por uma questão de sobrevivência eles identificam vários tipos de neve (ex: a que serve para construir iglus, a que serve para beber, para cavar e pescar, a que afunda, etc.), atribuindo nomes diferentes e as constituindo, assim, como realidades distintas daquela que nós conhecemos. Onde para nós existe uma realidade, para os esquimós há mais de vinte. Isto acontece porque a língua que habitamos determina nossa visão do mundo.

Outro exemplo, trazido por DARDO SCARVINO, é a separação que os yamanas fazem daquilo que nós chamamos de “morte”, para eles as pessoas se “pierden” e os animais se “rompen”. Condicionados pela língua que habitam a realidade ‘morte’ para os yamanas não existe, ou ao menos não significa o mesmo que para nós.

Compartilhamos do entendimento de que a língua não é uma estrutura por meio da qual compreendemos o mundo, ela é uma atividade mental estruturante do mundo. Assim, cada língua cria uma realidade. Para ilustrar tal afirmação, VILÉM FLUSSER compara a vivência de várias

línguas a uma coleção de óculos que dispõe o intelecto para observar os dados brutos a ele inatingíveis. Toda a vez que o intelecto troca de óculos (língua) a realidade se modifica19.

Isto acontece porque, como sublinha JÜRGEN HABERMAS, quando o homem habita uma língua ela “projeta um horizonte categorial de significação em que se articulam uma forma de vida cultural e a pré-compreensão do mundo”20. Determinantes, léxico e sintaxe de uma língua formam um conjunto de categorias e modos de pensar que é só seu, no qual se articula uma ‘visão’ do mundo e do qual só é possível sair quando se passa a habitar outra língua. É assim com os dialetos, a fala, a escrita, a matemática, a física, a biologia, a informática, o direito21, etc. Cada língua cria um mundo e para vivenciarmos outros mundos faz-se necessário mudar de língua, ou seja, temos que trocar os óculos de nosso intelecto.

Ao passar de uma língua a outra nossa consciência vive a dissolução de uma realidade e a construção de outra. Atravessa, como ensina VILÉM FLUSSER, o abismo do nada, que cria para o intelecto uma sensação de irrealidade22, pois as coisas só têm sentido para o homem dentro de uma língua. Cada pessoa, entretanto, realiza tal passagem de sua maneira, o que justifica as diferentes formas de tradução.

Ao conjunto de categorias e modos de pensar incorporados pela vivência de uma ou várias línguas atribuímos o nome de cultura. E, neste sentido, dizemos que os horizontes culturais do intérprete condicionam seu conhecimento, ou seja, sua realidade.

Aquilo que chamamos de realidade é, assim, algo social antes de ser individual. UMBERTO ECO ilustra com clareza tal afirmação trazendo o exemplo do caçador que interpreta pegadas da caça. O caçador só conhece as pegadas porque vivencia a língua da caçada. Nos dizeres do autor, “os fenômenos naturais só ‘falam’ ao homem na medida em que toda uma tradição lingüística o ensinou a lê-los. O homem vive num mundo de signos não porque vive na natureza, mas porque, mesmo quando está sozinho, vive na sociedade: aquela sociedade lingüística que não teria se constituído e não teria podido sobreviver se não tivesse elaborado os próprios códigos, os próprios sistemas de interpretação dos dados materiais (que por isso mesmo se tornam dados culturais)”23.

19 Língua e realidade, p. 52.

20 Verdade e justificação: ensaios filosóficos, p. 33.

21 Tudo que acontece com uma língua se aplica às Ciências, que se constituem como línguas particulares. 22 Língua e realidade, p. 59.

Os objetos, embora construídos como conteúdo de atos de consciência do ser cognoscente (subjetivo, pessoal), encontram-se condicionados pelas vivências do sujeito, sendo estas determinadas pelas categorias de uma língua (coletivo, social). É isso que faz com que o mundo “pareça” uno para todos que vivem na mesma comunidade lingüística e que torna possível sua compreensão. Quando, por exemplo, um médico lê no exame de um paciente “carcinoma basocelular esclerodermiforme” os termos ‘carcinoma’, ‘basocelular’ e ‘esclerodermiforme’ representam, cada um deles, significados convencionados, inteligíveis para quem habita a língua da medicina. Se assim não fosse, a proposição não teria sentido para o médico. Para o paciente, entretanto, que não vivencia tal língua, o exame nada significa objetivamente.

O homem, desde seu nascimento, encontra-se situado num mundo determinado como hermenêutico e a realidade das coisas desse mundo à qual ele tem acesso nada mais é do que uma interpretação, condicionada por uma tradição lingüística. Compreendemos as coisas do mundo, como ensina MANFREDO ARAÚJO DE OLIVEIRA, “a partir das expectativas de sentido que nos dirigem e provém de nossa tradição específica, onde quer que compreendamos algo, nós o fazemos a partir do horizonte de uma tradição de sentido, que nos marca e precisamente torna essa compreensão possível”24. A realidade, entendida aqui como o conjunto de proposições mediante o qual transformamos o caos em algo inteligível, é, desde sempre, integrada a um horizonte de significação.

No documento TEORIA GERAL DO DIREITO (páginas 30-32)