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Sistema de referência

No documento TEORIA GERAL DO DIREITO (páginas 32-35)

LIVRO I PRESSUPOSTOS DO CONSTUCTIVISMO LÓGICO-SEMÂNTICO

2. PRESSUPOSTOS DO CONHECIMENTO

2.5. Sistema de referência

Não há conhecimento sem sistema de referência, pois o ato de conhecer se estabelece por meio de relações associativas, condicionadas pelo horizonte cultural do sujeito cognoscente e determinadas pelas coordenadas de tempo e espaço em que são processadas.

Conhecemos um objeto porque o identificamos em relação a outros elementos, estabelecendo vínculos capazes de delimitar seu significado. Assim, todo nosso conhecimento do mundo encontra-se determinado pelos referencias destas associações que, por sua vez, são marcadas por nossas vivências.

Chamamos de sistema de referência as condições que informam o conhecimento sobre algo. Uma criança que nasce numa colônia de pescadores, por exemplo, olha para o mar e sabe distinguir os diversos tipos de marés, o que dificilmente acontece com uma criança que nasce na cidade grande. Isso se dá porque o referencial de uma é diferente do da outra. Para primeira criança o

mar tem um sentido mais complexo, significa muita coisa, porque grande parte das vivências que formam seu contexto lingüístico estão relacionadas a ele, o que já não se verifica com a segunda criança. Temos, assim, distintas interpretações, que se reportam ao mesmo dado experimental, constituindo duas realidades próprias, cada qual condizente com os referenciais dentro dos quais são processadas.

Além do referencial cultural, constituído pela vivência numa língua, toda compreensão do mundo pressupõe um modelo, um ponto de partida, que o fundamenta e atribui credibilidade o conteúdo conhecido. Este modelo consiste num conjunto de premissas que acaba por determinar aquilo que se conhece. Observamos, por exemplo, uma mesa de madeira a certa distância e afirmamos tratar-se de uma superfície lisa, olhando mais de perto, percebemos algumas fissuras e lhe atribuímos o qualificativo de rugosa, depois, observando-a com uma lupa, enxergamos várias rachaduras e concluímos tratar-se de uma superfície estriada. Mas, afinal, o que podemos afirmar sobre a superfície da mesa de madeira? Ela é lisa, rugosa ou estriada? A melhor resposta é: depende. Primeiro temos que saber qual o modelo adotado na construção da proposição. De longe a mesa é lisa, de perto ela é rugosa e com lente de aumento é estriada. Se não adotarmos um referencial, nada poderemos dizer sobre a superfície da mesa de madeira. É por isso que GOFFREDO TELLES JÚNIOR enuncia: “sem sistema de referência, o conhecimento é desconhecimento”25.

Para ilustrar tal afirmação o autor serve-se do clássico exemplo, imaginado por EINSTEIN (citado por PAULO DE BARROS CARVALHO26), de um trem muito comprido (5.400.000 km) caminhando numa velocidade constante, em movimento retilíneo e uniforme (240.000 km/s), que tivesse uma lâmpada bem no centro e duas portas, uma dianteira e outra traseira e que se abririam, automaticamente, assim que os raios de luz emitidos pela lâmpada as atingissem. Com operações aritméticas simples EINSTEN demonstrou que um viajante deste trem, veria as portas se abrirem simultaneamente, nove minutos depois de ver a lâmpada acender-se e que um lavrador, parado fora do trem, ainda que observasse a lâmpada se acender no mesmo instante que o viajante, veria a porta traseira abrir-se cinco segundos após e a porta dianteira somente quarenta e cinco segundos depois.

O evento observado pelo viajante e pelo lavrador seria exatamente o mesmo, mas como o lavrador não estaria dentro do trem e, portanto, seu sistema de referência não seria o mesmo do

25 O direito quântico, p. 289.

viajante, para ele, o fato das portas se abrirem seria sucessivo, enquanto que para o viajante seria simultâneo. Mas, qual destes fatos é o verdadeiro? O que se poderia dizer sobre a abertura das portas do trem? É simultânea ou sucessiva? A resposta, novamente, é: depende. Primeiro temos que saber qual o sistema de referência adotado na formulação do fato, pois conforme o referencial a resposta é diferente. Neste sentido, sublinha PAULO DE BARROS CARVALHO, “quando se afirma algo como verdadeiro, faz-se mister que indiquemos o modelo dentro do qual a proposição se aloja, visto que será diferente a resposta dada, em função das premissas que desencadeiam o raciocínio”27.

Cada pessoa dispõe de uma forma particular de conhecimento em conformidade com um sistema de referências adotado e condicionado por seus horizontes culturais. Em razão disso, não há que se falar em verdades absolutas, próprias de um objeto, porque o mesmo dado experimental comporta inúmeras interpretações. A verdade é uma característica da linguagem, determinada de acordo com o modelo adotado, pelas condições de espaço-tempo e também, pela vivência sócio- cultural de uma língua. É, portanto, sempre relativa.

Tudo pode ser alterado em razão da mudança de referencial (cultural ou propedêutico). Até aquilo que experimentamos empiricamente e parece-nos inquestionável (que temos como verdade absoluta), pode ser transformado. O por do sol, por exemplo, há algo que nos parece mais verdadeiro, do que observar o sol baixar-se no horizonte e afirmar que ele se põe quando não mais o enxergamos? Considerando, no entanto, que a luz do sol demora oito minutos para chegar até nós (na terra), quando deixamos de enxergá-lo estamos atrasados, ele já transpôs a linha horizonte (oito minutos atrás). E então, em que momento o sol se põe? A melhor resposta novamente será depende do referencial adotado28.

Até a experiência sensorial, que nos parece tão certa e precisa, é uma interpretação. Vejamos o caso do som, por exemplo: tudo que escutamos, não passa, fisicamente, de ondas interpretadas por nosso sistema auditivo. O som (como algo construído mentalmente) não está no mundo, que é silencioso, ele está dentro de nós, é o sentido que atribuímos às modificações físicas, percebidas por nossos ouvidos, decorrentes da propagação de uma onda. O mesmo acontece com a visão, por meio da qual interpretamos as ondas de luz, com o paladar, o olfato e tato. E, nestes termos, tudo é relativo.

27 Idem, p. 3.

28 JAKOBSON explica que os russos quiseram acabar com a idéia de “por do sol”, porque afinal (no modelo heliocêntrico),

não é o caso do sol se por, mas da terra girar em torno do sol. É interessante, então, que, mesmo em termos científicos, não há sentido dizer “o sol se põe”, mas a expressão é tão forte que enxergamos assim a realidade (CHARLES WILLIAM MACNAUGHTON, passim)

Dizer que a verdade é relativa, contudo, não significa negar a existência de afirmações verdadeiras (ceticismo), porque todo discurso descritivo é construído em nome da verdade. Também não significa considerar a verdade como subjetiva (relativismo), admitindo que algo seja verdadeiro para um sujeito e falso para outro dentro do mesmo modelo-referencial29. Significa apenas que, de acordo com os referenciais adotados, não trabalhamos com a existência de verdades absolutas, inquestionáveis, ou universais – aliás, frisamos a expressão “de acordo com os referenciais adotados”, pois sob esta perspectiva, a própria afirmação segundo a qual não existem verdades absolutas é relativa, depende do referencial adotado pelo sujeito cognoscente.

O problema é que nossa cultura tem a expectativa da verdade de último reduto, influenciada pela tradição filosófica anterior ao giro-lingüístico, principalmente em relação ao discurso científico e tende a repudiar, ingenuamente, a idéia de que uma proposição tomada como verdadeira num modelo possa ser falsa se construída noutro.

No documento TEORIA GERAL DO DIREITO (páginas 32-35)