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CAPÍTULO I – REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA – ASPECTOS

1.3 Direito Social à Moradia: um Esforço para Formular um Conceito, e Também

1.3.4 Direitos sociais e políticas públicas

Os direitos sociais reivindicam a igualdade material entre os indivíduos humanos. Visam à outorga de certos benefícios às classes sociais que se viram vítimas da segregação, sobretudo porque também estão excluídas na repartição dos frutos do trabalho social. Contra essas injustiças determinadas pelas históricas desigualdades sociais, tais classes reagiram e tiveram êxito político no reconhecimento normativo de suas necessidades e das correspondentes medidas de satisfação. Na qualidade de prestações materiais positivadas sob a forma de deveres de solidariedade, de segunda geração, manifestam-se como autêntico poder potestativo em prol dos seus respectivos titulares em face do correspondente Estado- devedor. Posto que tais direitos têm por titulares uma pluralidade de pessoas indeterminadas, embora determináveis, a respectiva concreção no mundo da vida deve ser alcançada voluntariamente pelo Estado no cumprimento de seus fins institucionais, por meio de políticas públicas amplas e eficazes.

No entanto, quando o Estado-administração falha, retarda ou nega a outorga material desses direitos, ou quando, subsidiariamente, o Estado-jurisdição se mostra tímido ou limitado para fazê-los concretos, a omissão, a negação ou a postergação afeta o indivíduo humano na forma mais irreversível: na dimensão do tempo da vida, único e breve. Trata-se de uma violência ilegítima que afeta o indivíduo no valor mais profundo da sua existência, vez que a marcha do tempo não conhece retrocessos para restaurar o que se perde no curso da vida, mormente quando o objeto perdido é a oportunidade da própria existência condigna. Quando a dignidade do indivíduo e seus direitos fundamentais não prevalecem, sobretudo vendo desrespeitadas as conquistas que foram fruto das suas épicas lutas sociais, a esperança última recorre novamente ao movimento circular revolucionário originário, latente e onipotente. Afinal, não é de se esperar que o indivíduo vá aceitar resignadamente a embroma eterna, na qual esse estado de violência converte-se em escárnio. Por isso, é sempre valiosa a advertência de Negri (2002, p. 9), que assim resumiu: ―O poder constituinte como poder onipotente é, com efeito, a própria revolução.‖

Ora, o desejo-poder constituinte não se esgota com a constituição, pois a ela é anterior, posterior e exterior; a ela transcende e se mantém latente, pronto para ressurgir com o mesmo vigor revolucionário ao rejeitar os produtos democráticos unicamente representativos22. O

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A democracia representativa se degenera diante do mercado voraz e da corrupção, perdendo legitimidade ao sucumbir-se no jogo dos interesses dominantes. Isso leva os representados a desacreditar nos seus representantes

distanciamento entre representantes e representados decorre de manobras que subvertem os ideais revolucionários consubstanciados no momento máximo da onipotência constitucional expansiva que tudo criou. O retorno ao estado do desejo carrega consigo a onipotência do poder originário e faz, então, uma nova revolução, destruindo a ordem posta para em seguida reconstruí-la novamente, reafirmando o seu gosto e modo. Este é, pois, o aviso aos interesses dominantes, se não querem o retrocesso ao caos da recriação constitucional.

Talvez isso explique, ou seja o início da explicação quanto às causas que cederam lugar aos movimentos populares desencadeados a partir de junho de 2013 no Brasil, quando as massas foram às ruas protestar contra as políticas públicas (ou a falta delas), que não se mostram satisfatórias nos campos da saúde, da moradia, dos transportes e educação públicos. Dos quatro eixos de reivindicações, sintomaticamente, três estão explicitamente encartados entre os direitos sociais agasalhados no art. 6.º da CF de 1988 (saúde, educação e moradia), enquanto o transporte público a eles se associa por pertinência temática.

Se esses movimentos populares ainda não constituem uma revolução propriamente, são, porém, sinais eruptivos de uma latência que faz avisos. No tocante à categoria do direito à moradia, tem-se que é uma das prestações sociais manifestamente insatisfeitas, que parece ter sido preterida quando daquelas escolhas ―discricionárias‖ e autoritárias pelas quais os minguados recursos públicos foram canalizados para políticas públicas nem tanto prioritárias de incremento ao esporte e turismo, driblando a normatividade e a discricionariedade constitucional. Esse desprestígio a um dos pilares do equilíbrio político-democrático leva as vozes do descontentamento ao locus do espaço público, onde não raro a irresignação até mesmo violenta questiona e repudia a afetação solipsista de escassos recursos públicos. A mensagem vinda das ruas parece direta: os movimentos populares, espontâneos ou organizados, refutam a aplicação de recursos públicos na realização de eventos esportivos de alcance global não prioritários em face de insuficientes investimentos públicos nas áreas da saúde, dos transportes, da educação e da moradia popular.

Em 9 de maio de 2014, o Correio Braziliense trouxe em sua capa notícia de fato comprobatório do que se alega:

A copa do barulho já começou. Manifestantes saíram às ruas em pelo

menos oito cidades no país. Em São Paulo, onde Dilma visitou o estádio em que o Brasil estréia contra a Croácia daqui a 34 dias, cinco protestos criticando os gastos da Copa e cobrando moradias populares interditaram vias importantes da capital. O escritório da OAS e o de outras duas construtoras foram invadidos por sem-teto. No Rio, rodoviários infernizaram

e, afastando-se deles, a buscar soluções revolucionárias, como a que originariamente dá vida ao poder constituinte.

a cidade: 467 ônibus acabaram depredados. Em Brasília, servidores ameaçam parar a Esplanada.

Ao desenvolver seu noticiário, continuou o jornal na página 2 daquela edição afirmando que os manifestantes protestaram em pelo menos nove capitais brasileiras, destacando-se o constrangimento em que se viu a primeira mandatária Dilma Rousseff em visita às obras da Arena Corinthians, quando, ao invés de colher reconhecimento político, curvou-se, ao reunir-se com o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto – MTST, ante a fragilidade da escolha discricionária que priorizou o esporte em detrimento da moradia. Afinal, de acordo com o referido jornal, cinco protestos de sem-teto criticavam os gastos com a realização da Copa do Mundo de Futebol, enquanto se faziam insuficientes as políticas públicas para a moradia.

Outros veículos de comunicação trouxeram inúmeros relatos naquele e em outros dias que se seguiram, todos abordando o mesmo descontentamento popular com as políticas públicas em prol do evento esportivo, sem que antes tivessem sido atendidas reivindicações fundamentais definidas no princípio do projeto constitucional brasileiro.

É oportuno e valioso considerar o traço identitário e o funcionamento desses movimentos sociais contemporâneos, fortemente apoiados em ferramentas tecnológicas da informação que propiciam a comunicação veloz e abrangente, reunindo as heterogeneidades insatisfeitas por meio das redes sociais. Para Castells (2002, p. 605),

[...] as redes constituem a nova morfologia das sociedades e a difusão da sua lógica modifica substancialmente as operações e os resultados dos processos de produção, experiência, poder e cultura. Embora a organização social, sob a forma de rede, tenha existido noutros tempos e lugares, o novo paradigma da tecnologia de informação fornece as bases materiais para a expansão de sua penetrabilidade em toda a estrutura social. Mais, eu argumento que esta lógica de rede induz uma determinação social de cariz mais elevado que os interesses sociais expressos através da própria rede: o poder dos fluxos prevalece sobre os fluxos de poder.

Assim, a classe dos ―representantes‖, na democracia brasileira, se vê apanhada em duplo tropeço: o da prepotência com que insiste em políticas públicas nem tanto prioritárias, dotadas de certo grau de rejeição popular na medida em que se distanciam das diretrizes determinadas pelos direitos sociais fundamentais; e no fenômeno da versatilidade da tecnologia da informação em rede, pela qual a sociedade dos descontentes se organiza e protesta com maior vigor operacional.

Os desdobramentos sócio-políticos da nova dinâmica social exigem novas reflexões. Segundo Gohn (2010, p. 25), nesse cenário ampliaram-se os sujeitos protagonistas das ações coletivas, com alteração no formato das mobilizações e forma de atuação, agora em rede.

Tudo isso alarga as possibilidades de conflitos e tensões sociais na nova geopolítica que a globalização econômica e cultural tem produzido.

O ator social se apresenta sob uma nova morfologia da sociedade e com ela faz suas reivindicações. Tais mediações sociais competem ao Estado, mesmo quando contra ele são dirigidas. A sociedade em rede é um fenômeno novo que entra com força na cena política. Como se viu, as demandas por moradia social já se valem dessa ferramenta tecnológica e, por ela, tendem a se expandir, exigindo leitura adequada por meio de políticas públicas que a tudo se antecipem, pacificando preventivamente outros conflitos que se anunciam próximos.