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CAPÍTULO I – REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA – ASPECTOS

1.2 O Direito Social à Moradia

1.2.3 O direito à moradia como categoria dos Direitos Humanos

A consubstanciação formal dos direitos humanos teve na DUDH de 1948 a sua matriz. Porém, respeitadas as razões jusnaturalistas dos que defendem a preexistência material desses direitos à DUDH, é do pragmatismo advindo do singelo ponto de vista da positivação normativa que tais direitos foram catalogados referencialmente e, a partir daí, se expandiram até a formação de um sofisticado sistema de direitos humanos e sua correspondente proteção jurídica. A positivação formal dos direitos humanos tem, por esse viés, a vantagem de torná- los concretos em prol dos indivíduos humanos. Os direitos humanos foram então categorizados exatamente por esse ponto de vista formal-positivo. Assim, em relação ao direito à moradia, essa mesma gênese formal o trata entre os demais direitos humanos declarados e, como tal, instituído. Evidencia-se, pois, o estágio e concretude de um pensamento emancipatório. Nessa direção, a Ficha Informativa n.º 21 do ACNUDH (pp. 6-7) indaga e em seguida responde sobre o que a habitação tem a ver com os direitos humanos. Ressalta o quanto o direito internacional ou as legislações nacionais representam para a dignidade, a saúde física e mental e a qualidade de vida das populações humanas, emergindo

daí as implicações que o tema traz aos direitos humanos. Afinal, uma habitação condigna é uma necessidade humana básica, universalmente reconhecida.

Segundo o Centro das Nações Unidas para os Estabelecimentos Humanos, mais de 1 bilhão de pessoas ao redor do mundo não dispõe de habitação adequada, sendo que cerca de cem milhões não têm sequer abrigo. Some-se a isso o fato de que o abastecimento de água potável e o saneamento básico são necessidades diretamente ligadas às condições de habitação condigna, embora cerca de 1,2 bilhão de pessoas nos países em desenvolvimento não tem acesso à água potável, enquanto 1,8 bilhão não dispõe de saneamento básico. Trata- se, pois, de questão que afeta intensa e diretamente considerável número de pessoas, tornando por isso relevante a ação global, reconhecendo então a importância de incluí-las no rol dos direitos humanos, fazendo da espécie pedra angular de estratégia global para a proteção coletiva. Do documento-compromisso firmado entre as nações se extrai, in verbis:

O direito a uma habitação condigna está universalmente reconhecido pela comunidade das nações ... Todas as nações, sem exceção, reconhecem as obrigações assumidas no sector da habitação, como o evidencia a instituição, neste domínio, de ministérios ou instituições, a afectação de fundos ao sector da habitação e as respectivas políticas, programas e projectos ... Todos os cidadãos de todos os estados, por mais pobres que sejam, têm o direito de esperar que seus governos se preocupem com as suas necessidades de alojamento, e reconheçam a obrigação fundamental de proteger e de melhorar as casas e os bairros, em vez de os danificar e destruir. (ACNUDH/FI, 1995-2004, p.7)

A noção de habitação condigna, consoante a Estratégia Global das Nações Unidas, compreende suficiente proteção à intimidade; propugna pelo espaço, iluminação e segurança adequados ou suficientes; estabelece a necessidade de infraestruturas básicas e localização apropriada em relação ao local de trabalho e de serviços essenciais; e, ainda, limita o custo do acesso a um limite razoável.

No plano interno a questão já se acha assimilada na perspectiva normativa e doutrinária, embora se faça desejosa de afirmações jurisprudenciaia e políticas mais incisivas. De todo modo, o direito à moradia pode ser inteiramente extraído dos princípios constitucionais e materiais fundamentais, inclusive diante da larga legislação infraconstitucional inaugurada com a LF n.º 10.257/2001 (Estatuto da Cidade), até o ápice no advento da LF n.º 11.977/2009, ao instituir o Programa Minha Casa, Minha Vida – PMCMV, com as alterações que lhe sucederam. A repartição de competências entre os entes federados e a política urbana sobre moradia social já se acham disciplinadas, bastando considerar que a CF de 1988 utiliza a designação genérica no título reservado aos ―direitos e garantias

fundamentais‖, subcategorizando-os entre ―direitos e deveres individuais e coletivos‖ (art. 5.º) e ―direitos sociais‖ (arts. 6.º ao 11).

Na perspectiva normativa ressente-se o sistema de regras pontuais que façam a compatibilização entre os fundamentos dos procedimentos licitatórios públicos, regulados de modo geral pela LF n.º 8.666/1993, com as situações nas quais a titulação pública aos beneficiários possa constituir embaraço hermenêutico envolvendo o princípio constitucional da impessoalidade, de que fala o art. 37 da CF. No entanto, isso também é superável por flexibilidade hermenêutica, na medida em que essas políticas públicas, nesse ponto específico, se apresentam incompatíveis com o sentido de tutela a que se presta a Lei das Licitações. Afinal, o direito social à moradia alinha-se com as hipóteses classificáveis como ARIS, de modo que o interesse social por si mesmo afasta o rigor licitatório que é o modelo apropriado para regular os negócios da Administração Pública. Questões de políticas públicas não podem ser tratadas como questões de negócios públicos. Mesmo quando a regularização fundiária urbana toma em conta ocupações classificadas como ARINE, isto é, sem conotação de direito social à moradia, vale-se do precedente trazido com a LF n.º 9.262/1996, em seu art. 3.º, ao prever a possibilidade de venda direta ao ocupante, cuja constitucionalidade foi afirmada até mesmo pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADIN 2990-DF. É valioso enxergar nessa excepcionalidade que o rigor sistêmico da Lei de Licitações não tem pertinência com essas políticas públicas de regularização fundiária urbana. Se a LF n.º 9.262/1996 se reporta a imóveis específicos, localizados na Área de Preservação Ambiental – APA do Rio São Bartolomeu, ainda assim se abre a possibilidades interpretativas por extensão, apanhando casos outros que até então pareçam sob omissão de tratamento normativo.

Os direitos fundamentais – ou direitos do homem – não se sujeitam a cláusulas de retrocesso, ou seja, uma vez estabelecidos no contexto das regras, somente poderão avançar no rumo do aperfeiçoamento e da completude do respectivo sistema protetivo. Com propriedade afirma Bobbio (2004, p. 203):

A princípio, a enorme importância do tema dos direitos do homem depende do fato de ele estar extremamente ligado aos dois problemas fundamentais do nosso tempo, a democracia e a paz. O reconhecimento e a proteção dos direitos do homem são a base das constituições democráticas, e, ao mesmo tempo, a paz é o pressuposto necessário para a proteção efetiva dos direitos do homem em cada Estado e no sistema internacional.

[...] Direitos do homem, democracia e paz são três momentos necessários do mesmo movimento histórico: sem direitos do homem reconhecidos e efetivamente protegidos não existe democracia, sem democracia não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos que surgem entre os indivíduos, entre grupos e entre as grandes coletividades tradicionalmente indóceis e tendencialmente autocráticas que são os Estados [...].

Retornando, porém, à raiz do direito à moradia no plano do direito interno pelas mãos da doutrina, Saule Junior (2004, p. 166) assim confirma:

Sobre o reconhecimento do direito à moradia como direito fundamental, a norma constitucional de destaque é o artigo 6.º que, ao definir os direitos sociais, incluiu entre eles, o direito à moradia, resultante da emenda constitucional n.º 26, de 14 de fevereiro de 2000.

1.3 Direito Social à Moradia: um Esforço para Formular um Conceito, e Também um