• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO I – REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA – ASPECTOS

1.9 Regularização Fundiária Urbana de Interesse Social e seu Entrelaçamento com

essas pessoas e prestar-lhes serviços‖.

1.9 Regularização Fundiária Urbana de Interesse Social e seu Entrelaçamento com a Pesquisa

De acordo com o Diagnóstico Preliminar dos Parcelamentos Urbanos Informais no Distrito Federal (SEDUH/DF, 2006, p. 25), diante de uma população total de 2.383.614 habitantes, 533.578 viviam em parcelamentos urbanos informais40 implantados, e apenas 12.073 habitantes viviam em parcelamentos urbanos formais. Falas públicas locais autorizadas já anunciam que a informalidade atual e aproximada atinge 1/3 (um terço) da população do Distrito Federal. Se assim for, essa circunstância passa a constituir fator desafiante à soberania do Estado, além de expor sua aparente incapacidade de gestão da vida social urbana. Ademais, esses números estão a sugerir que, não obstante as ferramentas jurídicas e políticas disponíveis, ainda persistem problemas que estão a emperrar a regularização fundiária urbana, uma vez que, em lugar de ceder, contrariamente, os números da informalidade indicam tendência de crescimento. Essa circunstância desperta a consciência da anomalia científica: algo está fora do padrão dos acontecimentos imaginados pelo sistema

39

Davis (2006, p. 31). O autor cita estudos da pobreza em Dublin em 1805, comparados ao relatório produzido pelo Programa de Assentamentos Humanos das Nações Unidas de 2003 – que fez uma espécie de ―auditoria global da pobreza urbana‖ em dois séculos de reconhecimento científico da vida nas favelas.

40

Entende-se por parcelamentos informais ou espontâneos aqueles que não tiveram integralizado o processo de urbanização, seja por meio da execução das medidas jurídicas ou materiais, tais como o planejamento urbano, aprovação e licenciamentos pelas autoridades urbanísticas e ambientais, e registro válido do parcelamento no serviço registral imobiliário. Neles predominam a falta ou a exiguidade de infraestruturas e serviços urbanos, edificações de baixa qualidade construtiva, baixo índice de padronização e aproveitamento do espaço urbano, desrespeito ou ausência de critérios de fixação das taxas de ocupação por área, ocupações em áreas de proteção ambiental ou de risco, enfim, predominância das condições gerais que não asseguram boa qualidade de vida e bem-estar da população.

de normas da regularização fundiária urbana, que não o faz (ou não o deixa) funcionar adequadamente, ou de algum modo não atende à expectativa da sua concepção projetada, exigindo então algum conhecimento novo capaz de possibilitar o controle dos fenômenos.

Nesse particular e relevante aspecto, como a ―ciência normal‖ no conceito de Kuhn (2009, p. 78) se ocupa com os fatos regulares da natureza, para a ciência contemporânea o fenômeno não linear é o que desperta interesse:

[...] examinaremos descobertas escolhidas e descobriremos rapidamente que elas não são eventos isolados, mas episódios prolongados, dotados de uma estrutura que reaparece regularmente. A descoberta começa com a consciência da anomalia, isto é, com o reconhecimento de que, de alguma maneira, a natureza violou as expectativas paradigmáticas que governam a ciência normal. Segue-se então uma exploração mais ou menos ampla da área onde ocorreu a anomalia. Este trabalho somente se encerra quando a teoria do paradigma for ajustada, de tal forma que o anômalo se tenha convertido em esperado.

O aparato normativo e as empreitadas políticas não foram bastante para proporcionar resultados concretos no tratamento do fenômeno da expansão urbana informal no Distrito Federal. Tal situação permite um paradoxo com a situação de anomalia de Kuhn, fazendo despertar a análise das razões do fracasso ou da insuficiência, bem como, sendo possível, apresentar proposições que possam influir na construção ou ajuste paradigmático.

Lado outro, o expoente da informalidade ainda tem o condão de influir na formação de uma moralidade referencial permissiva sobre a qual se apoia a própria legalidade do sistema de regras. A razão prática41 desse elevado percentual da população que convive ou aceita complacente algum modo de ilegalidade nessas formas de ocupações urbanas opera também na formulação de uma moralidade coletiva de propensão tolerante. Esta, por sua vez, ao integrar o processo da hermenêutica jurídica, tende à relativização da compulsoriedade normativa dos planos de gestão da coisa pública e outros interesses difusos, quando não a esvazia. Orienta também a decisão política, tornando-a mais receptiva ou conformada com o estado geral do fato, ainda que isso resulte no consequente enfraquecimento da razão normativa ou, simplesmente, atue na dimensão discricionária da ação pública, tornando-a preponderante sobre a vontade da regra vinculante, pela sedução advinda de simples vantagens eleitoreiras.

41

―A modernidade inventou o conceito de razão prática como faculdade subjetiva. Transpondo conceitos aristotélicos para premissas da filosofia do sujeito, ela produziu um desenraizamento da razão prática, desligando-a de suas encarnações nas formas de vida culturais e nas ordens da vida política. Isso tornou possível referir à razão prática à felicidade, entendida de modo individualista e à autonomia do indivíduo [...].‖ (HABERMAS, 2012, p. 17)

Desse modo, as políticas públicas – e até mesmo a finalidade existencial do Estado – devem se ocupar com os números da irregularidade fundiária urbana no Distrito Federal, evitando-se a volatização dos valores morais e normativos que orientam o outro conjunto das pessoas que se dão ao cumprimento de regras. Afinal, é no entremeio desse paradoxo que se forma a moralidade coletiva, e esta orienta juízos políticos e jurídicos, ao interpretar a factualidade do meio social. Logo, por meio da concretização da regularização fundiária urbana também se legitimará algum conteúdo moral, jurídico, político e social referente à questão da informalidade das ocupações urbanas, segundo os rumos determinados pela razão prática da ação. Por intermédio dela o Estado poderá (ou não) consolidar a sua soberania interna, a depender do sentido visado na elaboração e execução de políticas públicas. Se verdadeiramente democráticas, atestarão a legitimidade ao Estado-providência e, ainda, farão cumprir a vontade política que embalou o constituinte quando expressamente quis construir uma sociedade livre, justa e solidária; quando quis garantir o desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e da marginalidade; quando visou reduzir as desigualdades sociais e regionais, além de promover o bem de todos, como assim preconizam os incisos I, II, III e IV do artigo 3.º da CF de 1988.

O trabalho que ora se desenvolve é um convite à formação de juízo crítico quanto a esse particular campo da atuação estatal no resultado que se quer alcançar em favor das populações, em geral periféricas e de baixa renda, que se viram de certo modo expulsas ou empurradas à ocupação dessas zonas dotadas de pouca ou nenhuma infraestrutura condizente com a dignidade da pessoa humana. Nesses espaços preponderam as más condições de moradia. Neles, suas respectivas populações são compelidas a viver desafiando riscos à integridade física ou à saúde diante de instabilidades geológicas ou contaminação dos derradeiros terrenos que lhes restaram, ou simplesmente porque são impróprios à moradia, como aqueles sujeitos a alagamentos e outros açoites da natureza. Não têm acesso aos serviços públicos básicos, situam-se longe das microrregiões nas quais se concentram os empregos e rendas, sujeitam-se à falta ou à precariedade das infraestruturas urbanas. Não podem contar com a segurança jurídica, não sabem se poderão ou não permanecer no lugar, imunes às abruptas desocupações forçadas. Em geral, são populações que vivem abaixo da linha da dignidade humana idealizada nos conceitos de Direitos Humanos e nos padrões convencionais do Direito Internacional Público assentados nos tratados patrocinados pelas Nações Unidas.