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CAPÍTULO III – REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA: ASPECTOS

3.2 O Método Jurisdicional de Solução de Conflitos

A técnica inquisitorial está fortemente atrelada às práticas judiciárias ocidentais forjadas para revelar os fatos e até mesmo a própria ―verdade‖ acerca do direito aplicável ao caso concreto. A respeito do inquérito, de acordo com Foucault (1999, pp 16-17), ele surgiu no meio da Idade Média e serviu como método para produzir conhecimento:

[...] conhecimento é simplesmente o resultado do jogo, do afrontamento, da junção, da luta e do compromisso entre os instintos. É porque os instintos se encontram, se batem e chegam, finalmente, ao término de suas batalhas, a um compromisso, que algo se produz. Este algo é o conhecimento.

[...] o conhecimento não é da mesma natureza que os instintos, não é como que o refinamento dos próprios instintos. O conhecimento tem por fundamento, por base e por ponto de partida os instintos, mas instintos em confronto entre si, de que ele é apenas o resultado, em sua superfície. O conhecimento é como um clarão, como uma luz que se irradia mas que é produzido por mecanismos ou realidades que são de natureza totalmente diversa. O conhecimento é o efeito dos instintos, é como um lance de sorte, ou como resultado de um longo compromisso.

Porém, segundo o autor – escudando-se em Nietzsche –, os impulsos de rir, deplorar e detestar, quando chegam ao estágio do conhecimento, não significa que se apaziguaram, se reconciliaram ou chegaram a uma unidade. Ao contrário, foi porque lutaram ferozmente entre si, buscando aniquilar uns aos outros. Porém, é desse estado de guerra que eles chegam finalmente a um estado no qual o conhecimento aparece como ―a centelha entre duas espadas‖, a qual dá lugar a ―um longo compromisso‖ entre os membros da comunidade.

As ―espadas‖ em luta no processo judicial – que haverão de produzir a ―centelha do conhecimento‖ – estão bem simbolizadas pela ―tese‖ com a qual o autor formula uma pretensão de natureza contenciosa e a apresenta por meio de uma petição inicial70 ao Estado-

70

CPC, art. 282: ―A petição inicial indicará: I - o juiz ou tribunal, a que é dirigida;

II - os nomes, prenomes, estado civil, profissão, domicílio e residência do autor e do réu; III - o fato e os fundamentos jurídicos do pedido;

IV - o pedido, com as suas especificações; V - o valor da causa;

juiz, e pela ―antítese‖ da contestação71 do réu, ao opor-se na mesma medida e forma sobre aquilo que lhe está sendo demandado. Nessa mesma lógica modernista formal, o Estado dá a sua resposta jurisdicional por meio da ―síntese‖ de uma sentença, louvando-se antes, predominantemente, na função cognitiva do processo judicial e sua técnica violenta, que estimula a beligerância como meio de apuração da formal ―verdade dos fatos‖ e a ―verdade do direito‖ aplicável ao caso concreto.

O método, portanto, ao invés de estimular a alteridade, a solidariedade e a composição voluntária e comunicativa dos conflitos como modo de se alcançar o ―senso comum‖, ao contrário, estimula as partes à luta plena, lançando-as metaforicamente à arena de um Coliseu forense contemporâneo, armadas com os respectivos argumentos e provas, aguardando que da ―centelha de suas espadas‖ brote a verdade, o conhecimento e, em última análise, o direito aplicável ao caso concreto que se quis conhecer ou depurar. Um dos digladiadores se apresentará como vencedor, enquanto o outro, subjugado e reduzido aos escombros da sucumbência, ainda terá que suportar resignadamente, sob ameaça das armas da justiça estatal impositiva, o comando determinado pelo revés sofrido. Enquanto isso, da platéia ecoarão aplausos dereconhecimento da verdade alcançada pelo vencedor, como que legitimando toda essa violência. Parece que o modelo atual de justiça operacional ainda conserva muito da Roma Antiga. Talvez não à toa o velho Direito Romano continua inspirando tantos hermeneutas positivistas, como costumam atestar suas citações eruditas.

Esse aspecto, obviamente, não é o ideal para assegurar bons resultados na solução dos conflitos em geral, e dos sociais em particular, sobretudo os de natureza coletiva. O método judicial traz à tona a vastidão dos fatos que estão na base causal do conflito, mas não tem o condão de apaziguá-los ou fazer a reconciliação das partes por meio de uma solução imposta e por isso mesmo violenta. Desconsidera inclusive que o campo e o objeto já estão permeados por confrontos igualmente violentos, não obstante o aviso de que violência somente traz mais violência. A paz imposta é formal e transitória. Somente dura enquanto perdurarem as condições de dominação daquele que impôs a paz ao seu modo, e não sob a perspectiva de felicidade dos contendores. Aliás, essa ambiguidade é patente na medida em que a reconciliação somente pode advir de uma livre motivação da psique, e não de uma vontade soberana a ela externa que, como se pudesse aliená-la, simplesmente a substitui por violência impositiva legitimada por uma relação de poder. Na sua técnica de estimular o conflito para

VII - o requerimento para a citação do réu.‖ 71

CPC, art. 300: ―Compete ao réu alegar, na contestação, toda a matéria de defesa, expondo as razões de fato e de direito, com que impugna o pedido do autor e especificando as provas que pretende produzir.‖

daí extrair-lhe a ―centelha‖ da verdade, além de acirrar os ânimos, ainda assume a risco de levar a situação ao perigo da perda de controle, pois que a violência imanente estimula a si mesma. Então, arremata o autor (FOUCAULT, 1999, p. 22): ―Não há, portanto, no conhecimento uma adequação ao objeto, uma relação de assimilação, mas, ao contrário, uma relação de distância e dominação; não há no conhecimento algo como felicidade e amor, mas ódio e hostilidade; não há unificação, mas sistema precário de poder.‖

Ademais, não bastasse a arrogância autoritária do método judicial para obter esse conhecimento, suas fórmulas procedimentais ainda tropeçam sem respostas naqueles limites objetivos e subjetivos da lide. (Ver subitem 1.11 e notas n.ºs 48 e 49.) Tais limites, embora sejam determinados por regras infraconstitucionais do procedimento, são fortemente robustecidos pelo intangível comando constitucional consubstanciado no princípio do devido processo legal72, sendo este uma das garantias fundamentais no Estado Democrático de Direito. Por isso, é altamente vinculante e limitador à atuação do juiz, devendo este manter-se contido nesse âmbito formal rígido.