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CAPÍTULO I – REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA – ASPECTOS

1.10 O Estado Tripartido, os Direitos Sociais e as Políticas Públicas

O Estado Brasileiro foi constituído sob a forma de república federativa formada pela união indissolúvel dos Estados, Municípios e o Distrito Federal42. Orientado ideologicamente pelos princípios do constitucionalismo, o parágrafo único do artigo 1.º da Constituição faz aviso dizendo que todo poder emana do povo, indicando em seguida por meio do art. 2.º que a onipotência se faz representada pelos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, nessa ordem, independentes e harmônicos.

Recorrendo à dimensão histórica, verifica-se que ao modelo de Estado de Direito amalgamado nos princípios democráticos liberais seguiu-se o Estado Social de Direito, embora nem sempre verdadeiramente democrático. Somente depois surge a terceira e nova concepção de Estado, o Estado Democrático de Direito, ao reunir em um horizonte mais largo as garantias dos dois antecedentes. No entanto, em todos esses modelos o exercício do poder é tripartido nos fundamentos da clássica Teoria Geral do Estado, como assim é dada por Montesquieu, de sorte a garantir o equilíbrio político e com isso evitar a concentração e supremacia de um dos poderes em face dos outros. O desequilíbrio é a situação antidemocrática típica nos Estados totalitários.

No entanto, essa divisão, ao passo que outorga independência aos poderes, os mantém organicamente sintonizados pelo ideal do funcionamento harmônico. Para Silva (2005, p. 110), ao discorrer sobre a independência e harmonia dos poderes republicanos, mesmo na nítida tripartição, existem interferências entre os campos de poder por meio de um sistema de pesos e contrapesos necessário ao equilíbrio democrático e indispensável à realização do bem comum, com isso evitando-se o arbítrio e o desmando entre os agentes de poder, notadamente em face dos governados:

A independência dos poderes significa: (a) que a investidura e a permanência das pessoas num dos órgãos do governo não depende da confiança nem da vontade dos outros; (b) que, no exercício das atribuições que lhes sejam próprias, não precisam os titulares consultar os outros nem necessitam de sua autorização; (c) que, na organização dos respectivos

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CF/1988, art. 1.º: ―A República Federativa do Brasil, formada ela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de direito e tem por fundamentos:

I – a soberania; II – a cidadania;

III – a dignidade da pessoa humana;

IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo jurídico.‖

serviços, cada um é livre, observadas apenas as disposições constitucionais e legais; [...]

[...] A harmonia entre os poderes verifica-se primeiramente pelas normas de cortesia no trato recíproco e no respeito às prerrogativas e faculdades a que mutuamente todos têm direito. De outro lado, cabe assinalar que nem a divisão de funções entre os órgãos do poder nem sua independência são absolutas.

Porém, tal aspecto constitucional-estrutural lança efeitos sobre certas políticas públicas, quando estas dependem de providências que ora estão sob a competência de um, de outro ou de todos os poderes a uma só vez, circunstância que então passa a exigir sincronia das ações fundadas no princípio da harmonia, embora questões políticas ou ideológicas por vezes produzam afastamentos nem sempre facilmente contornáveis.

Pode-se afirmar que, no tocante às políticas públicas voltadas à concretização do direito social à moradia, há exemplo que demanda a tríplice e harmônica atuação dos Três Poderes. Afinal, embora o desejo onipotente tenha instituído o direito social à moradia e advertido quanto à sua aplicação imediata (CF, art. 5.º, § 1.º), trata-se de prestação estatal complexa. Não obstante o fenômeno da recepção de certas leis antigas, subsistiu a exigência de outras leis para o complemento sistêmico, a exemplo do que se deu com o Estado da Cidade (LF n.º 10.257/2001) e com a LF n.º 11.977/2009, ao instituir o Programa Minha Casa, Minha Vida. Não se pode olvidar de outras leis correlatas, como a que regula a contratação e disposição de bens públicos, como é o caso da Lei das Licitações n.º 8.666/1993 e da LF n.º 9.262/1996, ao permitir, como regra de exceção, a venda direta de terrenos públicos aos ocupantes informais encravados na área da Bacia Hidrográfica do Rio São Bartolomeu, no Distrito Federal. Outras leis locais, editadas pela Câmara Legislativa, também integram o aparato normativo que orienta a regularização fundiária no Distrito Federal, como é a Lei Distrital – LD n.º 2.105/1998, que instituiu o Código de Edificações do Distrito Federal; a LD n.º 2.689/2001, que dispõe sobre a alienação, legitimação de ocupação e concessão de direito real de uso das terras públicas rurais pertencentes ao Distrito Federal e à Companhia Imobiliária de Brasília – TERRACAP; a LCD n.º 854/2012, que atualiza a LCD n.º 803, de 25 de abril de 2009 e aprova a revisão do Plano Diretor de Ordenamento Territorial do Distrito Federal – PDOT e dá outras providências.

Tais exemplares da legislação são mostras de que o Poder Legislativo local e federal atuaram, no âmbito das suas respectivas competências, para estabelecer os parâmetros ou balizas das políticas públicas de atendimento aos titulares do direito social à moradia.

O Poder Executivo local cuidou até mesmo da criação de estrutura burocrática voltada à concreção do direito social à moradia, além de apregoar ações ou esforços para a premente

regularização fundiária urbana. Ademais, conta com vultosas dotações orçamentárias para aplicação em programas e projetos de regularização, embora fuja ao propósito deste trabalho aferir méritos em face dos resultados.

Por fim, ao Poder Judiciário, a Constituição lhe outorga competência para dirimir os conflitos individuais e coletivos relativos às liberdades públicas e ao patrimônio, assegurando que ―a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito‖ (artigo 5.º, XXXV).

Ora, os direitos sociais, inclusive o de moradia, de aplicação imediata, em tese, podem ser objeto de tutela tanto jurisdicional reparadora, diante de lesão consumada, quanto preventiva, em face de ameaça a direito individual ou coletivo.

Em volta do direito social à moradia gravitam conflitos coletivos históricos e socialmente complexos, que ainda mais se complexificam no fenômeno da sobreposição – no mesmo espaço-tempo – de questões ligadas ao direito de propriedade, à ordem urbanística e à proteção ambiental, estes, interesses difusos. Assim, quando pairam insatisfeitos os interesses dos respectivos titulares desses direitos da mesma magnitude e hierarquia constitucional, surgem conflitos reais que se manifestam sob a forma de lesão consumada, ou ameaça aos respectivos interesses, de todo modo fazendo incidir a possibilidade de prestações jurisdicionais de natureza restaurativa ou preventiva, respectivamente nas hipóteses de lesão ou ameaça.

Silva (2005, pp. 553-554), ao discorrer sobre a atuação do Poder Judiciário diante dos conflitos em geral, assim consigna:

De passagem, já dissemos que os órgãos do Poder Judiciário têm por função compor conflitos de interesses em cada caso concreto. Isso é o que se chama função jurisdicional ou simplesmente jurisdição, que se realiza por meio de um processo judicial, dito, por isso mesmo, sistema de composição de conflitos de interesses ou sistema de composição de lides.

Os conflitos de interesses são compostos, solucionados, pelos órgãos do Poder Judiciário com fundamento em ordens gerais e abstratas, que são ordens legais, constantes ora de corpos escritos que são as leis, ora de costumes, ou de simples normas gerais, que devem ser aplicados por eles, pois está praticamente abandonado o sistema de composição de lides com base em ordem singular erigida especialmente para solucionar determinando conflito.

Portanto, o horizonte das providências estatais para a regularização fundiária urbana exige, conforme a necessidade do caso concreto, essa tripla atuação sincronizada: a atividade legiferante especial do Poder Legislativo; as ações e recursos do Poder Executivo; e, a função

jurisdicional do Poder Judiciário. A persistir insatisfeito o direito, somente restará crer que, em verdade, o que ainda falta é apenas a ação humana embalada pela vontade política de agir, dependente unicamente da decisão dos agentes públicos para realizar o direito social à moradia.

No entanto, persiste a sensação da anomalia de que fala Kuhn (2009, p. 78), na medida em que a regularização fundiária urbana ainda empaca nas mãos do Estado, dívida sob a responsabilidade de seus três poderes independentes, que a rigor deveriam funcionar com harmonia institucional. Talvez uma revisão crítica feita pelos agentes públicos a respeito de seus esforços (ou falta deles), em um contexto de relações comunicativas pautadas na cortesia e no respeito institucional recíproco, possa fazer diferenças em proveito das populações menos afortunadas, que ainda não tiveram satisfeitos os seus direitos sociais mais elementares.