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CAPÍTULO I – REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA – ASPECTOS

1.3 Direito Social à Moradia: um Esforço para Formular um Conceito, e Também

1.3.3 A habitação e o mínimo existencial

Determinados direitos materiais na ordem jurídica são de tal envergadura que se colocam hierarquicamente em relação de precedência a outros de menor porte. São, pois, direitos de inaugural imprescindibilidade, sem os quais a existência, a dignidade humana e a organização social não seriam possíveis, mesmo porque o afastamento da correspondente garantia importaria verdadeiro capitis diminutio do indivíduo, reduzindo-o a uma condição subumana.

A relação entre Estado e sociedade é marcadamente dominada por direitos e obrigações recíprocas, assumindo o primeiro, na contrapartida, a condição de guardião dos direitos e garantias daqueles. No entanto, os Estados nacionais em geral se acham enfraquecidos diante do poder das corporações, que escapam até mesmo ao controle estatal. O Estado Social em particular, talvez mais intensamente afetado pelo poder corporativo, se acha limitado quanto às suas possibilidades materiais de agir e fazer cumprir suas obrigações frente à comunidade interna, quase que capitulando quando diante do dilema de eleger as demandas que serão prioritariamente atendidas, em concurso com aquelas mais palatáveis e que podem ser manobradas ao gosto da conveniência e oportunidade políticas. Não se pode olvidar que a má gestão e as formas de evasão de recursos públicos também contribuem drasticamente para a redução das reservas com as quais o Estado haveria de fazer frente a esses compromissos normativos diante da comunidade credora.

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A habitabilidade constitui tópico expresso em um dos sete eixos da ação global planejada pela ONU e à qual o Brasil aderiu. A ―modernização‖ das habitações também está inscrita entre tais diretrizes, podendo ser traduzida na ação da regularização fundiária dos assentamentos urbanos informais e na respectiva dotação de serviços públicos e infraestruturas básicas, com segurança jurídica aos beneficiários mediante o correspondente título de legitimação da ocupação.

No entanto, o desejo constituinte, originário e onipotente, já fez algumas dessas escolhas e as inscreveu como prioridades sob a forma de princípios e objetivos fundamentais outorgados à comunidade. Identificá-las, portanto, é tarefa que não mais demanda esforços hermenêuticos. Por isso, sem que essas prioridades positivadas pela ordem constitucional sejam inteiramente cumpridas, as contraprestações estatais em proveito da comunidade não se sujeitam à discricionariedade que em regra assiste ao administrador público para aplicar recursos em demandas nem tanto prementes. Para a doutrina jurídica, sustenta Carvalho Filho (2012, pp. 49-50), sobre o poder discricionário:

A lei não é capaz de traçar rigidamente as condutas de um agente administrativo. Ainda que procure definir alguns elementos que lhe restringem a atuação, o certo é que em várias situações a própria lei lhe oferece a possibilidade de valoração da conduta. Nesses casos, pode o agente avaliar a conveniência e a oportunidade dos atos que vai praticar na qualidade de administrador dos interesses coletivos. [...].

Trata-se, sem dúvida, de significativo poder para a Administração. Mas não pode ser exercido arbitrariamente. [...]

A discricionariedade é um poder político, porém não é poder absoluto. Por detrás de discursos que afirmam veementemente a intangibilidade e indiscutibilidade do poder discricionário é que costumam se esconder escolhas arbitrárias, manifestamente feitas como modo de atender a interesses particularizados ou ilícitos. A discricionariedade como poder absoluto, portanto, não passa de mito. Com efeito, o administrador público permanece jungido às diretrizes positivas na ordem jurídica; como exemplo disso, aos princípios e objetivos fundamentais em que se apoia o próprio Estado Democrático de Direito, ao eleger as prioridades com as quais a onipotência expansiva do Poder Constituinte manifestado em 1988 pretendeu ―construir uma sociedade livre, justa e solidária‖. (CF, artigo 3.º, inciso I)

Assim, a ordem jurídico-constitucional, ao tecer a hierarquia dessas prioridades – começando pelos direitos fundamentais dos indivíduos –, cria para o administrador público uma vinculação correspondente, dela não podendo ele escapar sem incorrer em ilegalidade manifesta. A legalidade17 está encartada como princípio administrativo; dela se afastando o administrador público, incorre em ato ilegal, por isso sujeitando-se ao controle que compete à esfera judiciária ou aos tribunais de contas, concorrentemente.

A moradia digna ou adequada constitui-se em uma dessas dimensões prioritárias determinadas pelo desígnio político-constitucional, gerando para os indivíduos um direito (ou crédito) e, no mesmo passo, para o Estado um dever, brotando dessa relação jurídica a

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CF/88, art. 37: ―A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: [...].‖

possibilidade de obter-se a correspondente prestação até mesmo compulsória – nas hipóteses em que os indivíduos não reúnam condições pessoais para alcançar o objeto do desejo em meio à dinâmica de um sistema da economia de mercado liberal. Em outras palavras, o direito social à moradia é uma dessas categorias prioritárias cuja concretização está incrustada na conta de responsabilidades sociais do Estado, como assim expressamente estabelece o artigo 6.º da CF de 1988. É, pois, premissa formal e material do próprio Estado Democrático de Direito, conforme assim se abre o texto constitucional brasileiro com o seu artigo inaugural18.

A cultura da supremacia autoritária do poder discricionário já foi desafiada e vencida por meio de pronunciamento máximo proferido pelo Supremo Tribunal Federal, ao julgar a Arguição de Relevância – AR autuada sob o n.º 639337-SP, julgamento de 23/08/2011, cuja ementa, em face da amplitude e relevância, se transcreve in totum:

CRIANÇA DE ATÉ CINCO ANOS DE IDADE - ATENDIMENTO EM CRECHE E EM PRÉ-ESCOLA - SENTENÇA QUE OBRIGA O MUNICÍPIO DE SÃO PAULO A MATRICULAR CRIANÇAS EM UNIDADES DE ENSINO INFANTIL PRÓXIMAS DE SUA RESIDÊNCIA OU DO ENDEREÇO DE TRABALHO DE SEUS RESPONSÁVEIS LEGAIS, SOB PENA DE MULTA DIÁRIA POR CRIANÇA NÃO ATENDIDA - LEGITIMIDADE JURÍDICA DA UTILIZAÇÃO DAS ―ASTREINTES‖ CONTRA O PODER PÚBLICO - DOUTRINA - JURISPRUDÊNCIA - OBRIGAÇÃO ESTATAL DE RESPEITAR OS DIREITOS DAS CRIANÇAS - EDUCAÇÃO INFANTIL - DIREITO ASSEGURADO PELO PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL (CF, ART. 208, IV, NA REDAÇÃO DADA PELA EC N.º 53/2006) - COMPREENSÃO GLOBAL DO DIREITO CONSTITUCIONAL À EDUCAÇÃO - DEVER JURÍDICO CUJA EXECUÇÃO SE IMPÕE AO PODER PÚBLICO, NOTADAMENTE AO MUNICÍPIO (CF, ART. 211, § 2.º) - LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DA INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO EM CASO DE OMISSÃO ESTATAL NA IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS PREVISTAS NA CONSTITUIÇÃO - INOCORRÊNCIA DE TRANSGRESSÃO AO POSTULADO DA SEPARAÇÃO DE PODERES - PROTEÇÃO JUDICIAL DE DIREITOS SOCIAIS, ESCASSEZ DE RECURSOS E A QUESTÃO DAS ―ESCOLHAS TRÁGICAS‖ - RESERVA DO POSSÍVEL, MÍNIMO EXISTENCIAL, DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E

VEDAÇÃO DO RETROCESSO SOCIAL - PRETENDIDA

EXONERAÇÃO DO ENCARGO CONSTITUCIONAL POR EFEITO DE SUPERVENIÊNCIA DE NOVA REALIDADE FÁTICA - QUESTÃO QUE

SEQUER FOI SUSCITADA NAS RAZÕES DE RECURSO

EXTRAORDINÁRIO -PRINCÍPIO ―JURA NOVIT CURIA‖ -

INVOCAÇÃO EM SEDE DE APELO EXTREMO - IMPOSSIBILIDADE - RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. POLÍTICAS PÚBLICAS,

OMISSÃO ESTATAL INJUSTIFICÁVEL E INTERVENÇÃO

CONCRETIZADORA DO PODER JUDICIÁRIO EM TEMA DE EDUCAÇÃO INFANTIL: POSSIBILIDADE CONSTITUCIONAL. - A educação infantil representa prerrogativa constitucional indisponível, que,

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CF/88, art. 1.º: ―A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...].‖

deferida às crianças, a estas assegura, para efeito de seu desenvolvimento integral, e como primeira etapa do processo de educação básica, o atendimento em creche e o acesso à pré-escola (CF, art. 208, IV). - Essa prerrogativa jurídica, em conseqüência, impõe, ao Estado, por efeito da alta significação social de que se reveste a educação infantil, a obrigação constitucional de criar condições objetivas que possibilitem, de maneira concreta, em favor das ―crianças até 5 (cinco) anos de idade‖ (CF, art. 208, IV), o efetivo acesso e atendimento em creches e unidades de pré-escola, sob pena de configurar-se inaceitável omissão governamental, apta a frustrar, injustamente, por inércia, o integral adimplemento, pelo Poder Público, de prestação estatal que lhe impôs o próprio texto da Constituição Federal. - A educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental. - Os Municípios - que atuarão, prioritariamente, no ensino fundamental e na educação infantil (CF, art. 211, § 2.º) - não poderão demitir-se do mandato constitucional, juridicamente vinculante, que lhes foi outorgado pelo art. 208, IV, da Lei Fundamental da República, e que representa fator de limitação da discricionariedade político- administrativa dos entes municipais, cujas opções, tratando-se do atendimento das crianças em creche (CF, art. 208, IV), não podem ser exercidas de modo a comprometer, com apoio em juízo de simples conveniência ou de mera oportunidade, a eficácia desse direito básico de índole social. - Embora inquestionável que resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, ainda que em bases excepcionais, determinar, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas, sempre que os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter impositivo, vierem a comprometer, com a sua omissão, a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional. DESCUMPRIMENTO DE POLÍTICAS PÚBLICAS

DEFINIDAS EM SEDE CONSTITUCIONAL: HIPÓTESE

LEGITIMADORA DE INTERVENÇÃO JURISDICIONAL. - O Poder Público - quando se abstém de cumprir, total ou parcialmente, o dever de implementar políticas públicas definidas no próprio texto constitucional - transgride, com esse comportamento negativo, a própria integridade da Lei Fundamental, estimulando, no âmbito do Estado, o preocupante fenômeno da erosão da consciência constitucional. Precedentes: ADI 1.484/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g. - A inércia estatal em adimplir as imposições constitucionais traduz inaceitável gesto de desprezo pela autoridade da Constituição e configura, por isso mesmo, comportamento que deve ser evitado. É que nada se revela mais nocivo, perigoso e ilegítimo do que elaborar uma Constituição, sem a vontade de fazê-la cumprir integralmente, ou, então, de apenas executá-la com o propósito subalterno de torná-la aplicável somente nos pontos que se mostrarem ajustados à conveniência e aos desígnios dos governantes, em detrimento dos interesses maiores dos cidadãos. - A intervenção do Poder Judiciário, em tema de implementação de políticas governamentais previstas e determinadas no texto constitucional, notadamente na área da educação infantil (RTJ 199/1219-1220), objetiva neutralizar os efeitos lesivos e perversos, que, provocados pela omissão estatal, nada mais traduzem senão inaceitável insulto a direitos básicos que a própria Constituição da República assegura à generalidade das pessoas. Precedentes. A CONTROVÉRSIA PERTINENTE À ―RESERVA DO

POSSÍVEL‖ E A INTANGIBILIDADE DO MÍNIMO EXISTENCIAL: A QUESTÃO DAS ―ESCOLHAS TRÁGICAS‖. - A destinação de recursos públicos, sempre tão dramaticamente escassos, faz instaurar situações de conflito, quer com a execução de políticas públicas definidas no texto constitucional, quer, também, com a própria implementação de direitos sociais assegurados pela Constituição da República, daí resultando contextos de antagonismo que impõem, ao Estado, o encargo de superá-los mediante opções por determinados valores, em detrimento de outros igualmente relevantes, compelindo, o Poder Público, em face dessa relação dilemática, causada pela insuficiência de disponibilidade financeira e orçamentária, a proceder a verdadeiras ―escolhas trágicas‖, em decisão governamental cujo parâmetro, fundado na dignidade da pessoa humana, deverá ter em perspectiva a intangibilidade do mínimo existencial, em ordem a conferir real efetividade às normas programáticas positivadas na própria Lei Fundamental. Magistério da doutrina. - A cláusula da reserva do possível - que não pode ser invocada, pelo Poder Público, com o propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar a implementação de políticas públicas definidas na própria Constituição - encontra insuperável limitação na garantia constitucional do mínimo existencial, que representa, no contexto de nosso ordenamento positivo, emanação direta do postulado da essencial dignidade da pessoa humana. Doutrina. Precedentes. - A noção de ―mínimo existencial‖, que resulta, por implicitude, de determinados preceitos constitucionais (CF, art. 1.º, III, e art. 3.º, III), compreende um complexo de prerrogativas cuja concretização revela-se capaz de garantir condições adequadas de existência digna, em ordem a assegurar, à pessoa, acesso efetivo ao direito geral de liberdade e, também, a prestações positivas originárias do Estado, viabilizadoras da plena fruição de direitos sociais básicos, tais como o direito à educação, o direito à proteção integral da criança e do adolescente, o direito à saúde, o direito à assistência social, o direito à moradia, o direito à alimentação e o direito à segurança. Declaração Universal dos Direitos da Pessoa Humana, de 1948 (Artigo XXV). A PROIBIÇÃO DO RETROCESSO SOCIAL COMO OBSTÁCULO CONSTITUCIONAL À FRUSTRAÇÃO E AO INADIMPLEMENTO, PELO PODER PÚBLICO, DE DIREITOS PRESTACIONAIS. - O princípio da proibição do retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive. - A cláusula que veda o retrocesso em matéria de direitos a prestações positivas do Estado (como o direito à educação, o direito à saúde ou o direito à segurança pública, v.g.) traduz, no processo de efetivação desses direitos fundamentais individuais ou coletivos, obstáculo a que os níveis de concretização de tais prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo Estado. Doutrina. Em conseqüência desse princípio, o Estado, após haver reconhecido os direitos prestacionais, assume o dever não só de torná-los efetivos, mas, também, se obriga, sob pena de transgressão ao texto constitucional, a preservá-los, abstendo-se de frustrar - mediante supressão total ou parcial - os direitos sociais já concretizados. LEGITIMIDADE

JURÍDICA DA IMPOSIÇÃO, AO PODER PÚBLICO, DAS

―ASTREINTES‖. - Inexiste obstáculo jurídico-processual à utilização, contra entidades de direito público, da multa cominatória prevista no § 5.º do art. 461 do CPC. A ―astreinte‖ - que se reveste de função coercitiva - tem por finalidade específica compelir, legitimamente, o devedor, mesmo que se cuide do Poder Público, a cumprir o preceito, tal como definido no ato sentencial. Doutrina. Jurisprudência.

Decerto que o exemplar da jurisprudência máxima está a falar sobre o direito social à educação básica, conforme assentado no art. 208 da CF de 198819. No entanto, a rigor do rol dos direitos sociais encartados no artigo 6.º da mesma Constituição, a educação e a moradia constituem direitos que, ao lado de outros ali referidos, encontram-se na mesma igualdade hierárquica, sem prioridades entre si, senão em relação a outros devidos pelo Estado. Poder- se-ia falar em discricionariedade, quando muito, se a escolha trágica tivesse que ser feita entre um ou outro direito social dessa mesma categoria, mas não entre um direito social e outro qualquer que lhe venha confrontar sem hierarquia ou privilégio onipotente.

Na perspectiva do sistema constitucional espanhol – que nesse ponto não difere do nosso –, a Administração Pública vincula-se às determinações, princípios e objetivos definidos na própria constituição. O conceito constitucional de ―império da lei‖ é, portanto, o império da lei e do direito como instâncias que dominam a atuação vinculada dos poderes públicos (ENTERRÍA, 2009, p. 139), circunstância que reduz o poder discricionário que toca ao administrador aos limites dados pela ordem jurídica.

Com efeito, no verdadeiro ―Estado de direito‖, a lei – ou, mais precisamente, a própria Constituição – estabelece a discricionariedade onipotente e orgânica na qual se assenta, e não é dado ao agente público esquivar-se, como afirma Enterría (p. 155):

Todo poder discrecional, pues, ha tenido que ser atribuido previamente por el ordenamiento. No hay, por tanto, discrecionalidad en ausencia o al margen de la Ley; tampoco, en ningún caso, la discrecionalidad puede equipararse a la Ley o pretender sustituirla. Ésta es, em último extremo, la razón de que no pueda nunca intentarse aplicar a la discrecionalidad a la irresistibilidad (hoy ya relativa) propria de la Ley, o su valor como expressión de la ―vontad general‖. Por amplia que sea cualquier dicrecionalidad, siempre será un quid alliud respecto de la Ley, como cualquier otro producto administrativo, y estará por ello ―sometida plenamente‖ a la Ley y al Derecho.

Logo, na democracia representativa experimentada no Brasil, os mandatários não poderão demitir-se do mandato ao qual estão vinculados e ao qual juraram cumprimento. O distanciamento do administrador às determinações constitucionais, máximas e vinculantes, traduz-se em ilegalidade manifesta, sujeitando o agente público faltoso a responder a comandos judiciais que restabeleçam o ―império da lei e do direito‖ no interesse coletivo, de modo que o desvio não venha a constituir fator de desestabilização da base do equilíbrio social-constitucional. De outro modo, o ―fenômeno da erosão da consciência constitucional‖ de que faz aviso o STF no acórdão relativo à AR 639337-SP terminaria por constituir-se em

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CF/1988, art. 208: ―O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:

I – educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiverem acesso na idade própria; [...] IV – educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco) anos de idade; [...].‖

fator de erosão da própria sobrevivência política do Estado de direito que foi construído pelo desejo-poder constituinte, mesmo porque aquela onipotência se mantém imanente20 ao ato fundacional da ordem constitucional positiva que se estaria a negar. O abandono às diretrizes constitucionais fundamentais converte-se em perigoso e inconcebível desprezo pela autoridade da Constituição, e não se esconde, inconsequente, na falácia da discricionariedade dissimulada.

Aos discursos que enaltecem essa discricionariedade somam-se as alegações de escassez de recursos públicos, embora por detrás deles não raramente se escondam interesses inconfessáveis, nem sempre lícitos. Existem, sim, questões terríveis que efetivamente colocam a Administração Pública diante de verdadeiros dilemas a respeito de determinadas escolhas. No entanto, antes de se constituírem em ―escolhas trágicas‖, a primazia no atendimento às diretrizes constitucionais fundamentais precedentes já é o bastante para reduzir amplamente as possibilidades dilemáticas, restringindo o campo das escolhas no simples confronto entre prestações fundamentais e não fundamentais21.

Ao escudar-se na cláusula de reserva do possível, a Administração Pública não pode dela se valer para mitigar ou afastar a supremacia das prestações fundamentais devidas pelo Estado, priorizando vontades ou políticas solipsistas desgarradas do desejo constituinte originário. Afinal, o princípio da reserva do possível experimenta a tensão que há entre o desejo do autocrata e o princípio-limite, este determinado por um mínimo existencial no qual o indivíduo emerge como centro e fim de toda racionalidade constituinte, ao priorizar as condições de dignidade para a vida humana.

As lutas sociais alcançaram certas conquistas, e estas não se sujeitam resignadas a retrocessos em relação às correspondentes prestações positivas devidas pelo Estado. Os direitos sociais, nessa perspectiva de fundo hermenêutico, são, pois, aqueles inafastáveis, prioritários, prementes e absolutos em relação a outros de menor porte. Uma vez conquistados e positivados os direitos sociais no equilíbrio democrático-constitucional, estes não se sujeitam a retrocessos jurídicos ou políticos, senão como desafio velado à onipotência revolucionária latente.

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―Em suma, o poder constituinte deve de algum modo ser mantido, para evitar que sua eliminação leve consigo o próprio sentido do sistema jurídico e a referência democrática que lhe deve qualificar o horizonte.‖ (NEGRI, pp. 11-12)

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Entende-se aqui por prioridades ―fundamentais‖ aquelas de decorrem do atendimento aos direitos igualmente fundamentais e, por prioridades ―não fundamentais‖, aquelas que estão – na hierarquia político-constitucional – em uma ordem de classificação sem privilégio normativo, situadas assim mais à mercê do poder discricionário do administrador público.