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Discussão crítica sobre as teorias de restauração arquitetônica: John Ruskin In Metamorfosis de monumentos y teorias de la restauración.

Livro VII. Dos acabamentos para os edifícios privados.

23 Discussão crítica sobre as teorias de restauração arquitetônica: John Ruskin In Metamorfosis de monumentos y teorias de la restauración.

material. Por isso, apresenta os sete princípios morais na metáfora das lâmpadas, propondo a idealização do trabalho manual que sustenta a utopia social. Defende a identificação da arquitetura com a natureza (e, consecutivamente, com a biologia, sua área de conhecimento), ao definir figurativamente a natureza do edifício a partir do seu nascimento, tempo de vida e inexorável morte. Aconselha, finalmente, sobre sua conservação:

Cuide bem de seus monumentos, e não precisará restaurá-los. [...] Faça-o com

ternura e respeito, vigilância incessante e mais de uma geração nascerá e desaparecerá à sombra de seus muros. Seu dia fatal chegará, mas que chegue declarada e francamente, e que nenhum substituto desonroso e falso o prive dos deveres fúnebres da memória (RUSKIN, 1996, p. 174, tradução nossa, grifo nosso.).

Conservação. Esse acautelamento do monumento, enquanto matéria, indica o valor da conservação.

Neste caso, a Lâmpada da Memória recapitula a importância que a solidez (firmitas) e a comodidade (commoditas), que integram, respectivamente, as trindades de Vitrúvio e de Alberti, têm para as ações no patrimônio.

Ruskin incia o texto de 20 capítulos recordando, com certa ternura, um ambiente natural do interior da França, exaltando toda sua beleza, nas cores vivas da persistência, do valor e das virtudes humanas. Foi a forma encontrada pelo autor para transferir esta influência à arquitetura, elemento central e testemunhal de suas reminiscências:

Se verdadeiramente podemos extrair alguma lição da história do passado, ou algum consolo à ideia de sermos recordados por aqueles que virão, que possa conferir eficácia as nossas ações, ou paciência a nossa tenácia de hoje, há dois deveres em relação à arquitetura do nosso país cuja importância é impossível enxergar: o primeiro consiste em conferir uma dimensão histórica à arquitetura de hoje, o segundo, em conservar

aquela de épocas passadas como a mais preciosa das heranças (RUSKIN, 1996, p.

159, tradução nossa, grifo nosso).

É sobre o segundo compromisso que trata a Lâmpada da Memória. Ruskin declara que os edifícios monumentais e comemorativos são sempre mais perfeitos, nobres e estáveis que os edifícios domésticos, porque seus “propósitos são históricos e metafóricos” (RUSKIN, 1996, p. 159).

Ao mesmo tempo, ressalva que a construção doméstica de um homem honrado, por conter a síntese da sua história privada, deveria também permitir sua rememoração por mais de uma geração. Nesta linha de pensamento, a importância da ascendência e o pertencimento seriam acentuados, independente de qualquer excepcionalidade formal. Fica claro que a venerabilidade da casa, nesta escala mais doméstica, fala essencialmente sobre respeito; respeito de um filho para com seu pai e, por conseguinte, para com sua memória. Ruskin arremata com a metáfora do templo:

Quando os homens não amam seus sentimentos, nem reverenciam sua casa, é sinal de que desonraram a ambos, e que nunca compreenderam a verdadeira universalidade daquele culto cristão que consistia na verdade, na superação da idolatria dos pagãos, mas não sua devoção. O nosso Deus é um Deus doméstico, tanto quanto um Deus celeste, existindo na morada de cada homem, um altar para ele. Que os homens estejam atentos a isto quando levianamente demolem esta morada espalhando suas cinzas (RUSKIN, 1996, p. 161, tradução nossa).

Permanência. “Do respeito ao passado, deduz-se o princípio da conservação” (MONEO; SOLÀ-

MORALES, 1975, p. 43, tradução nossa). O princípio da conservação remete ao dever presente de garantir a fruição futura aos nossos descendentes. Bens, florestas, cidades, memórias, quando conservados, conduzem a outro princípio, o da permanência. Já a permanência remete a tempo e tempo remete a idade. Pela primeira vez, o valor é dado ao tempo, não no sentido de antiguidade, mas de época, denotando que a componente histórica é marcada por características próprias, inclusive ajuizamentos:

Porque a glória verdadeiramente maior de um edifício não reside nem nas pedras nem no ouro de que é feito. A sua glória reside na sua idade, e naquele senso de larga ressonância, de severa vigilância, de misteriosa participação, inclusive de aprovação

ou de condenação, que nós sentimos presentes nos muros qua há tempos são

levemente tocados pelas efêmeras ondas da história dos homens, no seu plácido contraste com o caráter transitório de todas as coisas, naquela força que

atravessando o escoar das estações, das eras, o declínio e o surgimento das dinastias, a mudança do vulto da terra e dos limites do mar, mantém a sua beleza escultórica por um tempo insuperável, reunindo épocas esquecidas a épocas que se seguiram, e que constitui a identidade, assim como concentra as simpatias das

nações. É naquela dourada pátina imposta pelo tempo, que devemos procurar a verdadeira luz, a verdadeira cor e a verdadeira preciosidade da arquitetura (RUSKIN, 1996, p. 166, tradução nossa, grifo nosso).

Ruskin defende a importância da pátina do tempo, para a arquitetura, como fonte de uma beleza que foi acrescentada ocasionalmente; por esta razão, discorda da restauração enquanto intervenção no objeto, uma vez que a supressão de caracteres autênticos que evidenciam a idade material da obra representa “a mais total destruição que um edifício possa sofrer [...]. Não nos enganemos numa questão importante: é impossível em arquitetura restaurar, como é impossível ressucitar os mortos” (RUSKIN, 1996, p. 18, grifo nosso). A restauração de edifícios, para Ruskin, é arbitrária e mentirosa. Segundo o teórico, caso a restauração se faça necessária, o edifício deve ser ‘sacrificado’ (destruído). Por fim, percebe-se o posicionamento contrário do autor, desde o princípio, com relação a apoderar-se de bens que considera alheios – seja quando intensifica o valor de transferência do bem, reivindica sua autenticidade e defende sua permanência, seja quando sugere o ‘limite à libertade’, o que constitui a chama que ilumina a última das sete lâmpadas.

7º Lâmpada: Obediência. Ruskin inicia dando conta que o resultado da arquitetura condiz com a

personificação na política, na vida, na história e na fé religiosa das cidades e afirma que há um princípio que governa essa personificação. Para Ruskin, a obediência aos princípios não significa tolhimento de liberdade, mas obediência às regras (RUSKIN, 1996). Neste aspecto o autor declara valor aos princípios. E chega a fazer divagações acerca da liberdade, de que é uma sensação enganosa e que sua existência, ou obtenção plena, é impossível. Seu argumento é o de que a obediência se fundamenta em uma espécie de liberdade, só que condicionada:

A obediência se fundamenta em uma espécie de liberdade, do contrario, se converteria em mera submissão, entretanto esta liberdade admite que a obediência possa ser perfeita; e assim, enquanto uma certa medida de ousadia é necessária para manifestar a energia das coisas, a beleza, o prazer e a perfeição de todas elas reside na limitação (RUSKIN, 1996, p. 178, tradução nossa).

Segundo Ruskin, a arquitetura de excelência também reside na limitação. O autor chama a atenção para os períodos mais específicos da história em que os condicionamentos eram mais restritivos e regulavam não só a arquitetura, que prosperava, mas também a religião, a política e as relações sociais. Ele afirma: “[...] a obediência às leis que atuam sobre as coisas é diretamente proporcional a sua grandeza” (RUSKIN, 1996, p. 179, tradução nossa). Considerava ainda que o condicionamento era um caminho para a originalidade, mas, quando isso não é compreendido, a interpretação do que realmente seja originalidade, sua verdadeira natureza, torna-se equivocada:

A originalidade não depende da invenção de novas palavras; nem a poesia de novas métricas; tampouco a pintura depende da descoberta de novas cores e de novas formas de empregá-las. Os acordes da música, as harmonías da cor, os princípios gerais da ordenação de massas escultóricas, tudo isso já foi definido e, seguramente, não nos

cabe acrescentar nada mais, sem que se produzam alterações (RUSKIN, 1996, p.

166, tradução nossa, grifo nosso).

Originalidade. A sétima e última lâmpada acende, ainda, o valor do original. Novamente o conceito de

Aristóteles e Alberti é revisitado. Para Ruskin, a originalidade depende do talento capaz de atuar sobre o conhecido – original –, transformando-o, convertendo-o em algo diferente. Parafraseando Gaudí, para criar algo novo, porém denso de significado, a originalidade se fará através do retorno às origens, neste movimento chamado tradição.

Com relação ao monumento, Ruskin é mais objetivo; cita a ideia de ordem e harmonia, como princípios universais que regulam todas as artes, defendendo sua necessidade, pois a originalidade fará parte da natureza do monumento, sempre que se constatar a correta manipulação dos princípios universais e a consideração com o contexto, traduzidas através da sensibilidade do arquiteto (RUSKIN 1996).

O monumento faz sentido. Em que sentido? Da discussão de valor moral que dá mérito à arquitetura, a partir de uma avaliação mais subjetiva, o próximo autor vai aproximando-se, cada vez mais, do reconhecimento da qualidade estética dos edifícios a serem conservados. De forma sistemática, Aloïs Riegl irá definitivamente atribuí-los valor, por meio do sentido, explicação ou esclarecimento. Segundo Françoise Choay, “Só a investigação do sentido ou dos sentidos atribuídos pela sociedade ao monumento histórico permite fundar uma prática. Daí uma dupla abordagem – histórica e interpretativa” (CHOAY, 2001, p. 168).

2.1.2 Riegl e o valor do monumento

Deus, proteja os monumentos dos restauradores geniais (GEORG DEHIO, 1905).

Professor universitário, jurista, filósofo e historiador, mantenedor do Museu de Artes Decorativas de Viena, Aloïs Riegl, assim como o predecessor Ruskin, encarou a proteção dos monumentos a partir do despertar do significado, reconhecendo valor nos arquétipos que foram expressão de uma época, passada ou contemporânea. A recordação nostálgica ergue-se contra os efeitos devastadores que recaem sobre os monumentos e obras de arte, sobretudo os do passado, quando deixam de exercer suas funções utilitárias.

Virtù et fortuna. Os efeitos devastadores que constituem numa ameaça ao monumento referem-se às

intervenções, refazimentos e completamentos visando a unidade estilística, propostos em algumas teorias da restauração e que fogem da linha desta pesquisa. O que não foge à linha desta pesquisa é a atribuição de sentido ao monumento, visto como documento histórico que cumpre um objetivo, justificando-se assim a importância de protegê-lo e preservá-lo.

Respeito à propriedade alheia. Max Dvorák é um propagador das ideias de Riegl e

consequentemente de Ruskin. Ele ressalta ainda que “[...] preservar é um dever moral, que deve ser transmitido hereditariamente, assim como se ensina o respeito pela propriedade alheia” (DVORÁK, 2008, p. 14). Muito embora as ideias de Ruskin, Riegl e Dvorák defendam preferencialmente os monumentos históricos – o que corresponderia, na prática, ao distanciamento crítico entre duas gerações, ou em torno de sessenta anos –, suas ideias são provimento para a tese, não deixando de estar incutido em suas reflexões, o valor intrínseco.

Igualmente, o estudo mais alargado das categorias de valor do monumento fortalece qualquer discussão sobre qualidade em arquitetura, porque em síntese, sua validez está no modo como a sociedade o cria, o recebe, o percebe, tendo em vista algum benefício, um meio de ir além.

Aprender com o passado, não recriá-lo. Outra importante contribuição para a tese é a definição de

valor ligada à tradição. É importante esta categoria de valor que vincula passado e presente, franqueando ao novo a proteção em razão de sua essência, materialidade e/ ou técnica. Segundo Dvorák:

[...] o efeito dos antigos monumentos sobre a fantasia e o sentimento não depende de uma lei estilística, mas é acionado através da visão concreta que nasce quando as formas artísticas universais se unem com as características locais e individuais, com todo o ambiente que, ao longo do devir histórico, transformou o monumento em

símbolo deste ambiente (DVORÁK, 2008, p. 15, grifo nosso).

O Culto Moderno aos Monumentos: A Sua Essência e a Sua Origem, texto de 1903, Riegl, a partir de um distanciamento reflexivo, passa a observador prático, examinando a variedade de pontos de vista possíveis em relação aos monumentos. Por exemplo, sobre o aporte relativo à teoria e prática da conservação dos monumentos que avançou o século XX, conferindo um novo status ao monumento, Françoise Choay discorre: “[...] pode ser definido por um conjunto de determinações novas e essenciais, relativas à hierarquia dos valores, de que o monumento histórico é investido, suas delimitações espaço-temporais, seu estatuto jurídico e seu tratamento técnico” (CHOAY, 2001, p. 126- 127, grifo da autora).

Este tipo de ajuizamento, segundo Beatriz Mugayar Kühl, leva em conta: “[...] as formas de recepção, de percepção e fruição dos monumentos, através dos ‘valores’ explicitados por Riegl (DVORÁK, 2008, p. 43).

O Culto. Para Riegl, há no indivíduo um aspecto passivo denominado conhecimento sensorial, tema

apresentado por Alberti no capítulo anterior, e uma faculdade ativa – o arbítrio –, que ele definiu como kunstwollen, ou seja, “volição da arte, o querer da arte ou vontade artística” cuja concepção “[...] atribui às obras do passado seus próprios valores artísticos” (COLQUHUON, 2004, p. 202).

Esse olhar contemporâneo frente à defesa dos monumentos é relevante para pesquisa porque faz refletir sobre a submissão ao culto exclusivo do antigo, que se verificou, a título de exemplo, na sucessão de estilos da produção artística da época, renunciando-se outras possibilidades para a

questão, como, por exemplo, a nova cultura técnica e artística que despontava desde a Revolução Industrial (KÜHL, 1998).

Monumentos. Riegl é pioneiro ao apresentar a distinção entre monumento e monumento histórico.

Entende o monumento como “[...] uma obra realizada pela mão humana e criada com um fim específico de manter as realizações ou propósitos individuais (ou um conjunto desses) sempre vivos e presentes na consciência das gerações futuras” (RIEGL, 1987, p. 23, tradução nossa). Servir de “testemunho de algo” é principal propósito do monumento, mas não o único. Portanto, interessa saber quais as condições, a propensão natural para que uma obra tenha o caráter de monumento.

Índole dos monumentos. Não havendo, portanto, como sacralizar um único valor de referência, Riegl

solucionou o problema relativizando o valor do monumento – que, além do bônus de testemunho histórico, tem outros significados. Admitindo, pois, a necessidade da evolução da arte – sem negar a tradição –, fez com que o passado conquistasse um valor de atualidade para a vida moderna e para o trabalho, adicionando, com isso, uma aptidão extra à historicidade ao monumento, como a funcionalidade e beleza, apreciação creditada a Alberti. Afirma Riegl:

De acordo com os conceitos mais modernos, acrescentamos a isso a ideia mais ampla de que tudo aquilo que foi não poderá voltar a ser nunca mais e tudo o que foi forma o elo insubstituível e irremovível de uma corrente de evolução ou, em outras palavras, tudo que tem uma sequência, supõe um antecedente e não poderia ter acontecido da forma como aconteceu se não tivesse sido antecedido por aquele elo anterior (RIEGL, 2014, p. 11).

Escola. A problemática de atribuir diferentes valores aos monumentos, vinculando-lhe forma matéria e

conteúdo, provém do formalismo da Escola de Viena de História da Arte. Riegl, assim como Dvorák, são oriundos desta escola moderna, que posicionou a história da arte num patamar mais científico, autônomo, ou seja, a partir da concepção de critérios racionais de análise com os quais as obras de arte pudessem ser compreendidas sem prévios ajuizamentos. Portanto, a relevância do texto emblemático de Riegl vem ao encontro da tese. Para Alan Colquhoun, o texto:

[...] esclarece de maneira interessante as mudanças nas conotações das palavras

moderno e histórico. As categorias que Riegl utiliza nesse ensaio tomaram forma no

início do que recentemente passou a ser chamado de “modernismo” – numa época em que a vanguarda artística de Viena clamava por uma arte e arquitetura que refletissem a vida moderna. Apesar de seus próprios intuitos estarem limitados aos problemas teóricos e institucionais associados à preservação de monumentos artísticos, suas observações foram claramente influenciadas pelo contexto histórico em que vivia e

eram, ao mesmo tempo, suficientemente gerais para que fosse possível aplicá-las à situação contemporânea em arquitetura (COLQUHOUN, 2004, p. 201, grifo nosso).

Valores. A partir disso, Riegl propõe a distinção entre valores de memória24 (ligados ao passado, à memória, à história e à história da arte) e valores de atualidade25 (pertencentes ao presente, aos valores artísticos), ambos categorizados. Os valores de memória qualificam-se em valor de antiguidade, valor histórico e valor intencional26; já os valores de atualidade foram classificados em:

24 Dependendo da tradução, aparecem como valores de rememoração ou valores de época.

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