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Livro VII. Dos acabamentos para os edifícios privados.

20 Euritmia é proporção.

Culto. Tanto o tratado Da Arquitetura, quanto o Da Arte Edificatória sugestionam que, nas ações de

outorga do mérito de proteção ao modelo precedente, sua capacidade de sensibilização e seu significado devem ser resguardados, independendemente da antiguidade ou contemporaneidade do modelo.

Validez dos critérios. Esse tipo de resgate conceitual na base teórica busca pôr fim ao debate sobre

qual a melhor forma de posicionamento ou interpretação frente ao objeto, considerando os juízos de valor e sensos estéticos que se formam no meio social nos dias de hoje, seja no confronto entre o que se sente, juízo passivo, e o que se delibera do objeto, juízo ativo. Ao que parece, o juízo ativo conta com critérios que permitem sua mensuração; já o juízo passivo, fica condicionado a uma avaliação subjetiva do objeto.

Lemos já enunciava que “eleger bens culturais não é tarefa fácil que exija só o bom senso [...]” (LEMOS, 2013, p. 178); Argan esclarecia: “Uma ação que determina um valor é uma ação dotada de uma finalidade e cujo processo se controla: realiza-se no presente, mas pressupõe a experiência do passado e um projeto de futuro” (ARGAN, 1998, p. 23).

Assim, quando se trata de proteção do patrimônio material como legado às gerações futuras, os critérios de validade e os procedimentos que permitem executá-los fazem a diferença nos embates frente a cada interpretação do objeto e às diferentes leituras que orientam a sua apropriação. Sobre a perícia em descrevê-los de forma convincente, Dominique Poulot sugere:

Paralelamente, na história cultural, a ênfase é colocada, daí em diante, na legibilidade das vias sucessivas do monumento, nas escolhas voluntárias de interpretação e na complexidade das formas de transmissão. Por último, a atual democratização do corpus de objetos de patrimônio implica um redobrado trabalho de perícia a fim de

culminar em uma convincente discriminação. [...] torna-se árduo distinguir entre o

que é esfera do privado – objetos de família, patrimônio de colecionador – e o que é, legitimamente, da esfera pública e exige ser catalogado, preservado e acessível ao público (POULOT, 2009, p. 224, grifo nosso).

Enigma do patrimônio. Para Françoise Choay, “todo conhecimento em processo de formação provoca

crítica de seus conceitos, de seus procedimentos e de seus projetos. As disciplinas afins quanto a conservação e restauração dos monumentos históricos não fugiram à regra” (CHOAY, 2001, p. 163). A fim de entender melhor o conceito de valor aplicado ao patrimônio, interessará relacionar, sempre que possível, os Tratados de Vitrúvio e Alberti com os principais Teóricos da Restauração, sublinhando os possíveis valores de qualidade que foram atribuídos aos monumentos, especialmente durante as fases em que foram reconhecidos e consagrados.

Embora o enfoque da pesquisa não esteja nos valores ditos excepcionais, históricos ou memoriais – imprescindíveis às obras de arte, antiguidades ou cenários de feitos históricos ou de trabalho –, o estudo dos valores de referência existentes na bibliografia sobre o tema que seguem orientações e interpretações pioneiras sobre os bens portadores de significado, são fundamentais.

Sentido formalista. É sabido que o principal método moderno de interpretação de monumentos, a

partir da teoria dos valores, tem início em 1903, com Aloïs Riegl, formalista da escola de historiografia da arte vienense. Riegl, além de um defensor dos monumentos, foi um analista que procurou examinar as várias faces do debate sobre como preservá-los. Efetivamente, foi o primeiro historiador a interpretar a conservação dos monumentos antigos a partir de uma teoria de valores, publicada na obra O Culto

Moderno aos Monumentos: seu caráter e sua origem, cujas definições serão ampliadas em seção única. Riegl também é pioneiro ao apresentar a distinção entre monumento e monumento histórico, definindo-os a partir de valores aplicados no curso da história (CHOAY, 2001).

Entretanto, em se tratando de um capítulo teórico, preliminar, não se dispensou relacionar também os demais teóricos que o precederam, corroborando com a indicação inicial de que os referenciais escolhidos desde os prenúncios da tese – origem, tradição e valor – estão diretamente associados.

Sentido Romanticista. Dentre muitos agentes que se disponibilizaram interpretar os monumentos,

com vistas à perpetuação e divulgação, estava o inglês John Ruskin. Ruskin não era arquiteto, no entanto, elegeu a arquitetura como a maior das artes em razão de sua escala de intervenção ser mais abrangente que a pintura, por exemplo. Grande defensor do anti-intervencionismo, chegou a comparar a restauração “à mais completa destruição que um edifício poderia sofrer” (RUSKIN, 1996, p. 25). Este pensamento está vinculado ao período romântico (final século XVIII e meados do século XIX), fase que dava ênfase, sobretudo, à sensibilidade subjetiva e emotiva, em oposição à razão:

O romanticismo foi uma reação contra os estreitos e restritivos modelos matemáticos do racionalismo neoclássico da ilustração, que dominava despoticamente a segunda metade do século XVIII e que estava começando a ser chamado de falta de imaginação e sentimento (ROTH, 1999, p. 445-447).

Sua teoria ficou conhecida como restauro romântico, caracterizando esta linha de pensamento, que teria influência não só na Inglaterra. Ruskin escreveu dois livros influentes no meio preservacionista, As Sete Lâmpadas da Arquitetura (1849) e As Pedras de Veneza (1851). Neles, Ruskin atribuiu à memória, “uma destinação e um valor novos do documento histórico. Para este teórico, a arquitetura é o único meio de que dispomos para conservar vivo um laço com o passado ao qual devemos nossa identidade, e que é parte do nosso ser” (CHOAY, 2001, p. 139).

John Ruskin não estava sozinho. Teve como aliado William Morris, quando ambos preconizaram que restaurar um edifício é conspirar contra sua autenticidade, o que constitui a própria essência. Segundo Choay, chegaram a planejar a “proteção dos monumentos históricos em escala internacional “[...] ao propor, já em 1854, a criação de uma organização europeia de proteção [...], e criam o conceito de bem europeu” (CHOAY, 2001, p. 142).

Sem arquitetura se pode lembrar. A preocupação de Ruskin em preservar a arquitetura de valor fez

com que se debruçasse sobre sete caminhos que convencionou chamá-los lâmpadas – vistas uma a uma, nas próximas seções do capítulo. Dentre as sete lâmpadas está a Lâmpada da Memória, onde o autor atribui um novo valor ao monumento histórico. Esse é chamado de Valor de Reverência por Françoise Choay, que discorre:

Se às vezes acontece a Ruskin interrogar os monumentos pela memória objetiva da história, ele prefere uma abordagem mais afetiva. Contudo, nele, o puritano desconfia sempre do esteta e teme cair nas armadilhas hedonistas da arte. Por isso, é pela

intermediação dos sentimentos morais, a reverência e o respeito, que ele entra sem dificuldade no passado. O que lembram então os edifícios antigos? O valor

sagrado dos que homens de bem, desaparecidos e desconhecidos, realizaram para honrar a Deus, organizar seus lares, manifestar suas diferenças (CHOAY, 2001, p. 139- 140, grifo nosso).

Sentido Estilista. Do lado francês, o fundamento e a prática da restauração era comandada por

Eugène Emmanuel Viollet-le-Duc. Viollet-le-Duc era arquiteto e tinha experiência em projetos de intervenção em monumentos franceses, por isso defendia o intervencionismo, posicionando-se contrário às doutrinas adotadas pelo seu contemporâneo inglês. Na França, muitos edifícios medievais haviam sido destruídos, saqueados e vandalizados após a Revolução Francesa, sendo elaborados vários relatórios que davam conta da destruição, influenciando assim o Estado na tomada de medidas protetivas oficiais a fim de preservar os monumentos históricos.

Foi nesse ambiente que Viollet-le-Duc atuou, numa época em que a restauração se consolidava como ciência. Após concluir seus estudos, desejou conhecer melhor a França, o que aumentou seu interesse pela arquitetura medieval. Mas também viajou pela Itália, e concluiu que havia “princípios de adequação da forma à função, da estrutura à forma e da ornamentação ao conjunto, tanto na arquitetura clássica, quanto na medieval” (KÜHL, 2000, p. 13).

Segundo Choay, Viollet-le-Duc tinha a nostalgia do futuro, não do passado (CHOAY, 2001). E, por isso, suas intervenções serem alvo permanente de críticas, muitas vezes tidas como provocativas, porque adotava características de vanguarda em prejuízo das tradicionais, atuando de forma invasiva sobre os monumentos, inclusive falsificando-os. Para Viollet-le-Duc: “o arquiteto restaurador deveria incorporar os espíritos do arquiteto medieval e projetar como ele, havendo mimetismo entre as partes novas e originais. Esse tipo de intervenção é chamado restauro estilístico” (KÜHL, 1998, p. 188).

Porém, nem por isso Viollet-le-Duc deixou de participar, como arquiteto restaurador, de obras importantes, como a restauração de Notre-Dame de Paris, em 1842, e da Abadia de Saint Denis. Pela hostilidade criada em relação as suas obras como restaurador, muitas vezes deixou-se de apreciar a coerência de suas formulações teóricas e seus aspectos inovadores, ainda atuais. Escreveu Entretiens sur l’Architecture, em 1863, e Dictionnaire Raisonné de l’Árchitecture Française du XI au XVI Siècle, publicado em 1872, definindo a expressão restauração: “A palavra e o assunto são modernos. Restaurar um edifício não é mantê-lo, repará-lo ou refazê-lo, é restabelecê-lo em um estado completo que pode não ter existido nunca em um dado momento” (VIOLLET-LE-DUC, 2000, p. 17).

Presume-se que, para Viollet-le-Duc, a medida da excelência seja a intervenção; neste caso, o valor seria de finalidade: “De todo modo, o melhor meio para conservar um edifício é encontrar-lhe uma destinação, é satisfazer plenamente a todas as necessidades que esta destinação impõe, de tal modo que não seja necessário imprimir-lhe nenhuma mudança” (VIOLLET-LE-DUC, 1996, p. 25).

Sentido Modernista. No final do século XIX surgem posturas mais equilibradas em relação as

posições antagônicas de Ruskin e Viollet-le-Duc. Entre o conservador e o restaurador, a vertente chamada restauro moderno, teve como mentor o italiano Camillo Boito. Arquiteto, engenheiro e historiador da arte, reconhecido por sua postura moderada, Boito considerava que as intervenções deveriam ter características que as distinguissem da obra original, através do emprego de materiais diversos e sem alterar o equilíbrio da composição do edifício.

Os trabalhos executados durante o restauro deveriam ser documentados e as adições e modificações feitas no decorrer do tempo, conservadas. É dele o célebre princípio da mínima intervenção, distanciando-se de Ruskin e de Viollet-le-Duc: “ênfase no valor documental dos monumentos, que deveriam ser preferencialmente consolidados a reparados, e reparados a restaurados” (BOITO, 2003, p. 21).

Possivelmente, para Boito, a medida da excelência estava na conservação, e o valor estaria ligado à documentação, especialmente ao “reafirmar a necessidade de se conservar o aspecto de vetustez do monumento, e preconizar que complementos e acréscimos devam mostrar ser obras do seu próprio tempo e distintos do original” (KÜHL, 2003, p. 25). Além deste, Boito evidencia a relevância dos valores estéticos e históricos em uma mesma obra, mostrando que ambos podem ser contraditórios, mas admitindo que a beleza deva prevalecer sobre o componente histórico, como segue:

Pode-se afirmar, em geral, que o monumento tem as suas estratificações como a crosta terrestre, e que todas, da profundíssima a superficial, possuem o seu valor e devem ser respeitadas. Podem-se acrescentar, ademais, que as coisas mais velhas são sempre, em geral, mais veneráveis e mais importantes do que as menos velhas; mas que, quando essas últimas se mostram mais belas do que as outras, a beleza pode vencer a velhice (BOITO, 2003, p. 26).

Venustade versus Vetustez. Dias Comas, na introdução desta tese, diz que, entre o valor documental

e artístico do monumento, o primeiro pode levar vantagem simplesmente por existir há mais tempo. Entretanto, o professor explica que “Apesar de eventuais diferenças de opinião, longe de expressar subjetividade, juízos de valor artístico apoiados em análise histórica fornecem um embasamento suficientemente estável e duradouro [...]” (COMAS, 2011, p. 60).

Entende-se assim que, ao lançar luz à discussão de valor nos processos de proteção do patrimônio moderno, a seleção preliminar de referenciais é fundamental porque aumenta a certeza de que, ao reconhecer as coisas que têm valor e ao reconhecer qual o exato valor das coisas, a proteção se legitima. Considerando a validez do monumento, a partir de sua essência e significado, e buscando compatibilizá-la com os estudos de caso mais adiante, decidiu-se, neste capítulo, pela análise mais alargada de dois teóricos mais direcionados à conservação dos monumentos, John Ruskin e Aloïs Riegl.

2.1. MONUMENTO: ARQUITETURA DE VALOR

Portanto, ao construírmos, pensemos que construímos para sempre. Que não seja só para desfrutar o presente, nem para uso imediato; que seja uma obra digna do reconhecimento de nossos descendentes. Pensemos, enquanto colocamos pedra sobre pedra, que virá um tempo em que aquelas pedras serão consideradas sagradas porque nossas mãos as tocaram e que os homens dirão, ao contemplarem a obra e a matéria trabalhada, "Vejam! Nossos pais fizeram isso por nós" (RUSKIN, 1996, p. 165, tradução nossa).

Virtù et fortuna. Viu-se que é somente através da arquitetura que é possível empreender contra a

destruição causada pela natureza, pelo tempo e pelos próprios homens. Segundo Carlos Antônio Brandão, “A arquitetura é um constructo, uma ferramenta com a qual a virtù empreende seu combate contra a fortuna – [...] – contra o tempo, contra nossas mania e insânia originais e contra uma filosofia e uma arte que não estejam comprometidas com a vida em sua plenitude” (ALBERTI, 2012, p. 9).

Passado no presente. Platão já se perguntava como reconhecer, por meio da razão, a forma correta

as sociedades e épocas (BUCKINGHAN, 2011). Como já foi verificado na filosofia e nos tratados de arquitetura estudados, mesmo nos seres humanos é muito pouco provável que uma única característica defina uma pessoa virtuosa, no caso da arquitetura também é inverossímil que uma única qualidade determine a excelência de um edifício, eleito para durar por muito tempo.

Faculdade interna. Tendo como ponto de partida a trindade utilidade, necessidade e beleza, o capítulo

segundo passa a ser construído com base na literatura reportada, cujos autores se dedicaram a estudar o valor do monumento a partir do seu sentido – significado, razão, juízo, cautela e finalidade, conceitos que mais se aproximam do tema autenticidade, que será tratado mais amplificadamente.

Valor ao monumento. Partindo do pressuposto que a utilidade do precedente arquitetônico deve

corresponder à várias outras demandas – enquanto artefato artístico e cultural que expressa, através da forma e do conteúdo, o modo de vida humano, Igos Kopytoff questiona: “É possível falar de valor de uso para coisas que ficaram obsoletas?” (IPHAN, 2017, p. 107). Comparativamente, pensa-se que é tanto quanto possível falar de valor de permanência para edifícios atuais.

A verossimilhança se confirma desde que os precedentes arquitetônicos sirvam para cumprir suas finalidades, qualificando o ambiente físico e climático, sugiram um uso pré-determinado (caráter) e favoreçam o entendimento do entorno, estabelecendo relações entre as partes vinculadas entre si. Mas não só estas as demandas do precedente21. É possível ainda falar no seu valor desde que as obras tenham sido executadas para resistirem ao tempo, os materiais escolhidos também tenham sido adequados, havendo lógica na expressão de sua estrutura, e tenha sido racionalizado prudentemente o manejo dos recursos materiais, a fim de satisfazer suas necessidades. Sobre este aspecto, declara Roth:

Os seres humanos constróem para satisfazer uma necessidade, mas, ainda assim, suas obras expressam sentimentos e valores; expressam em madeira, pedra, metal, gesso e plástico o que consideram vital e importante [...] (ROTH, 1999, p. 4, tradução nossa).

Mesmo assim não é suficiente. A última e mais importante demanda do precedente é causar prazer, momento em que a discussão de valor recai sobre o belo, o qual, conforme parecer de Lewis Mumford garante a qualidade e a perenidade e dá sentido à edificação. Munford diz:

O grande problema do arquiteto é modelar a forma estrutural essencial, de maneira tal que se cumpram todos os fins para os quais o edifício foi projetado. Deve adaptar-se adequadamente à sua localização, harmonizar com seus vizinhos ou destacar-se deles, cumprir sua função de alojamento, de lugar de trabalho ou lugar de diversão e proporcionar um prazer especial a todos que passam pela sua frente ou que a ele tenham acesso (ROTH, 1999, p. 141, tradução nossa).

Virtude e valor. A arquitetura enquanto criação, natureza petrificada, é o testemunho do respeito e da

admiração que a criatura tem pela natureza, que é obra do Criador (MONEO; SOLÀ-MORALES, 1975). O belo define a arquitetura, distinguindo-a da construção. Portanto, é fundamental que se estudem antecipadamente os princípios operantes por trás desse prazer arquitetônico, para saber se à venustez deva ser franqueada a perpetuação, sendo esse o segredo dos edifícios bem sucedidos, legados às

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