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Distinção entre prescrição e decadência

No documento DOUTORADO EM DIREITO SÃO PAULO 2010 (páginas 122-127)

6 DA PRESCRIÇÃO DA AÇÃO POR IMPROBIDADE

6.1 Distinção entre prescrição e decadência

Ao tratar das condições necessárias para o exercício do pensamento, em sua Crítica da

razão pura, Immanuel Kant diz que há duas formas puras da intuição sensível, como

princípios do conhecimento a priori: espaço e tempo.

O tempo, segundo o célebre filósofo alemão, é uma representação necessária

subjacente a todas as intuições e só nele é possível toda a realidade dos fenômenos. Portanto, o tempo não pode ser suprimido de todas as formas de conhecimento166.

Não há como discordar de Kant no tocante à importância do tempo em todos os fenômenos do pensamento e, por conseguinte, da vida; importância que também se reflete nos fenômenos jurídicos, como ressalta Roberto de Ruggiero:

“A influência que o tempo tem sobre as relações jurídicas é bastante grande, bem como a que tem sobre todas as coisas humanas. E além de grande é também bastante variada. Direitos que não podem surgir senão em dadas contingências de tempo; direitos que não podem ter senão uma duração preestabelecida, quer fixada pela lei, quer pela vontade privada; direitos que não podem exercer-se foram de certo prazo; direitos que se adquirem e direitos que se perdem em conseqüência do decurso de um certo período de tempo – destes e de outros modos o elemento tempo manifesta a sua importância, posto que freqüentemente ele não seja apenas o

único fator que produz tais efeitos...” 167

Assim como em todas as atividades humanas, o fator tempo interfere decisivamente em dois institutos jurídicos que têm se apresentado de forma controversa e tormentosa aos cultores do direito: a prescrição e a decadência.

A perda de um direito pelo decurso do tempo, segundo Ruggiero168, deve ocorrer porque o ordenamento não tutela aquele que não o exerce e não o quer conservar, sendo do interesse da ordem social que depois de um dado tempo desapareça qualquer incerteza nas relações jurídicas, bem como toda a possibilidade de contestação ou pleito.

A segurança jurídica pressupõe um mínimo de estabilidade nas diversas relações baseadas no direito e justifica a adoção de prazos para o exercício de prerrogativas nascidas

166 Crítica da razão pura, p. 40 e 44.

167 Instituições de direito civil, p. 406.

da lei ou da vontade dos sujeitos, posto que, se assim não fosse, pessoa alguma, em tempo algum, estaria convicta e segura dos seus direitos e dos seus negócios, já que a qualquer momento estaria exposta, ou os seus sucessores, a uma interpelação de outrem para lhe transferir ou restituir direito constituído em tempos imemoriais.

Fossem irrestritamente banidos do direito os institutos da prescrição e da decadência, seria impossível garantir estabilidade e paz nas relações sociais, o que, em última análise, significaria implodir as próprias bases do direito.

Daí a necessidade da adoção dos institutos da decadência e da prescrição, fixando-se prazos para o exercício de prerrogativas jurídicas, ressalvando-se apenas as ações imprescritíveis por natureza ou por opção da ordem jurídica.

Ações naturalmente imprescritíveis, como se verá, são as meramente declaratórias e as ações constitutivas sem prazo para ajuizamento.

Há também as situações que o direito positivo, em caráter excepcional, considera imunes ao tempo, como acontece, na ordem jurídica brasileira, com a prática do racismo e a ação de grupos armados contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (incisos XLII e XLIV do art. 5º da Constituição Federal de 1988), condutas que serão passíveis de sanção a qualquer tempo.

Controvertida tem se mostrado a suposta imprescritibilidade da ação por improbidade que vise o ressarcimento de prejuízos causados ao erário, prevista no § 5º do art. 37 da Constituição, tema que será tratado mais adiante.

Também a ação por improbidade está sujeita a prazos para o seu ajuizamento. Com efeito, o art. 23 da Lei 8.429/92 cuida especificamente dos prazos para a propositura deste tipo de ação.

Pode-se questionar se os prazos ali estabelecidos são de prescrição ou decadência e quais os efeitos do seu escoamento, razão pela qual se faz útil a abordagem dos fundamentos dos prazos extintivos de direitos e a distinção entre prescrição e decadência.

Grande tem sido o esforço dos juristas para distinguir a prescrição da decadência, visto que os prazos decadenciais não se sujeitam a impedimento, interrupção e suspensão de prazos, e, sendo legais, não admitem renúncia.

Na doutrina estrangeira, Roberto de Ruggiero adota como fator de distinção a aquisição ou a perda de um direito em razão do decurso do tempo. Para ele, na decadência o descumprimento do prazo impede a aquisição de um direito, ao passo que na prescrição o direito nasce com uma duração indefinida e somente se pode perder se houver negligência no

seu uso, do que resulta que à decadência não se aplicam as causas de suspensão e de interrupção da prescrição169.

O Código Civil de 2002 não define o que é a decadência. Apenas disciplina os seus efeitos, do art. 207 ao art. 211.

Quanto à prescrição, é definida pelo Código como a extinção da pretensão nascida para o titular com a violação do direito (art. 189), uma vez transcorridos os prazos a que aludem os art. 205 e 206.

Anotava Cândido Rangel Dinamarco170, ancorado na lição de Bruno Troisi, que na prescrição o decurso do tempo apenas enfraquecia o direito, não o extinguindo, criando em favor do obrigado um verdadeiro direito potestativo, visto que a extinção do direito do credor ficava condicionada à manifestação da vontade do devedor.

Hoje, contudo, já não é mais assim, uma vez que o § 5º do art. 219 do Código de Processo Civil, com a redação da Lei 11.280, de 16 de fevereiro de 2006, passou a permitir ao juiz o reconhecimento de ofício da prescrição, não mais dependendo da provocação do devedor.

A doutrina nacional, em vista dos parâmetros do Código Civil e quase sempre amparada no magistério de Câmara Leal, acentua que a prescrição faz perecer o direito de ação para deduzir em juízo uma pretensão, enquanto a decadência leva à extinção do direito material que constitui o cerne da pretensão.

É o que ocorre com Sílvio Rodrigues171, para quem a prescrição extintiva não leva ao perecimento do direito, mas da ação que o defende, enquanto que na decadência é o próprio direito que fenece. No que toca à natureza de uma ação, diz ele que se a ação e o direito têm origem comum, trata-se de caso de caducidade. Se o direito preexiste à ação, que só aparece com a violação daquele, o prazo é de prescrição.

A mesma orientação é seguida por Celso Antônio Bandeira de Mello172, o qual, fazendo linhas a Maria Helena Diniz, concebe a prescrição como a perda do meio de defesa

de uma pretensão jurídica, pela exaustão do prazo legalmente previsto para utilizá-la, o que não implica em extinção do próprio direito, como ocorre diante da impossibilidade do devedor reclamar a devolução do pagamento de dívida que já estava prescrita.

Coisa diversa acontece com a decadência, conforme acentua o eminente jurista, pois ela implica na perda do próprio direito, em si mesmo, pela falta do seu exercício no prazo

169 Instituições de direito civil, p. 430-431.

170 Fundamentos do processo civil moderno, vol. I, p. 440.

171 Direito civil, p. 345 e 350.

previsto, evento este que sucede quando a única forma de expressão do direito coincide

conaturalmente com o direito de ação.173

Estas distinções são válidas, mas como sublinha Agnelo Amorim Filho, em clássico trabalho sobre o tema174, são inadequadas, porque fazem a distinção apenas dos efeitos da prescrição e da decadência, sem fornecer um critério científico para se saber quando o prazo extintivo atinge a ação e quando fulmina o próprio direito. Assim, é necessário identificar a

sua causa e não o seu efeito.

Partindo desta premissa e tendo como referência a concepção de Chiovenda sobre

direitos subjetivos, o citado autor apresenta valiosa teoria sobre critérios científicos de verificação da prescrição e da decadência, que serão objeto de síntese nos próximos parágrafos, dada a nossa adesão.

Segundo Agnelo Amorim Filho, a prescrição, a decadência e a imprescritibilidade (que ele prefere denominar perpetuidade) são determinadas pelos tipos de ação, as quais, por seu turno, são classificadas, segunda a natureza dos direitos nelas discutidos, em ações condenatórias, constitutivas e meramente declaratórias.

Nas pegadas de Chiovenda, Amorim Filho parte do pressuposto de que os direitos subjetivos são classificados em duas grandes categorias: direitos a uma prestação e direitos

potestativos. Os primeiros têm por finalidade um bem da vida, que exige uma prestação positiva ou negativa do sujeito passivo. Os direitos potestativos compreendem os poderes que a lei confere a determinadas pessoas de influírem, com uma declaração de vontade, sobre situações jurídicas de outras, sem o concurso da vontade destas.

Exemplo de direito a uma prestação é a cobrança de um crédito, que exige o pagamento do sujeito passivo. A ação de dissolução de sociedade é um exemplo de direito potestativo, pois não depende da vontade dos outros sócios. O mesmo ocorre na ação de extinção de condomínio.

Os direitos potestativos, por sua vez, podem ser de três categorias: a) os que atuam mediante simples declaração do seu titular (v.g., revogação de mandato e aceitação de herança); b) os que exigem a concordância daquele que sofre a sujeição, sob pena de ser resolvido na via judicial (e.g., o direito do condômino de dividir a coisa comum e o direito do vendedor de resgatar imóvel vendido com cláusula de retrovenda); c) direitos potestativos que só podem ser exercidos por meio de ação, mesmo que haja consenso entre os interessados,

173 Curso de direito administrativo, p. 1.026.

chamada por Calamandrei de ação necessária (v.g., o direito de invalidar casamento nulo ou anulável).

Quando o autor move ações da segunda e terceira categorias, não pede a adesão daquele que se sujeitará à sua vontade e nem que ele seja obrigado a alguma prestação. Pede apenas que a sentença crie, modifique ou extinga uma relação jurídica. Há, neste caso, o exercício de um direito potestativo do autor.

Em face destas premissas, as ações de conhecimento podem ser classificadas em condenatórias, constitutivas ou simplesmente declaratórias. Na ação condenatória, há a pretensão a que o sujeito passivo seja obrigado a uma prestação. Já na ação constitutiva, pretende-se que a vontade do autor sujeite outrem à uma nova situação jurídica, independentemente da sua adesão. Na ação declaratória, não há pretensão a uma prestação e nem à sujeição do réu a uma nova situação jurídica, mas tão-somente de obter uma certeza

jurídica em situação de dúvida.

A prescrição tem como termo inicial o nascimento da ação (actio nata), que se dá com a existência de um direito atual (suscetível de ser reclamado em juízo) e a violação desse direito (lesão).

Havendo lesão ao direito, surge uma situação de intranqüilidade social, que o instituto da prescrição procura evitar. Há um prazo (prescricional) para exigir a restauração deste direito. Ultrapassado o prazo, o direito torna-se inexigível, embora não esteja extinto.

A lesão ao direito somente pode ocorrer quando o sujeito passivo da obrigação se nega a prestá-la. Portanto, conclui Amorim Filho, a prescrição é peculiar às ações condenatórias, já que na ação constitutiva e na ação meramente declaratória não existe pretensão à prestação de outrem, impossibilitando a lesão a um direito que venha a deflagrar o prazo prescricional.

Observa este autor que, muitas vezes, não há prazo para o exercício de direito potestativo (e.g., pedido de separação judicial, de extinção de condomínio, de extinção de sociedade). No entanto, quando a lei ou uma convenção fixa um prazo para isso, é caso de prazo decadencial, que deve ser observado, sob pena de perecimento do direito (v.g., direito de exercer preferência, direito de o marido contestar a legitimidade do filho de sua mulher, ação para anulação de casamento, ajuizamento de ação rescisória).

Nos direitos potestativos subordinados a prazo, segundo Amorim Filho, o que causa intranqüilidade não é a existência da ação, mas a existência do direito e a possibilidade do seu exercício, daí o estabelecimento de prazo, sob pena de decadência.

Em apertada síntese, anote-se que o citado autor atribui a imprescritibilidade às ações declaratórias e às ações constitutivas que não dependem de prazo. No caso das ações

declaratórias, porque não contêm pretensão a uma prestação (cumprimento de obrigação) e nem à sujeição de outrem à vontade do autor (direito potestativo), mas tão somente a uma

certeza jurídica, que será pertinente enquanto houver interesse jurídico na sua obtenção. Amorim Filho ressalta que prefere a expressão ações perpétuas à expressão ações

imprescritíveis, porque ações desta natureza ficam imunes também à decadência e não apenas à prescrição, observação que se mostra pertinente. Não obstante, a força do uso consagrou a expressão imprescritibilidade para indicar as ações que não se submetem a prazos extintivos, sejam eles de prescrição ou de decadência.

Em resumo, chega-se às seguintes conclusões: a) as ações condenatórias se sujeitam à prescrição; b) as ações constitutivas com prazo para exercício submetem-se a prazos decadenciais; c) as ações declaratórias, assim como as ações constitutivas sem prazo, são imprescritíveis.

Tais assertivas recebem a expressa adesão de Ada Pellegrini Grinover175, segundo quem a prescrição atinge exclusivamente a provimentos que imponham um dever de prestar (provimentos de cunho condenatório).

No documento DOUTORADO EM DIREITO SÃO PAULO 2010 (páginas 122-127)