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Missão constitucional

No documento DOUTORADO EM DIREITO SÃO PAULO 2010 (páginas 113-118)

5 ABORDAGEM INICIAL DA AÇÃO POR IMPROBIDADE

5.4 Missão constitucional

O intérprete deve ter em vista a natureza e a importância da ação por improbidade como instrumento de punição dos agentes públicos ímprobos. E, assim, não perder a noção da sua exata dimensão constitucional, seja para não menoscabá-la e nem para banalizá-la.

Um exame atento do § 4º do art. 37, da Constituição Federal, e de outros dispositivos constitucionais que mencionam a improbidade administrativa, conduzirá à conclusão de que são graves as conseqüências para o agente que trai o seu compromisso de probidade com a Administração, como a perda da função e a suspensão dos direitos políticos.

Em linha de coerência com as previsões constitucionais, o art. 12 da Lei 8.429/92 é igualmente severo com a improbidade administrativa. Não há, ali, brandura nas sanções.

Tais circunstâncias denotam a elevada importância que o Poder Constituinte e o legislador ordinário atribuíram à luta contra a improbidade administrativa.

O que se extrai disso é que não se pode menosprezar ou mesmo relativizar a importância da ação por improbidade como instrumento que busca cumprir a missão constitucional de combater com veemência e eficácia os desvios praticados por agentes públicos.

Em outras palavras, a ação por improbidade tem primazia constitucional. Não se trata de instrumento processual de índole comum. Por isso, sua compreensão e interpretação devem ser feitas também segundo as balizas de ordem constitucional.

Por outro lado, por sua severidade e profundo impacto, não pode ter seu uso banalizado, como se fosse instrumento de correição administrativa.

Mauro Roberto Gomes de Mattos156 chama a atenção para o excessivo caráter aberto da Lei 8.429/92, visto que apenas define os tipos de improbidade administrativa, nos art. 9º, 10 e 11, mas não apresenta nenhuma definição de ato ímprobo.

Em razão desta particularidade, o mencionado autor diz que é necessário ter prudência no ingresso de ações de improbidade, para que não seja enfraquecida e se torne impotente, vulgarizando-se pelo excesso de sua utilização.

Como bem assinala Kele Cristina Diogo Bahena157, nem toda conduta imoral é ímproba, sob o aspecto de não potencialidade ofensiva apta a receber as sanções da lei especial, de modo que não se amolda a ela o que chama de improbidade administrativa de

bagatela.

Inspirada na teoria da adequação social de Welzel, a citada autora sustenta que a Lei de Improbidade, tendo como parâmetro o princípio da proporcionalidade, não deve se ocupar de bagatelas, mas de situações em que realmente ocorre perigo de risco efetivo ao patrimônio moral do Estado, mormente nas hipóteses do caput do seu art. 11.

Neste sentido, também exortam Emerson Garcia e Rogério Pacheco Alves158, quando enfatizam que à atividade de concreção dos valores estabelecidos pelo legislador em abstrato devem ser opostos limites, sob pena de se transmudar em ilegitimidade de fato uma

legitimidade de direito.

Para isso, segundo o princípio da proporcionalidade, afirmam que o operador do direito deve realizar uma valoração responsável da situação fática, garantindo uma relação harmônica entre os fins da lei e aqueles atingidos com a sua aplicação ao caso concreto.

Acrescentam que a prática de atos que importem em insignificante lesão aos deveres do cargo, ou à consecução dos fins visados, é inapta para definir o perfil do ímprobo, não apenas pela insignificância do ato, mas porque a aplicação das sanções do art. 12 da Lei 8.429/92 acarretaria ao agente lesão maior do que a causada por ele ao ente estatal.

156 Do excessivo caráter aberto da Lei de Improbidade Administrativa, p. 139.

157 O princípio da moralidade administrativa e seu controle pela Lei de Improbidade, p. 148-165.

Exemplificam com a indevida imputação de improbidade a um agente público que anote um recado de ordem pessoal em papel da repartição pública ou do uso de um clipe para prender documentos pessoais.

Também Gina Copola159 sublinha que a Lei 8.429/92 precisa ser interpretada da forma mais eqüitativa possível, conforme o princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade.

Diante de pequenas faltas, que não provoquem significativos danos à Administração, cabem advertências ou outras medidas equivalentes, a serem aplicadas em processo administrativo. Pretender sua punição com as sanções da Lei 8.429/92 constitui evidente exagero.

A Lei de Improbidade Administrativa deve ser utilizada somente nos casos em que a conduta desviante tenha significativa repercussão para a Administração, o que certamente não é o caso de um ato reconhecidamente esporádico do agente público e sem grandes conseqüências ao patrimônio material ou moral do ente público, hipótese em que a falta fica sujeita, em última análise, a uma reprimenda mais branda e proporcional à sua gravidade.

Existirá repercussão na presença de ato único que cause significativo dano à Administração, a ser avaliado em cada situação concreta. Não há fórmulas que possam substituir o tirocínio do responsável por esta avaliação. São hipóteses guiadas pelo senso

comum.

Atos de pequena repercussão podem adquirir relevância, em caso de prática reiterada. No conjunto da obra, podem se tornar igualmente graves.

Em síntese, a repercussão, a justificar o ajuizamento da ação por improbidade, existirá quando um ato provocar grave dano ao patrimônio público ou quando houver reiteração de atos que, isoladamente, não teriam sérias conseqüências.

Além disso, o órgão legitimado a propor a ação, seja o Ministério Público ou a Procuradoria do ente prejudicado, deve ter em mente que a ação por improbidade, mais do que repudiar uma conduta do agente, desqualifica a sua própria pessoa, a quem estará atribuindo pecha de desonesto.

Assim como ocorre na acusação por crime de Injúria (art. 140 do Código Penal), mais do que reprovação de um ato, em si, há a atribuição ao sujeito de um sinal inato ou atávico, uma falha de caráter, que acarretará desprestígio social irrecuperável, ainda que a ação venha a ser julgada improcedente.

Conforme anota Aristides Junqueira Alvarenga160, a improbidade é tratada com mais rigor. Se o ato administrativo não tem índole de improbidade, que se maneje ação popular ou a ação civil pública para a restauração da legalidade, da moralidade administrativa e do dano ao patrimônio público.

Daí porque o ajuizamento deve estar cercado de todos os cuidados, para que ao réu não seja causado grave dano no caso de restar comprovado, na instrução, que não havia fundamentos razoáveis para a ação.

O juiz deve igualmente cercar-se de zelo, não hesitando em rejeitar a petição inicial, nos termos do § 8º do art. 17 da Lei 8.429/92, caso verifique a ausência de fundamentos mínimos para a ação.

Com efeito, ninguém tem o direito de fazer jogo de erro e acerto com a honra e dignidade alheias. Uma acusação desta ordem deve ser feita de forma consistente e amadurecida. Neste caso, o processo não pode ser um campo de prova, um exercício de laboratório, mas sim um lugar onde se buscará confirmar os veementes indícios da ilicitude, anteriormente coligidos pelo autor da ação.

A experiência demonstra que muitas ações por improbidade são propostas sem a devida reflexão da parte do seu patrocinador, acarretando um número elevado de sentenças de improcedência.

É o que demonstra levantamento feito especialmente para este trabalho junto a quatro dos mais movimentados tribunais brasileiros, a saber, Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ- SP), Tribunal Regional Federal da 1ª Região (sediado em Brasília), Tribunal Regional Federal da 3ª Região (com sede em São Paulo) e Tribunal Regional Federal da 4ª Região (sediado em Porto Alegre).

O apontado levantamento, realizado por amostragem nos ementários de jurisprudência, disponíveis nos sites oficiais dos tribunais na Internet 161, permitiu verificar que, nos julgamentos de apelações que tiveram solução de mérito, no mínimo 35% foi pela improcedência total (incluídos os casos de rejeição da petição inicial), número demasiadamente alto, se for adotada a premissa de que as ações por improbidade devem ser ajuizadas com bons indícios da ilicitude e da respectiva autoria.

160 Reflexões sobre improbidade administrativa no direito brasileiro, p. 109-110.

161 Disponíveis em:<http://www.tj.sp.gov.br>; <http://www.trf1.jus.br>; <http://www.trf3.jus.br>;

O resultado do citado levantamento162, feito com atenção, mas em análise superficial, está sintetizado na seguinte tabela:

AÇÕES POR IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA

RESULTADOS DO JULGAMENTO DE MÉRITO EM SEGUNDO GRAU DE JURISDIÇÃO Tribunal pesquisado Período pesquisado Ações Procedentes Ações não procedentes Total Percentual procedência Percentual improcedência TJ-SP Meses 08 a 12 de 2009 128 67 195 65,64% 34,36% TRF1 2009 24 29 53 45,28% 54,72% TRF3 Até 2009 03 06 09 33,33% 66,67% TRF4 2008 e 2009 26 16 42 61,90% 38,10%

A improcedência das ações, em sua maioria, se deveu ao reconhecimento da inexistência de dolo na conduta reputada ímproba ou quando inocorrente lesão ao patrimônio público. Poucos foram os casos de rejeição da petição inicial.

Os números confirmam a percepção de quem milita nas lides forenses sobre a pertinência das ações por improbidade, nem sempre precedidas de ponderação e coleta satisfatória de indícios da conduta reputada ilícita.

Esta constatação obriga ao reconhecimento de que tem certa razão o ex-ministro Nelson Jobim, do Supremo Tribunal Federal, quando, no julgamento da Reclamação 2.138- DF, que tratava do foro privilegiado, manifestou preocupação com o que chamou de

denuncismo de alguns agentes da persecução judicial e da banalização deste tipo de ação. Não deixam de ser preocupantes os eventuais excessos na utilização da ação de improbidade, até mesmo porque tendem a minar sua legitimidade e a criar resistências ao seu uso.

Sem contar que a banalização pode trazer prejuízos à própria Administração e ao combate à corrupção.

Primeiro, porque o excesso de controle pode gerar um clima de terror no âmbito administrativo, fazendo com que os agentes públicos passem a ter dificuldades para tomar decisões no exercício da função, diante do temor de serem processados por improbidade. Isso resultaria em ineficiência, que é uma das conhecidas causas de corrupção, pois, onde há dificuldades, sempre haverá alguém disposto a facilitar, mediante um pequeno estímulo.

162 Não foram pesquisados os sites do Tribunal Regional da 2ª Região e do Tribunal Regional Federal da 5ª

Região. O primeiro deles não tinha ementário disponível em dezembro de 2009. O segundo não possibilitava consulta agrupada.

Neste caso, como observa Fernando Filgueiras, o excesso de controle pode produzir efeitos indesejados, “fazendo com que a busca de integridade mediante a maquinaria

anticorrupção e as reformas institucionais resultem, necessariamente, em mais corrupção”.163

Some-se a isso que a banalização de ações através da imprensa pode anestesiar a opinião pública ou simplesmente fomentar atitudes de descrença frente às instituições, com conseqüências negativas para a democracia, conforme destaca Enrique Peruzzotti164.

Frente a tais argumentos, parece certo que o princípio “quanto mais, melhor” nem sempre tem validade quando se trata de ações de improbidade.

Mais importante parece ser a utilização comedida deste importante instrumento processual, porém, com mais eficiência, protegendo-se satisfatoriamente o interesse público, sem comprometer os ideais democráticos e a confiança nas instituições do Estado.

No documento DOUTORADO EM DIREITO SÃO PAULO 2010 (páginas 113-118)