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Do ensino por transmissão ao ensino por pesquisa

Sumário

2.3. Diferentes perspetivas sobre o ensino das ciências

2.3.1. Do ensino por transmissão ao ensino por pesquisa

O ensino por transmissão (EPT) fundamenta-se na epistemologia empirista (empirismo clássico), segundo a qual a ciência é um corpo de conhecimentos fechado, imutável e que cresce por acumulação (Lucas & Vasconcelos, 2005).

17 Características de diferentes perspetivas de ensino

Figura 1. Caracterização das perspetivas de ensino EPT, EPD e EMC, nas vertentes epistemológica, psicológica, social e didático-pedagógica (adaptado de Lucas & Vasconcelos, 2005).

Vertente epistemológica: empirismo clássico

Vertente psicológica: aprendizagem por aquisição factual

Vertente sociológica: professor ativo; aluno passivo

Vertente didático-pedagógica: pedagogia transmissiva; avaliação

normativa EPT Vertente epistemológica: empirismo/indutivis mo

Vertente psicológica: aprendizagem por apropriação do método científico

Vertente sociológica: aluno como “pequeno cientista”

Vertente didático-pedagógica: pedagogia dirigida; avaliação dos

processos EPD Vertente epistemológica: racionalismo contemporâneo

Vertente psicológica: aprendizagem significativa de conceitos; valorização

das conceções alternativas Vertente sociológica: professor

reflexivo e investigativo

Vertente didático-pedagógica: pedagogia ativa com feedback intencional; avaliação formativa e

sumativa EMC

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O cenário subjacente a esta perspetiva (EPT) apresenta a ciência como imagem exata da realidade, onde o conhecimento científico é verdadeiro, objetivo e evidente (Lucas & Vasconcelos, 2005). Na aprendizagem por transmissão, de cariz behaviorista ou comportamental, pretende-se que o professor transmita as suas ideias aos alunos, de forma a que este consiga acumular saberes. Salientam-se o papel e autoridade do professor, enquanto detentor do conhecimento, contrapondo com um aluno de papel cognitivo passivo, acima de tudo, recetor (Vasconcelos et al., 2003). Exercícios de repetição e demonstrações devidamente organizadas e previsíveis integram as estratégias de ensino e de aprendizagem norteadas por esta perspetiva. O EPT tem como finalidade a aquisição de conhecimentos, dando ênfase à instrução, assim, justificações como “cumprir o programa” ou “preparar para os exames nacionais”, coadunam-se bem com esta perspetiva, onde a aprendizagem se faz sem erros e a avaliação incide nos produtos (Vasconcelos et al., 2003). O professor apresenta os conceitos e as teorias num contexto de justificação, não estabelecendo relação com o problema que está na sua origem e não se preocupa com a aprendizagem de atitudes científicas por parte dos alunos (Lucas & Vasconcelos, 2005). No EPT a avaliação das aprendizagens não valoriza a aplicação do conhecimento, mas apenas a aquisição de conceitos de um determinado conteúdo, podendo denominar-se avaliação do tipo normativa (Lucas & Vasconcelos, 2005).

A perspetiva de ensino por descoberta (EPD) fundamenta-se no empirismo, na versão ingénua do indutivismo, segundo a qual a ciência é caracterizada pelo método científico geral e universal (Lucas & Vasconcelos, 2005). Parte-se do pressuposto que, todo o conhecimento científico tem um ponto de partida que o suporta e que é a observação. Este aspeto dá ao conhecimento científico um caráter objetivo (Lucas & Vasconcelos, 2005). Assumindo que as relações que os alunos descobrem, a partir das suas próprias explorações são mais passíveis de serem retidas e utilizadas, do que os factos memorizados, a aprendizagem por descoberta, coloca o aluno num papel central, em que ele próprio aprende por conta própria qualquer conteúdo científico, seguindo o método usado pelos cientistas (método científico). O EPD assume que a melhor maneira dos alunos aprenderem ciência é fazendo ciência e que o seu ensino deve basear-se em experiências que lhes permitam investigar e reconstruir as principais descobertas científicas (Pozo & Gómez, 2004). Deste modo, tudo o que há a fazer nas aulas de ciências é promover situações que levem os alunos a atuar como pequenos cientistas (Pozo & Gómez, 2004). Ao professor caberá promover situações de ensino e de aprendizagem que permitam atividades exploratórias, por parte dos alunos. O envolvimento do professor é muito reduzido. Em contexto de sala de aula, é o raciocínio de tipo indutivo que impera, sendo a partir de inferências que se generaliza um certo número de observações. Opera o princípio da autoridade do método científico que deve ser seguido linearmente e, como tal, o erro no processo de ensino-aprendizagem é algo a evitar, sob pena de não se chegar a um determinado resultado esperado (Lucas & Vasconcelos, 2005). No EPD a avaliação é processual, mas denotam-se alguns esforços na avaliação de algumas capacidades como, por exemplo, classificar, formular hipóteses e identificar (Lucas & Vasconcelos, 2005).

19 As dificuldades e a morosidade associadas à perspetiva de EPD e a emergência de um novo quadro baseado em pressupostos psicológicos cognitivistas e em pressupostos epistemológicos racionalistas permitiram o aparecimento, na década de 80, da perspetiva de ensino por mudança conceptual (EMC) (Lucas & Vasconcelos, 2005). A importância atribuída às ideias prévias que os alunos possuem sobre determinada temática, bem como o seu papel cognitivo ativo na aprendizagem, estiveram na origem da perspetiva de ensino por mudança conceptual. Segundo esta perspetiva de ensino, o aluno é construtor da sua própria aprendizagem conceptual (Baldaia, 2004), dando-se primazia a aspetos cognitivos da aprendizagem, mas negligenciando aspetos afetivos e emocionais inerentes ao grupo turma e ao professor (Mortimer, 2002). A perspetiva de EMC, fundamenta-se na epistemologia racionalista contemporânea, segundo a qual a ciência é uma interpretação possível do mundo natural mediante modelos teóricos que são suscetíveis de serem substituídos por outros. Toda a observação está impregnada de teoria e, por isso, não é objetiva. No EMC, parte-se do pressuposto que o aluno possui ideias prévias (construções pessoais que são formas de representação e interpretação do mundo natural) que limitam e dirigem a sua atenção para determinados aspetos e desviando-se de outros. Deste modo, o professor deve valorizar as ideias prévias dos alunos, utilizando-as como ponto de partida para a sua remoção ou alteração. Neste contexto, o erro, enquanto conceção alternativa, é um ponto de partida para a mudança conceptual, sendo um elemento a ter em conta no processo de ensino e de aprendizagem (Cachapuz et al., 2002). O professor assume um papel reflexivo e investigativo, na medida em que diagnostica e estuda as ideias prévias dos alunos para posteriormente atuar, no sentido de desenvolver estratégias metodológicas de captura ou troca conceptual. A ênfase do ensino é, contudo, instrucional, embora não apresente um caráter repetitivo (Lucas & Vasconcelos, 2005). O EMC apoia-se numa avaliação, fundamentalmente, do tipo formativa, ainda que recorrendo, também à avaliação sumativa (Lucas & Vasconcelos, 2005).

A principal crítica à perspetiva de ensino por mudança conceptual, reside na sobrevalorização dos conhecimentos científicos, considerados como fins de ensino. O conhecimento crescente do processo que envolve a produção de conhecimento em ciências está a ter consequências importantes na didática das ciências, defendendo-se, na atualidade, que a observação e a experimentação não são os alicerces do conhecimento em ciências, mas sim, ferramentas para a atividade racional de construção desse conhecimento (Driver, Newton & Osborne, 2000).

O ensino por pesquisa (EPP) é a perspetiva sobre o ensino das ciências em emergência desde o final da década de 90 (Lucas & Vasconcelos, 2005), que melhor harmoniza a aprendizagem dos conceitos, o desenvolvimento de competências e a construção de imagens pós-positivistas no que respeita à natureza do trabalho científico (Baldaia, 2004).

No EPP valoriza-se uma perspetiva mais global de ciência, ou seja, uma visão externalista5

.

5 Relativamente à relação que a ciência estabelece com as restantes atividades humanas, pode-se distinguir entre epistemologias internalistas e externalistas. Para os internalistas a ciência é uma forma autónoma do conhecimento, pois a sua especificidade permite entendê-la abstraindo de tudo aquilo que a rodeia. Neste sentido, a ciência deve ser estudada independentemente de quem a produz e das condições históricas do seu aparecimento. Por sua vez, numa perspetiva externalista a ciência é uma atividade humana que só pode ser compreendida, se for inserida no conjunto mais amplo de todas as atividades humanas.

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Trata-se de valorizar a história da ciência no contexto sócio-cultural em que se produziu determinado conhecimento científico, fomentando nos alunos o gosto pela pesquisa. Ensinar ciências já não é ensinar um corpo de conhecimentos, mas é ensinar os alunos a construir o seu próprio conhecimento, assumindo um papel indagador, numa dinâmica de grupo (visão Vygostkiana) onde a reflexão e discussão assumem um papel crucial – psicologia sócio-cognitiva construtivista (Lucas & Vasconcelos, 2005). Também no EPP são valorizadas as ideias prévias dos alunos e as situações de erro, durante o processo de ensino e de aprendizagem. As estratégias metodológicas e os recursos didáticos devem proporcionar aos alunos a integração de conceitos e devem fomentar neles a análise dos seus próprios métodos de trabalho (metacognição), porém estando sempre presente o pluralismo metodológico (Lucas & Vasconcelos, 2005). Relativamente à avaliação, Cachapuz et al. (2002) salientam que, no EPP a avaliação é do tipo formadora, envolvendo também as componentes formativa e sumativa.

Na figura 2 apresentamos um resumo das características essenciais (nas vertentes epistemológica, psicológica, social e didático-pedagógica) da perspetiva de EPP.

Caracterização da perspetiva de ensino por pesquisa

Figura 2. Caracterização da perspetiva de EPP, nas vertentes epistemológica, psicológica, social e didático-pedagógica (adaptado de Lucas & Vasconcelos, 2005).

À semelhança da perspetiva de EMC, o EPP fundamenta-se na epistemologia racionalista contemporânea, segundo a qual a ciência desenvolve teorias para um melhor entendimento do mundo natural (Lucas & Vasconcelos, 2005). As ideias racionalistas de ciência e da construção do conhecimento científico traduzem os princípios da nova filosofia da ciência, reunidos por Cleminson (1999) (citado por Cachapuz et al., 2002) e que se apresentam de seguida:

1) O conhecimento científico não é definitivo, nem deve ser equiparado à verdade, pois tem apenas um caráter temporário.

Vertente epistemológica:

racionalismo

Vertente psicológica: aprendizagem por (re)construção pessoal e social, promovendo mudança de atitudes e

valores

Vertente sociológica: o professor promove situações de aprendizagem, em que o aluno

constrói conhecimento

Vertente didático-pedagógica: pedagogia por pesquisa; avaliação

formadora EPP

21 2) A observação, por si só, não é o ponto de partida para a construção do conhecimento científico numa maneira simplesmente indutivista, é indispensável um enquadramento teórico que a oriente. Como refere Jacob (1982) (citado por Cachapuz et al., 2002), para uma observação com algum valor, é preciso ter uma certa ideia do que há para observar.

3) O novo conhecimento em ciência resulta de atos criativos da imaginação com métodos de pesquisa científicos. É importante a imaginação aquando da tentativa de resolução do problema e em todo o trabalho científico. A ciência é uma atividade pessoal e imensamente humana.

4) A aceitação de novos conhecimentos científicos é problemática e nunca é fácil. As novas teorias são quase sempre recebidas com bastante ceticismo. No entanto, a mudança de teoria é um elemento natural em todas as áreas e evidencia o caráter evolutivo do conhecimento científico. 5) Os cientistas estudam um mundo do qual fazem parte e não um mundo do qual estão à parte.

É perante um contexto de permanente evolução que Cachapuz et al. (2002) afirmam que a nova didática das ciências implica um diálogo permanente entre o conhecimento científico de uma determinada área e o conhecimento relativo a outras vertentes, como a histórica e os próprios processos de construção do saber científico/tecnológico. No quadro da nova didática das ciências, vertente fundamental da educação em ciência, a perspetiva de EPP adquire verdadeiro sentido enquanto projeto de mudança (Baldaia, 2004).

Apesar da perspetiva de EPP ser aquela que, atualmente ganha destaque no ensino das ciências, parece-nos pertinente recordar, desde já, a ideia partilhada por vários autores, de que não existe uma perspetiva de ensino perfeita, que resolva todos os problemas educativos, isto é, não existe nenhum método que resulte com todos os alunos e que satisfaça todos os objetivos.

Antes de iniciarmos uma revisão mais específica sobre o EPP, optámos por abordar o contexto em que esta perspetiva surge, mais concretamente no âmbito de orientações internacionais para o inquiry como forma de abordagem ao ensino das ciências.