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5 A GARANTIA CONSTITUCIONAL DA FRATERNIDADE

5.4 Do Estado Liberal ao Estado Fraternal

Cotejando a afirmação, consagração e evolução do constitucionalismo,

consoante declinado nos itens anteriores, com os três estágios da humanidade

relacionando-os com o Direito, é mais do que razoável reconhecer – e quanto a esse

fato não há maiores discordâncias dignas de nota – que os ordenamentos jurídicos

contemporâneos lograram relativo êxito em combater a opressão e o arbítrio,

garantindo direitos de liberdade e direitos de igualdade. Assim foram assegurados os

direitos humanos fundamentais de primeira e de segunda dimensões com a instituição,

inicialmente do Estado Liberal e, num momento histórico seguinte, do Estado Social.

No entanto, os modelos liberal e social do Direito e do Estado exauriram-se e

não mais atendem as necessidades do mundo contemporâneo. A sociedade espera

que novos direitos sejam garantidos pelo ordenamento, visando a concretização da

fraternidade. Isto, em razão da nova compreensão de que a fraternidade enquanto valor

revela-se como premissa, condição e equilíbrio dos outros dois valores (liberdade e

igualdade).

Destacou Maria Emmaus Voce

393

em intervenção oral no Congresso

Comunhão e Direito, em 2005 (Castelgandolfo

– Roma), evidenciando o manifesto

393

VOCE, Maria. Intervenção oral (―Comunione e Diritto‖: le origini la proposta, la idealità) no Congresso

patrocinado pelo Movimento Comunhão e Direito, vinculado ao Movimento dos Focolares, em 18 de novembro de 2005, Castelgandolfo – Itália, publicado na coletânea: CASO, Giovanni (Ed.). Relazionalità

constante do folder de divulgação do evento, que os princípios da liberdade e da

igualdade, traduzidos no plano jurídico, reforçaram somente os direitos individuais. Tal

postura não foi nem é suficiente, além de não possibilitar encontrar respostas

satisfatórias para assegurar uma vida de interrelações entre os seres humanos e a

comunidade, pois se ressente de outro valor fundamental: a fraternidade.

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, do ano de 1789, no seu

art. 4º

394

, incorporou o princípio de que ―a liberdade consiste em pode fazer tudo aquilo

que não prejudique outrem: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não

tem por limites senão os que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos

mesmos direitos‖. Apesar de reconhecidamente individualista, a Declaração já

contempla regramento que transcende a individualidade.

Ora, no mesmo sentido, mas sem a carga individualista, quando o texto da

República Federativa do Brasil indica como um dos seus objetivos

– o primeiro –

―construir uma sociedade livre, justa e solidária‖, não está enunciando, como conclui

Daniel Sarmento

395

,

uma diretriz política desvestida de qualquer eficácia normativa. Pelo contrário, ela expressa um princípio jurídico, que, apesar da sua abertura e indeterminação semântica, é dotado de algum grau de eficácia imediata e que pode atuar, no mínimo, como vetor interpretativo da ordem jurídica como um todo.

nel Diriritto: quale spazio per la fraternità? Roma: Città Nuova, 2006, p. 19 a 23. O texto, já traduzido (O Congresso Comunhão e Direito: as origens, a proposta, a idealidade), pode ser encontrado na obra Direito e Fraternidade, edição conjunta (2008) de Comunhão e Direito, LTr e Editora Cidade Nova, sob a

organização de CASO, Giovanni et al, p. 19/22.

394 ―Art. 4. - La liberté consiste à pouvoir faire tout ce qui ne nuit pas à autrui : ainsi, l'exercice des droits

naturels de chaque homme n'a de bornes que celles qui assurent aux autres Membres de la Société la jouissance de ces mêmes droits. Ces bornes ne peuvent être déterminées que par la Loi‖. Disponível em: <http://www.conseil-constitutionnel.fr/conseil-constitutionnel/francais/la-constitution/la-constitution-du-4- octobre-1958/declaration-des-droits-de-l-homme-et-du-citoyen-de-1789.5076.html>. Acesso em: 18 nov. 2013.

395

SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Editora Lumen Júris, 2006, p. 295.

Adiante, na mesma obra, explica e complementa Daniel Sarmento:

[..] a solidariedade [aqui também é possível referir-se à fraternidade] implica reconhecimento de que, embora cada um de nós componha uma individualidade, irredutível ao todo, estamos também juntos, de alguma forma irmanados por um destino comum. Ela significa que a sociedade não deve ser um locus da concorrência entre indivíduos isolados, perseguindo projetos pessoais antagônicos, mas sim um espaço de diálogo, cooperação e colaboração entre pessoas livres e iguais, que se reconheçam como tais.

Eis, os elementos que apresentam a moldura de um novo modelo de Estado:

anuncia-se o Estado Fraternal.

Os ordenamentos jurídicos, agora, encontram fundamento na fraternidade/

solidariedade para justificar a consagração de novos direitos, particularmente os

destacados com titularidade coletiva: direitos transindividuais ou metaindividuais. A

fraternidade e solidariedade (empregadas pelos sistemas jurídicos indistintamente, mas

passíveis de serem especificadas como se verá adiante), enfim, passaram a ser o

fundamento para a concretização, por exemplo, de ações afirmativas, como também de

justiça distributiva.

A promulgação da Constituição de 1988, no Brasil, inaugurou a fase, do

Constitucionalismo Fraternal, como vem destacando Carlos Ayres Britto, num certo

sentido em sintonia com o que prega o Movimento Comunhão e Direito

396

. Utilizando

nomenclatura semelhante, mas com premissas e objetivos relativamente diversos, a

396 O Movimento Comunhão e Direito, como já destacado em nota anterior (nota 242), por meio de seus

membros, atuam com a seguinte finalidade: a) empenho no plano concreto das atividades dos profissionais do direito, nos diversos âmbitos jurídicos, legais e judiciais, para instaurar nelas uma práxis das relações inspirada pela fraternidade; b) estudo e pesquisa no plano doutrinal, voltados aos fins previstos e conduzidos em espírito de diálogo com as diversas instâncias da atual cultura jurídica. Os membros do movimento procuram trabalhar para uma atuação da justiça e uma renovação profunda no campo jurídico, legal e judicial, instaurando novos modos de comportamento e de relações jurídicas, inspirados na fraternidade. Procurando viver a fraternidade, percorrem um caminho em busca de sanar as múltiplas rupturas que agridem os relacionamentos e, ao mesmo tempo, garantir a comunhão, salvaguardando a identidade dos indivíduos. Maiores informações sobre o Movimento Comunhão e

Direito podem ser obtidas na página web disponíveil em:

teoria de Michele Carducci, quando explicita o que denominou de Constitucionalismo

Altruístico

397

.

Especificamente na doutrina pátria, define Carlos Ayres Britto, em

conferências e entrevistas, o Constitucionalismo Fraternal como

―a terceira e

possivelmente a última fase, o clímax do constitucionalismo‖

398

. Acrescenta, que o

Constitucionalismo Fraternal, como evolução histórica do constitucionalismo, é a ―fase

em que as Constituições incorporam às franquias liberais e sociais de cada povo

soberano a dimensão da Fraternidade‖

399

. O constitucionalismo fraternal traz consigo

um novo modelo de Estado: o Estado Fraternal.

Estado Fraternal, forjado em ambiência necessariamente democrática, que

incorpora novo elemento, que se soma aos que expressam a Democracia

procedimentalista e a Democracia substancialista, com o plus de uma Democracia

fraternal, como, mais uma vez de forma pioneira, desenvolve Carlos Ayres Britto

400

,

identificando uma ―terceira dimensão conceitual do humanismo‖:

Democracia fraternal, caracterizada pela positivação dos mecanismos de defesa e preservação do meio ambiente, mais a consagração de um pluralismo conciliado com o não-preconceito, especialmente servido por políticas públicas de ações afirmativas que operem como fórmula de compensação das desvantagens historicamente sofridas por certos grupamentos sociais, como os multirreferidos segmentos dos negros, dos índios, das mulheres e dos portadores de deficiência física (espécie de igualdade civil-moral, como ponto de arremate da igualdade política e econômico-social).

397CARDUCCI, Michele. Por um Direito Constitucional Altruísta. Porto Alegre: Livraria do Advogado

Editora, Ltda, 2003.

398

Ver registro do pensamento de Carlos Ayres Britto, por: CARDOSO, Marcos. O poeta decide. Infonet. Aracaju, 17 out. 2005. Disponível em: <http://www.infonet.com.br/noticias/ler.asp?id=40798>. Acesso em: 25 fev. 2010.

399

BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 216.

400

BRITTO, Carlos Ayres. O humanismo como categoria constitucional. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2007, p. 34-35.

Manifestando-se em outra oportunidade

401

, ainda sobre a evolução do

constitucionalismo, Carlos Ayres Britto afirmou que, após ter assumido ―uma feição

liberal ou libertária, uma função social ou igualitária, agora chega à terceira fase, que é

a fraternidade, para ombrear todas as pessoas em termos de respeito, referência e

consideração‖.

É um avançar sempre, como natural decorrência de um processo evolutivo

que tende toda a humanidade, inclusive o Direito, as Constituições e o próprio Estado.

Nesse ponto e caminhando nas pegadas da doutrina de Carlos Ayres Britto,

pavimentada, no particular, pelo reconhecimento de que tudo é movimento, na esteira

da compreensão de Heráclito de Éfeso

402

, reconhece não ser de se estranhar o

desenvolvimento do constitucionalismo em fases. E afirma

403

:

Tudo começando, embrionariamente, com a Magna Charta Libertatum de 1215, inaugural do que depois veio a se chamar de Estado de Direito. Este, por seu turno, a figurar como o primeiro elo dessa corrente de que vieram a fazer parte, sucessivamente, o Estado Democrático de Direito (liberal por excelência), o Estado de Direito Democrático (eminentemente social) e agora o Estado de Justiça ou Estado holístico (assim nos permitimos cunhar, face à crescente densificação dos princípios constitucionais e da própria constitucionalização de temas antes reservados à legislação comum ou de segundo escalão).

Ao final, identifica a nova fisionomia do nascente Estado, notabilizado como

Estado de funcionalidade fraternal. Atingiu-se, finalmente, como sentencia o autor, a

etapa fraternal de existência do Estado.

Todavia, uma advertência se impõe e pelo autor também é posta

404

: o

Estado Fraternal veio para transcender o Estado Social, sem o negar; assim como o

401

Ver registro do pensamento de Carlos Ayres Britto, realizado pelo jornalista Marcos Cardoso e veiculado no portal INFONET, em 10 de outubro de 2005. Disponível em <http://infonet.com.br/politica/ler.asp?id=407988titulo=opinião>. Acesso em: 25 fev. 2010.

402

É conhecido o pensamento do filósofo grego de que ―nenhum homem entra duas vezes nas águas do mesmo rio‖.

403

BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2003, p. 210.

404

Estado Social apresentou-se para superar o Estado Liberal, sem eliminar as respectivas

conquistas.

Ora, ao determinar a Constituição brasileira que é objetivo fundamental da

República Federativa construir uma sociedade livre, justa e solidária, constata-se,

cristalinamente, o reconhecimento de dimensões materializadas em três valores

distintos, mas em simbiose perfeita: a) Uma dimensão liberal: construir uma sociedade

livre; b) Uma dimensão social: construir uma sociedade justa; c) Uma dimensão

fraternal: construir uma sociedade solidária. E as dimensões não se excluem, nem se

substituem. Densificam-se ou incorporam-se entre si, fundindo-se num só composto.

Às tradicionais dimensões consagradas nos ordenamentos jurídicos vigentes

– e particularmente no Brasil – incorpora-se outra, de igual natureza, todas como

categorias constitucionais.

A Constituição busca, assim, com a dimensão fraternal, uma integração

comunitária

405

, uma vida em comunhão, uma comunhão de vida. Reconheceu-se na

Carta Magna vigente que, se as pessoas viverem em comunidade, com

responsabilidades recíprocas, de fato, estarão em comum unidade ou, para usar um

vocábulo mais apropriado, em ambiência de fraternidade, como pretendeu o legislador

constituinte com o compromisso preambular.

O mundo já vive ou, quando menos, se encaminha, pelas razões aduzidas,

no patamar do Estado Fraternal.

405 A idéia vem sendo objeto de uma série de palestras proferidas, desde o ano de 2003, por Carlos

5.5 O preâmbulo da Constituição do Brasil de 1988: compromisso com o