3 HUMANISMO INTEGRAL E FRATERNIDADE
3.1 O Humanismo: da Antiguidade à Modernidade
É comum destacar o humanismo como um fenômeno/movimento cultural que
caracteriza a modernidade. De fato, o humanismo no mundo moderno ocupa um lugar
determinante. Particularmente nos três últimos séculos da era cristã recebe um forte
influxo da cultura racionalista e secularizada, descando-se com especial ênfase a partir
do Renascimento.
O Renascimento teve início, enquanto movimento cultural humanista, na
península itálica, no séc. XV. Ensina Antonio Carlos Wolkmer
88, que o Renascimento ―é
a celebração do humano como força autônoma e racional‖, liberta de toda e qualquer
amarra transcendental que caracteriza o homem medieval. Neste sentido, o movimento
proclama o individualismo e o racionalismo.
Nas precisas lições de Giusti Tavares
89,
o Renascimento rompeu com a concepção medieval, teológico-natural, da sociedade como uma ordem natural presidida por Deus, fundada na fixidez e no imobilismo estamental de status e papéis [...] e substituiu-a por uma concepção [...] voluntarista da sociedade como construção histórico-social, cultural e artificial do homem.
A sociedade moderna, assim, traz como marca a passagem da cultura
teocêntrica medieval para uma cultura antropocêntrica. Caracteriza-se como era de
88
WOLKMER, Antonio Carlos. Cultura Jurídica Moderna, Humanismo Renascentista e Reforma Protestante. Revista Seqüência, n. 50, jul. 2005, p. 17.
89 Apud WOLKMER, Antonio Carlos, Cultura Jurídica Moderna, Humanismo Renascentista e Reforma
prática secular, resultado do processo de reação contra o predomínio da filosofia
escolástica de raiz essencialmente teocêntrica.
A busca pela autonomia do poder temporal dissociado do espiritual
(secularização do poder político) tem como momento de partida o ano de 1324, com a
divulgação da obra de Marsílio de Pádua, intitulada Defensor Pacis
90(baixa Idade
Média).
Mas não é, de fato, o Renascimento que faz nascer a cultura ocidental
humanista.
Refere Antonio Carlos Wolkmer
91, que as raízes do humanismo ocidental
podem ser encontradas em momento histórico bem anterior. Remontam à antiguidade
clássica, mais particularmente à civilização helênica. É de considerar com o autor,
contudo, que
embora os gregos tenham lançado os fundamentos filosóficos do humanismo ocidental e das raízes doutrinárias dos direitos naturais, não chegaram a reconhecer e desenvolver uma reflexão mais acabada [...] sobre a dignidade e o valor da pessoa humana.
Afinada no mesmo diapasão a doutrina de Ricardo Hasson Sayeg e Wagner
Balera
92quando, nas pegadas dos ensinamentos de Antônio Carlos Wolkmer
93,
acrescentam que o humanismo jurídico antigo caracterizava-se por reconhecer o Direito
90 Para um estudo mais aprofundado sobre o fundamento do Direito na Antiguidade Clássica e na Idade
Média, ver: WOLKMER, Antonio Carlos (Org.), Fundamentos do Humanismo Jurídico no Ocidente. Barueri: Editora Manole, 2005, p. 01-32.
91
WOLKMER, Antonio Carlos. O Direito como expressão da natureza cósmica: Sófocles, Aristótles e Cícero. In: WOLKMER, Antonio Carlos (Org.), Fundamentos do Humanismo Jurídico no Ocidente. Barueri: Editora Manole, 2005, p. 2.
92 SAYEG, Ricardo Hasson e Balera, Wagner. Capitalismo Humanista: Filosofia Humanista de Direito
Econômico. Petrópolis: KBR, 2011, p. 83.
93
WOLKMER, Antonio Carlos. Fundamentos do Humanismo Jurídico no Ocidente. Barueri: Editora Manole, 2005, particularmente no Capítulo 1, intitulado O Direito como expressa da natureza cósmica:
como expressão de natureza cósmica, representado no mito de Antígona, clássica obra
da tragédia grega, de autoria de Sófocles (séc. V A.C.).
Nela, Antígona insurge-se contra a lei do rei Creonte que condena Polínices
– irmão de Antígona – a permanecer insepulto exposto às aves carniceiras e cães,
acusado que foi de ter se colocado contra os interesses do Estado. Antígona
desobedece a lei e enterra seu irmão. Por tal desrespeito é presa e condenada à morte.
Questionada pelo soberano por que assim procedeu, em conduta flagrantemente
contrária à lei posta pelo Estado, respondeu Antígona
94que se portou com ousadia pelo
fato de que:
... não foi o meu Zeus que a proclamou E nem a justiça dos deuses lá debaixo, Que fixaram aos homens as perenes leis.
Não pensei que teus decretos fossem tão fortes A ponto que um mortal pudesse transgredir As inescritas e indeléveis leis divinas.
Elas não são de hoje, nem de ontem, são eternas. E ninguém nunca soube de onde elas vieram.
94 SÓFOCLES, Antígona, Rio de Janeiro: Topbooks, 2006, p. 49-50 (450-470). Em outra tradução da
mesma obra (SÓFOCLES, Antígone,[S.l]: eBooksBrasil, 2005, p. 30-31), o questionamento de Creonte (... tiveste a audácia de desobedecer a essa determinação?), obteve a seguinte resposta, apesar de possuir o mesmo sentido: ―Sim, porque não foi Júpiter que a promulgou; e a Justiça, a deusa que habita com as divindades subterrâneas jamais estabeleceu tal decreto entre os humanos; nem eu creio que teu édito tenha força bastante para conferir a um mortal o poder de infringir as leis divinas, que nunca foram escritas, mas são irrevogáveis; não existem; não existem a partir de ontem, ou de hoje; são eternas, sim! E ninguém sabe desde quando vigoram! – Tais decretos, eu, que não temo o poder de homem algum, posso violar sem que por isso me venham a punir os deuses! Que vou morrer, eu bem sei; é inevitável; e morreria mesmo sem a tua proclamação. E, se morrer antes do meu tempo, isso será para mim, uma vantagem, devo dizê-lo! Quem vive, como eu, no meio de tão lutuosas desgraças, que perde com a morte? Assim, a sorte que me reservas é um mal que não se deve levar em conta; muito mais grave teria sido admitir que o filho de minha mãe jazesse sem sepultura; tudo o mais me é indiferente! Se te parecer que cometi um ato de demência, talvez mais louco seja quem me acusa de loucura!‖. Em ainda uma diversa tradução (do grego, por Donaldo Schüler), desta feita materializada em SÓFOCLES, Antígona, Porto Alegre: L&PM POCKET, 2012, pp. 34-35, o texto assim se apresenta: ―Não foi com certeza, Zeus que as proclamou, nem a Justiça com trono entre os deuses dos mortos as estabeleceu entre os homens. Nem eu supunha que tuas ordens tivessem o poder de superar as leis não escritas, perenes, dos deuses, visto que és mortal. Pois elas não são de ontem nem de hoje, mas são sempre vivas, nem se sabe quando surgiram. Por isso, não pretendo, por temor às decisões de algum homem, expor-me à sentença divina. Sei que vou morrer. Como poderia ignorá-lo? E não foi por advertência tua. Se antes da hora morremos, considero-o ganho. Quem vive num mar de aflições iguais às minhas, como não há de considerar a morte lucro? Defrontar-me com a morte não me é tormento. Tormento seria, se deixasse insepulto o morto que procede do ventre de minha mãe. Tuas ameaças não me atormentam. Se agora te pareço louca, pode ser que seja louca aos olhos de um louco‖.
Crês que, por temer um homem, eu as violaria, Sob pena de expor-me à cólera divina?
Eu vou morrer, eu sei, e sempre soube disso, Mesmo antes do decreto. Mas se vou morrer Antes da hora, inda assim saio ganhando. Como a vida pra mim é miséria e desgraça? Não me aflige essa sina. Porém, se aceitasse, Pra um filho morto de minha própria mãe, Que o jogassem no ermo, o corpo sem sepulcro, Isto me afligiria. A morte não me aflige.
Pra ti talvez agora eu pareça uma louca, Talvez essa loucura eu deva a um outro louco.
Antígona, como afirma Antonio Carlos Wolkmer
95, apresenta-se à
humanidade como ―símbolo de um humanismo de resistência‖.
Aristóteles, por outro lado, um século após, nas conhecidas e clássicas obras
Ética a Nicômaco e Política (Séc. IV A.C.), apresenta o homem em sua relação com a
cidade (homem-cidade). Destaca a natureza política do homem e o considera
particularmente virtuoso se vive para a polis, considerada fim (télos) e causa final da
associação humana
96. Daí a afirmação: ―o homem é um ser político e está em sua
natureza viver em sociedade‖
97(animal político, logo). Acrescenta o Estagirita que se,
―por instinto e não por inibição de qualquer circunstância, deixa de participar de uma
cidade, é um ser vil ou superior ao homem‖
98. Para o filósofo grego, ―na ordem natural,
o Estado antepõe-se à família e a cada indivíduo, visto que o todo deve,
obrigatoriamente, ser posto antes da parte‖
99.
Explicita Antônio Carlos Wolkmer
100, que tanto a ética de Aristóteles, como a
sua filosofia jurídico-política ―são atravessadas pela idéia da natureza política do
95 WOLKMER, Antonio Carlos. O Direito como expressão da natureza cósmica: Sófocles, Aristótles e
Cícero. In: WOLKMER, Antonio Carlos (Org.), Fundamentos do Humanismo Jurídico no Ocidente. Barueri: Editora Manole, 2005, p. 4.
96
Introdução à edição de Ética a Nicômaco, de Aristóteles. São Paulo: Martin Claret, 2003, p. 14.
97
ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, São Paulo: Martin Claret, 2003, p. 210.
98 ARISTÓTELES, Política, São Paulo: Martin Claret, 2003, p. 14. 99
Ibidem, p.14.
100 WOLKMER, Antonio Carlos. O Direito como expressão da natureza cósmica: Sófocles, Aristótles e
Cícero. In: WOLKMER, Antonio Carlos (Org.), Fundamentos do Humanismo Jurídico no Ocidente. Barueri: Editora Manole, 2005, p. 5.
homem e a prática virtuosa da vida integrada no âmbito da cidade ou da pólis‖. A
virtude não se constitui em disposição natural dos homens, mas é adquirida pelo
exercício dos seus atos e pela força dos hábitos, como anota Zeferino Rocha
101,
aperfeiçoando o homem no mais íntimo do seu ser.
Numa perspectiva humanista é o que poderia ser denominado de
humanismo cívico, como acrescenta Alejandro Llano
102:
entiendo por "humanismo cívico" la actitud que fomenta la responsabilidad y la participación de las personas y comunidades ciudadanas en la orientación y desarrollo de la vida política. Postura que equivale a potenciar las virtudes como referente radical de todo incremento cualitativo de la dinámica pública.
Vale destacar que o humanismo cívico aristotélico apresentava-se como um
humanismo excludente, visto que na Antiguidade os homens eram valorizados por suas
posses, qualidades e feitos heróicos, não se incluindo nesta concepção os pobres, as
mulheres
103e os escravos
104, todos, por condição e natureza, distantes do modelo
101 ZEFERINO, Rocha. O amigo, um outro si mesmo: a Philia na metafísica de Platão e na ética de
Aristóteles. Psychê, Ano X, n. 17, São Paulo, jan-jun/2006, p. 76. Disponível em:
<http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=30701705>. Acesso em: 29 out. 2013. O autor, professor titular aposentado do Departamento de Psicologia da UFPE, destacando o humanismo aristotélico, acrescenta: ―A bondade virtuosa marca o homem naquilo que ele é. Quando é bom e virtuoso, o homem é de modo excelente aquilo que é, vale dizer, realiza de modo mais perfeito o humano do homem‖.
102
LLANO, Alejandro. El humanismo cívico y sus raices aristotélicas. In: REUNIÕES FILOSÓFICAS, 38, Navarra, abr. 1999. Anuario Filosófico, n.32, p.443-468, 1999. Disponível em: <http://dspace.unav.es/dspace/bitstream/10171/405/5/3.%20EL%20HUMANISMO%20C%C3%8DVICO% 20Y%20SUS%20RA%C3%8DCES%20ARISTOT%C3%89LICAS,%20ALEJANDRO%20LLANO.pdf>. Acesso em: 08 out. 2013.
103
Nessa linha de reconhecimento da inferioridade da mulher grega, a afirmação de Creonte, em Antígona (525), de que enquanto estivesse vivo, não permitiria que mulher fizesse lei (ou que governasse, em outra tradução, ou, ainda, que o dominasse).
104 Ver trechos da obra Política (São Paulo: Martin Claret, 2003, p. 19), onde Aristóteles considera a
escravidão como útil e até justa, comparando, inclusive, a utilidade dos escravos a dos animais domésticos. Diz o filósofo: ―A utilidade que têm os escravos é quase a mesma dos animais domésticos: auxiliam-nos com sua força física em nossas diárias necessidades. A natureza mesma parece desejar dotar de características diferentes os corpos dos homens que são livres e dos que são escravos. Uns, efetivamente, são fortes para o trabalho a que são destinados; os outros são inteiramente inadequados para serviços tais, porém são de utilidade para a vida civil, que desta forma se encontra dividida entre os trabalhos da guerra e os da paz. Acontece, contudo, o contrário com muita freqüência; existem indivíduos que possuem o corpo de homem livre, enquanto que outros dele apenas têm a alma‖. Na p. 21 (§ 20), acrescenta: ―Vê-se, portanto, que a discussão que acabamos de manter tem certo fundamento: existem
grego do homem livre (patrimônio + masculino + liberdade)
105. Para o filósofo grego,
averbe-se, havia homens que ordenavam e homens que obedeciam e, ainda, os que
realizavam trabalhos manuais (artesãos) e os homens que se ocupavam de funções
mais nobres (cidadãos). Reconhecia, pois, Aristóteles que os indivíduos em geral não
são necessariamente qualificados como cidadãos
106.
Apesar da distinção, é sabido que o pensamento grego foi pautado pela
máxima antropocêntrica concebida por Protágoras, materializada na conhecida
sentença o homem é medida de todas as coisas. Mas, qual homem? O ser humano em
geral ou somente o homem livre, o filósofo, o qualificado como superior? A aparente
contradição é justificada por Ricardo Hasson Sayeg e Wagner Balera, quando explicam
que o homem grego é medida de todas as coisas, ―desde que cidadão‖
107, na linha do
pensar aristotélico, até certo ponto reducionista da comum humanidade, como será
adiante evidenciado.
Na verdade – e retomando o pensamento grego tendo em vista a obra antes
referida de Sófocles – em Antígona, destacam-se concepções contrapostas, tão bem
relatadas em primoroso ensaio de Mauro Bonazzi
108, compreendidas em cotejo com o
pensamento do sofista pré-socrático, Protágoras de Abdera (Séc. V A.C.).
Protágoras difunde o humanismo e o relativismo, a partir de duas
importantes, quanto polêmicas, declarações.
A primeira, voltada para a celebração incondicional do homem, mais
conhecida e já mencionada de forma resumida anteriormente. Ei-la, agora,
escravos e homens livres pela própria ação da natureza. Essa distinção permanece em alguns seres, sempre que do mesmo modo pareça útil e justo para alguém ser escravo para outrem comandar; porque é preciso que aquele atenda e este mande conforme o seu direito natural, quer dizer, com uma autoridade plena‖.
105
WOLKMER, Antonio Carlos. O Direito comoparte da ordem divina: Justiniano, Santo Tomás de Aquino e Marsílio de Pádua. In: WOLKMER, Antonio Carlos (Org.), Fundamentos do Humanismo Jurídico no
Ocidente. Barueri: Editora Manole, 2005, p. 16.
106 ARISTÓTELES, Política, São Paulo: Martin Claret, 2003, p. 87. 107
SAYEG, Ricardo Hasson e BALERA, Wagner. Capitalismo Humanista: Filosofia Humanista de Direito Econômico. Petrópolis: KBR, 2011, p. 83.
integralmente: ―O homem é medida de todas as coisas, daquelas que são, de como
são; daquelas que não são, de como não são‖.
A segunda, esta relativamente aos deuses, construída pelo pensador grego
mediante a seguinte invocação
109:
Com relação aos deuses não estou em condição de saber nem que existem nem que inexistem, nem qual é seu aspecto: na verdade são muitas as dificuldades que impedem isso, a obscuridade do assunto e a brevidade da vida humana.
Explica Mauro Bonazzi, que Protágoras tinha dois objetivos perfeitamente
inter-relacionados: distanciar os deuses do mundo dos homens e, como conseqüência,
levar os homens ao centro do mundo.
Por outro lado, é de se recordar, como destaca o autor, que, na obra
Antígona, Sófocles traz a lume duas concepções
110: a defendida por Creonte – o nomos
(a lei, costumes, tradição), como tudo aquilo que o homem atribui valor; e aquela
assumida por Antígona – a physis (a natureza, a realidade das coisas, que prescinde de
intervenção externa). Tais concepções emolduram todo o desenrolar da tragédia.
Uma nova leitura da clássica tragédia é, nesses termos, realizada pelo
professor da Università degli Studi di Milano, Mauro Bonazzi. A dicotomia trazida por
Sófocles – lei humana (mundo da polis e do nomos humano) versus lei divina (universo
religioso de Zeus e Dike) – em meio ao pensamento de Protágoras, como destaca
Mauro Bonazzi
111, não tem a função tão somente, como pode parecer, de evidenciar o
conteúdo de leis universais, não escritas, as quais Antígona invoca, mas lembrar ao seu
público a existência de uma ordem de valores mais elevada que a dos homens e que
escapa à possibilidade de um controle completo por parte do homem. Assim, a
conclusão obtida é a de que o grande erro do homem foi ter colocado o homem no
109
BONAZZI, Mauro. Antígona contra o sofista. Archai. n. 7, jul-dez 2011, p. 77.
110 Ibidem, p. 76. 111
centro de tudo. E qual a decorrência de tal constatação? Afirma o autor
112: ―passa-se da
justiça à força, a um poder autocrático e unilateral, cuja única legitimação reside na
capacidade de proteger seu próprio poder e não no esforço para proteger o bem da
comunidade‖. Ou por outra, como resume Mauro Bonazzi
113, ―o problema para Sófocles
é que o mundo no qual o homem é a única medida corre o risco de se tornar um mundo
sem medida ou, pior ainda, um mundo com a força sendo a única medida‖.
Essas, as armadilhas de um humanismo desmedidamente antropocêntrico,
além de flagrantemente excludente, como era o do mundo clássico grego.
De uma visão cosmocêntrica do mundo grego – por compreender a realidade
a partir do cosmos ou da natureza, levando a sociedade a ser regida fundamentalmente
por uma lei natural cósmica –, mas antes mesmo da passagem da antiguidade à era
medieval, novos paradigmas se apresentam simbolizados na fraternidade universal
cristã, como valor absoluto. O cristianismo oferece à humanidade um novo modelo de
vida e de visão do mundo, cujo bem maior não é mais o Estado do mundo grego, a
cidade, a polis, mas o homem – todos os homens indistintamente, o gênero humano –
em sociedade.
Evidencia Antonio Carlos Wolkmer
114, invocando as lições de José Soder,
que a nova cosmovisão apresentada pela doutrina cristã, reconhece o homem
enquanto matéria e espírito, em unidade, e, nessa condição, destaca a dignidade da
pessoa humana, elemento que identifica o homem todo
– considerado na sua
integralidade – e todos os homens (o gênero humano sem distinções qualitativas do
mundo grego). Isto, a partir de uma fundamental e inafastável premissa, pois
dogmática: os homens muito mais do que iguais; são irmãos, pois, todos, filhos do
mesmo Pai, Deus celestial.
112 BONAZZI, Mauro. Antígona contra o sofista. Archai. n. 7, jul-dez 2011, p. 83 113
Ibidem, p. 75.
114 WOLKMER, Antonio Carlos. O Direito comoparte da ordem divina: Justiniano, Santo Tomás de Aquino
e Marsílio de Pádua. In: WOLKMER, Antonio Carlos (Org.), Fundamentos do Humanismo Jurídico no
Aqui se encontra a base do humanismo cristão que permeou toda a Idade
Média, notabilizando-se como era eminentemente teocêntrica.
Destacam-se na alta Idade Média, da filosofia patrística, Agostinho, autor das
célebres obras Confissões e de Cidade de Deus e, ainda, no período que compreende
os séculos XII e XIII, agora já na baixa Idade Média, Tomás de Aquino, principal
expoente da Escolástica, responsável pela construção da monumental obra Summa
Theologica. Agostinho e Tomás de Aquino são os mais expressivos representantes do
pensamento medieval teológico e filosófico cristão. A doutrina por eles desenvolvida,
em especial a de Tomás de Aquino, particularmente no campo do Direito, explicita o
direito natural a partir do reconhecimento de um humanismo de tradição teocêntrica,
destacando o ser humano como uma unidade integrada de espírito e matéria. Nesse
sentido o Doutor Angélico, nos seus Tratado das Leis
115e Tratado da Justiça
116, traz a
lume uma valiosa construção jusfilosófica e humanista, como registra Antonio Carlos
Wolkmer, relativamente à interpretação ―do Direito como Justiça social que expressa o
bem-comum e da reflexão humanizadora acerca da vida com dignidade‖
117.
Exatamente neste momento da história – final da Idade Média –, o processo
de efervescência cultural proporciona o repensar do homem e da humanidade,
inaugurando, a partir daí, um novo período do humanismo e de seus fundamentos.
Surge o movimento conhecido como Renascimento e com ele, o antropocentrismo,
representando, com a chamada modernidade, o fim da hegemonia cristã.
115
AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, 2. ed. Vol. IV, São Paulo: Edições Loyola, 2010, pp. 5211 a 603.
116 AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. Vol. VI, São Paulo: Edições Loyola, 2005, pp. 41 a 276.
117 WOLKMER, Antonio Carlos. O Direito comoparte da ordem divina: Justiniano, Santo Tomás de Aquino
e Marsílio de Pádua. In: WOLKMER, Antonio Carlos (Org.), Fundamentos do Humanismo Jurídico no
Esclarecedora, no particular, a argumentação levada a efeito por Oscar
Vilhena Vieira
118, quando, tratando da evolução e dos fundamentos filosóficos dos
direitos humanos, ingressa em tal momento da história:
Com o fim da hegemonia cristã, há uma ruptura dos paradigmas de verdade impostos pelo pensamento dogmático. E com isto a idéia de direitos naturais decorrentes de Deus perde a sua sustentação. Já no Renascimento o pensamento de base cristã começa a ser desafiado. Os fundamentos do poder e da própria arte, que estavam diretamente submetidos ao domínio cultural da igreja, começam a se esgarçar. Basta para isto ter em mente as figuras e as obras de Michelangelo e Maquiavel. O que uniu o gênio da arte ao criador da ciência política moderna foi a capacidade destes dois homens, não apenas de se libertar dos paradigmas dominas nas suas esferas de ação, mas de reencontrar o humano, separando-o do religioso. Se compararmos a arte pré- renascentista com as pinturas e esculturas de Michelangelo, poderemos perceber que seus personagens são homens e mulheres que não são feitos à