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Do Princípio do Estado de Direito à Constituição Fiscal

III PARTE

PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS SUBJACENTES À

2. Do Princípio do Estado de Direito à Constituição Fiscal

No seguimento do que acima referimos, o poder tributário funda-se no princípio do Estado de direito democrático, princípio que a CRP consagra no art.º 2.º e que abrange duas componentes inseparáveis, a de Estado de Direito e a de Estado Democrático, mas cuja plenitude só será atingida com a conjugação dos princípios estabelecidos no art.º 1.º, designadamente os princípios da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da justiça e da solidariedade, bem como com o princípio da constitucionalidade do art.º 3.º da Constituição.

Neste sentido, a República Portuguesa, cuja soberania reside no povo, constitui-se como um Estado de direito democrático, que se traduz na instituição do poder político soberano no Estado, o qual se deverá subordinar a um conjunto de princípios e regras jurídicos previstos na Constituição e cujo exercício se há de concretizar no respeito e na garantia de efetivação dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos.

Enquanto Estado de direito democrático, a Constituição determina que, para além de dever assegurar a democracia participativa, aquele deverá promover a “… reali ação da

democracia económica, social e cultural…” (cfr. art.º 2.º, CRP), isto é, prosseguir o “Estado

Social”, traduzido designadamente na responsabilização pública de seguir o desenvolvimento económico, social e cultural, de garantir mínimos de existência para todos e de corrigir as desigualdades sociais.

Os princípios enunciados encontram-se densificados no art.º 9.º da CRP, que identifica os fins ou tarefas fundamentais que o Estado deve prosseguir, os quais são depois concretizados em outras disposições constitucionais, e que visam em última instância o desenvolvimento harmonioso da coletividade de indivíduos que o compõe.

Pela sua importância para a matéria em estudo, destacamos a tarefa fundamental enunciada na al. d) do art.º 9.º, que se refere à dimensão Estado Social e que, segundo a Constituição, deverá ser concretizada da seguinte forma: “Promover o em-estar e a

qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem como a efetivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais, mediante a transformação e moderni ação das estruturas económicas e sociais;”.

Dessa norma se inferem os princípios do “Estado Bem-Estar” e da “Eficiência” do Estado, que deverão ser articulados nomeadamente com os art.os 58.ºss, assim como, com os

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art.os 80.º e 81.º da “constituição económica”, que se referem, respetivamente, aos princípios fundamentais da organização económico-social e às incumbências prioritárias do Estado, no âmbito económico e social.

E, de entre os deveres prioritários do Estado nesse domínio, salientamos o da al. b) do art.º 81.º, que prescreve o seguinte: “ Promover a justiça social, asseverar a igualdade de

oportunidades e operar as necessárias correções das desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento, nomeadamente através da política fiscal;”

Surge assim uma das funções primordiais que a Constituição reserva à política fiscal, a de contribuir para a eliminação das desigualdades entre os cidadãos, mediante a repartição justa dos rendimentos e da riqueza.

Mas, para prosseguir as tarefas fundamentais a que se encontra constitucionalmente obrigado, será legítimo ao Estado esperar da parte de cada um dos cidadãos a solidariedade e responsabilidade necessárias para com os outros membros da sociedade, tendo em vista o desenvolvimento do bem comum e a manutenção do próprio Estado.

Com efeito, a Constituição consagra deveres fundamentais aos cidadãos, nomeadamente, os que se encontram associados, direta ou indiretamente, aos direitos fundamentais que constituem a Parte I da CRP (art.os 12.º a 79.º), mas também contempla deveres fundamentais em outras disposições constitucionais e que não estão relacionados com nenhum direito fundamental, de entre os quais se acha o dever de pagar impostos do art.º 103.º e, reconhecendo a Lei Fundamental a existência de outras figuras tributárias (cfr. art.º 165.º, n.º 1, al. i)), esse dever compreende os demais tributos públicos.

Gomes Canotilho e Vital Moreira designam esses deveres como “deveres

autónomos”, de conteúdo cívico-político, que têm a caraterística primordial de

corresponderem a deveres dos cidadãos para com o Estado, estando ligados à ideia liberal de comprometimento dos indivíduos na existência do Estado502.

Para aqueles Constitucionalistas esses deveres não se podem confundir com restrições ou limitações de direitos fundamentais. Porém, a sua qualidade de “ ens constitucionalmente

protegidos” poderá justificar autorizações de restrição aos direitos fundamentais, nos termos

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do art.º 18.º, n.º 2, 2ª parte da CRP503, ou seja, os direitos fundamentais poderão ser restringidos com fundamento naqueles deveres, desde que, seja respeitado o princípio da proporcionalidade.

Por estas razões, os “deveres autónomos” constituem-se quase sempre como obrigações dos indivíduos, exigindo que o seu cumprimento se encontre rigorosamente regulado na lei504.

Com efeito, correspondendo os tributos a uma ablação coativa do rendimento e da riqueza gerada pelos cidadãos, contendem com direitos, liberdades e garantias individuais, consignados constitucionalmente, como o direito de propriedade privada (Art.º 62.º da CRP) e o de iniciativa privada (Art.º 61.º da CRP), razão pela qual a sua criação há de obedecer a um conjunto de rigorosos princípios reguladores, que mais não são do que limites à ingerência, na vida privada, do poder tributário do Estado.

Assim, por um lado, temos a obrigação dos cidadãos, enquanto membros da coletividade, de contribuírem para os encargos públicos e, deste modo, poderem ver os seus direitos e liberdades restringidos, e, por outro, um Estado que tem como principal recurso para as suas despesas a figura dos impostos, embora cada vez mais recorra aos tributos de cariz comutativo e paracomutativo, cuja imposição ao colidir com direitos e liberdades essenciais dos cidadãos, deverá obedecer a rigorosos princípios limitadores do seu exercício.

Desta forma se compreende que, a nossa Constituição, à semelhança das Constituições de outros Estados, mormente dos Estados da UE505, consagre normas disciplinadoras do ordenamento jurídico-fiscal dirigidas às instâncias com poder de criar e regulamentar os impostos e, embora parca em normas orientadas para a regulação do poder de instituir outras espécies de tributos, não deixe de as contemplar.

Deste modo, entre nós, o cerne da denominada “constituição fiscal” abrange os art.os 103.º e 104.º da CRP, os quais respeitam respetivamente ao sistema fiscal e às principais espécies de impostos506.

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GOMES CANOTILHO, J. J. e MOREIRA, Vital – cit. 251, pp. 320-321.

504 GOMES CANOTILHO, J. J. e MOREIRA, Vital – cit. 251, p. 321.

505 GOUVEIA, Jorge Bacelar – Considerações Sobre as Constituições Fiscais da União Europeia.

(janeiro-março 1996), pp. 39ss.

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No art.º 103.º, n.º 1, cujo conteúdo se transcreve abaixo, consagram-se os dois objetivos, financeiro e extrafinanceiro, que a Constituição incumbe o sistema fiscal de prosseguir, e aos quais nos referimos atrás, a saber, a angariação das receitas necessárias ao Estado – “… satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades

pú licas…” (art.º 103.º, n.º 1, 1ª parte), e a contribuição para a efetiva igualdade dos cidadãos

– “… repartição justa dos rendimentos e da rique a.” (art.º 103.º, n.º 1, 2ª parte).

No art.º 104.º, a Constituição prescreve os princípios fundamentais da constituição fiscal material e, do seu conteúdo, ao qual a doutrina se refere como constituindo uma verdadeira“reforma fiscal”507, sobressai a imposição de que a tributação deverá atingir não só o rendimento, mas também o consumo e o património508.

É opinião da doutrina que, o art.º 104.º da CRP não proíbe a existência de outros impostos, desde que conformes aos preceitos constitucionais509.

Com efeito, a existência de outros impostos obriga a que, tal como escrevia Teixeira Ribeiro, “não colidam com a estrutura do sistema nem prejudiquem o seu o jetivo, que é a

diminuição das desigualdades, ou só o prejudiquem em solução de compromisso com outro o jetivo que tam ém incum a ao Estado…”510

.

Para Jorge Miranda e Rui Medeiros, não será legítimo considerar-se que a CRP estabeleça preferências na adoção de qualquer uma das modalidades de tributação previstas no referido preceito constitucional, quando muito, a referência à repartição justa do rendimento como um dos princípios essenciais do sistema fiscal (cfr. art.º 103.º, n.º 1 da CRP), apontará no sentido da tributação do rendimento assumir particular relevância no sistema, pois, só assim, se logrará atingir tal desiderato511.

No que respeita à tributação do património, como já tivemos ocasião de o mencionar, a atual versão do n.º 3 do art.º 104.º da CRP, introduzida pela revisão constitucional de 1997, apenas determina que, a mesma “… deve contri uir para a igualdade entre os cidadãos.”.

Como advertem Gomes Canotilho e Vital Moreia, a tributação do património não deverá confundir-se com a tributação dos rendimentos do património, estes deverão ser

507 CASALTA NABAIS, José – As Bases Constitucionais da reforma da Tributação do Património.

(janeiro 2004), p. 5

508 MIRANDA, Jorge e MEDEIROS, Rui – cit. 476, p. 226.

509 GOMES CANOTILHO, J. J. e MOREIRA, Vital – cit. 251,p.1099) 510 TEIXEIRA RIBEIRO - cit. 226, p. 137

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tributados em sede de imposto sobre o rendimento pessoal, e acrescentam que, aquela tributação poderá incidir sobre o património em si mesmo, como serão os casos do imposto sobre imóveis e do imposto sobre a fortuna, ou sobre as transferências patrimoniais, como será o imposto sobre as aquisições imobiliárias512.

Por seu turno, Casalta Nabais refere-se à liberdade conferida pela norma do art.º 104.º, n.º 3 ao legislador ordinário, podendo este optar por uma tributação sintética, de um imposto geral sobre o património, ou por uma tributação analítica como a que existe atualmente513.

Já Xavier de Basto alude ao conteúdo inócuo e vazio da norma constitucional do art.º 104.º, n.º 3, por o mesmo não ter qualquer eficácia normativa ou por nem corresponder a um qualquer limite que se imponha ao legislador ordinário na escolha do modelo de tributação do património, além de se configurar como uma norma redundante, face aos objetivos gerais do sistema fiscal enunciados no art.º 103.º514.

Contudo, no nosso entender, a tributação do património, seja qual for a sua modalidade, por imposição constitucional específica para este domínio da tributação, deverá ter como objetivo primordial o de contribuir para a igualdade dos cidadãos e, dessa forma, assume particular relevância na prossecução do objetivo extrafinanceiro do sistema fiscal, o designado “o jetivo social” nas palavras de Gomes Canotilho e Vital Moreira515.

Mas se das normas constitucionais, quer em sede da constituição fiscal, quer em sede da constituição económica (cfr. art.º 81.º, al. b) da CRP), quer em sede do próprio princípio da igualdade (art.º 13.º da CRP), resulta que, o sistema fiscal, considerado na sua globalidade, deverá assentar na justiça social, tal incumbência exige, nomeadamente, a progressividade do sistema no seu todo, onerando os maiores rendimentos e as maiores fortunas.

Porém, é entendimento da doutrina constitucional que, se o sistema fiscal deverá ser progressivo na sua globalidade, cada um dos impostos que o constituem não tem de o ser516,

512 GOMES CANOTILHO, J. J. e MOREIRA, Vital – cit. 251,p. 1101. 513 CASALTA NABAIS, José – cit. 507, p. 7.

514 XAVIER DE BASTO, José Guilherme – A Constituição e o Sistema Fiscal. In: XXV Anos de

Jurisprudência Constitucional Portuguesa - Colóquio comemorativo do XXV aniversário do Tribunal Constitucional, 24 e 25 de outubro de 2008, p. 188.

515 CANOTILHO, J. J. Gomes e MOREIRA, Vital – cit. 251, p. 1089.

516 CANOTILHO, J. J. Gomes e MOREIRA, Vital – cit. 251, p. 1089; MIRANDA, Jorge e

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pelo que, a CRP não exige a progressividade dos impostos sobre o património, deixando ao legislador a opção da solução a seguir517.

Pese embora a referência ao papel primordial dos impostos sobre o património na diminuição das desigualdades sociais, ao integrar-se no sistema fiscal nacional, esse domínio da tributação visará também o objetivo fiscal, que se reveste de natureza estritamente financeira e, nesta sede, há de também revelar-se justa na repartição dos encargos públicos, a outra vertente da igualdade tributária entre os cidadãos.

Desta forma, deverá contribuir para a obtenção das receitas necessárias ao Estado, mas também a outras entidades públicas, designadamente as “… pessoas coletivas

territoriais…”518

, como as autarquias locais (cfr. art.º 238.º CRP). E, neste âmbito, interessará que, a tributação do património contribua para a eficiência do sistema fiscal na criação e arrecadação de receitas.