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DUAS HIPÓTESES SOBRE A DIMENSÃO ORÇAMENTÁRIA DA GUERRA FISCAL

No documento Um estudo sobre a guerra fiscal no Brasil (páginas 51-54)

A resenha do primeiro capítulo expondo os principais estudos teóricos e empíricos sobre a guerra fiscal no Brasil destacou duas visões divergentes a respeito da dimensão orçamentária das disputas subnacionais: a do autoextermínio e a da autonomização. É necessário retomá-las agora outra

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vez para avançar no entendimento de alguns aspectos dessa relação existente entre as iniciativas concorrenciais adotadas pelos estados com vistas a atrair empreendimentos privados para as suas respectivas regiões e as correlatas condições fiscais e financeiras vigentes. Mais precisamente, interessa verificar um pouco mais de perto em que medida os programas de fomento são afetados em decorrência da fragilização do poder de gasto dos governos estaduais, passando a experimentar possivelmente nesses casos algum tipo de limitação em termos de insuficiência de recursos para fazer face aos incentivos que usualmente são manejados no bojo dos referidos embates federativos por investimentos produtivos.

Devem ser recobrados neste ponto os argumentos centrais de cada uma das referidas hipóteses. A do autoextermínio assume que a guerra fiscal tende a um movimento próprio de exaustão, uma vez que o aguçamento da competição subnacional redunda na escalada desenfreada de incentivos e culmina na generalização de práticas predatórias entre os governos estaduais visando capturar o maior volume de projetos econômicos privados para as suas jurisdições. Nessa fase extrema do conflito, em que as políticas de estímulo aos investimentos estão plenamente disseminadas, os incentivos perderiam seus diferenciais e seriam equalizados, invalidando-se mutuamente. O equilíbrio seria reposto, mas em um quadro de substancial comprometimento da receita tributária e de excessivos gastos públicos. Essa dinâmica race-to-the-bottom implicaria paulatino e inescapável agravamento das condições orçamentárias dos estados, o que exigiria, em consequência, a contenção dos incentivos, reforçando ainda mais por esse lado também a propensão de esgotamento da guerra fiscal por si mesma. A interpretação de Franco & Jorge Neto (2001) é bastante representativa dessa abordagem:

Em algum estagio n > 0, a guerra fiscal cessa e os estados passarão a adotar a estratégia de não conceder isenção fiscal para as firmas, (re)equilibrando com isto seus orçamentos [...] Após n estágios, quando não é mais sustentável a concessão de isenção fiscal para as firmas, o governo terá que (re)equilibrar o orçamento, cobrando um nível de imposto sobre as firmas, necessário para financiar o nível de gasto G anterior mais os serviços da dívida acumulada até o estágio n (Franco & Jorge Neto, 2001, p 774).

A hipótese da autonomização, ao contrário, não concebe a inibição das iniciativas litigiosas de fomento em razão de dificuldades fiscais enfrentadas pelos entes subnacionais envolvidos nas contendas federativas. A ideia básica é a de que os incentivos tributários, peça principal dos programas de desenvolvimento, não resultariam num obrigatório comprometimento da situação orçamentária, à medida que são calcados na receita futura de ICMS gerada pelos próprios empreendimentos beneficiados. Em verdade, caso sejam bem-sucedidos e permitam a ampliação dos níveis de produção, emprego e renda, esses projetos propiciariam o incremento da arrecadação que, de outra maneira, não seria factível de ocorrer na ausência das vantagens generosas ofertadas a fim de atrair aquele

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investimento dinamizador da economia local. Sob tal perspectiva, as ações beligerantes direcionadas a capturar projetos produtivos, além de ensejarem o aumento da receita, não afetariam as condições fiscais e financeiras correntes do governo estadual que concede os incentivos. Essa formulação é assim enunciada por Prado & Cavalcanti (2000, p. 43, 44 e 46)14:

Não há qualquer evidência, seja de um ponto de vista histórico mais amplo, seja entre os eventos recentes, de que a guerra fiscal envolva necessariamente uma degradação da situação individual fiscal dos Estados que a praticam. Em consequência, não há, por esse lado, qualquer tendência inexorável à perda de dinamismo das políticas de incentivo [...] Ao contrário do usualmente postulado, a guerra fiscal não resulta numa inexorável e imediata degradação da situação fiscal de cada governo subnacional que a pratica [...] A importância dessa constatação não pode ser subestimada: indica que a guerra fiscal não tende a „morrer por si mesma‟.

O contraste entre as duas referidas hipóteses permite verificar, de imediato, como cada uma delas considera a correlação existente entre as ações hostis adotadas pelos estados no âmbito da guerra fiscal e as restrições orçamentárias individuais prevalecentes. Essas restrições orçamentárias, cabe observar, podem ser suscitadas por diversos fatores. Decorreriam, por exemplo, de desequilíbrios fiscais provocados e/ou aprofundados pelas próprias benesses ofertadas para atrair investimentos privados. Ou sucederiam – e é isso que está no foco do presente estudo – de um regime de política fiscal mais rígido, cujas regras disciplinadoras cobram uma gestão austera compromissada com a contenção dos dispêndios primários e o fortalecimento das receitas, de modo a assegurar a solvência intertemporal das finanças públicas.

A primeira visão apresentada, a do autoextermínio, reconhece como premissa fundamental a presença de uma relação estreita e direta entre o poder de gasto do governo estadual e as suas iniciativas de fomento15. O que significa dizer que os programas de incentivos são amplamente influenciados por constrangimentos fiscais, requerendo medidas compulsórias de contenção para se

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Embora com argumento distinto, Lagemann (1995, p. 340) corrobora com essa interpretação, sustentando que a concessão de benefícios baseados no ICMS é usualmente feita a favor de atividades econômicas pouco representativas na estrutura da arrecadação estadual, de modo que são minimizadas as perdas decorrentes da guerra fiscal, bem como a sua correlação com as condições orçamentárias conjunturais das unidades engajadas nas disputas federativas: “a estratégia dos estados mais agressivos consiste na concessão de benefícios para aquelas atividades econômicas inexistentes ou pouco representativas em sua economia. Dessa forma , não perdem receita e usufruem das vantagens, se algum empreendimento se deslocar para o seu território”.

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Varsano (1997, p.11), por exemplo, antevendo essa estreita relação entre os incentivos e as condições orçamentárias do ente subnacional engajado na competição por investimentos, julga as iniciativas de subsidiamento como mais um fator de agravamento das finanças públicas: “o déficit fiscal atualmente existente no Brasil deve-se, em grande parte, ao desequilíbrio das contas públicas estaduais. Em diversos estados, a arrecadação é quase que insuficiente para cobrir exclusivamente os gastos com pess oal. Mesmo entre estes, há os que insistem em participar de verdadeiros leilões promovidos por empresas que já decidiram instalar novos estabelecimentos no país”. Viol (2000, p. 296) compartilha opinião semelhante, ao verificar que muitos estados, embora objetivando enfrentar suas dificuldades fiscais através da atração de empresas que possam impulsionar a economia local, acabam deteriorando a sua já precária fragilidade financeira: “encontrando-se em difícil situação orçamentária, os estados veem na competição tributária uma possível solução para esse problema, pois mediante a atração de investimentos, podem aumentar a produção e gerar empregos [...] Entretanto, sem estudos de custo- benefício bem elaborados e sem uma visão mais ampla do futuro, o que pode acabar ocorrendo é o próprio agravamento da crise financeira do estado, pois além da renúncia tributária, geralmente um programa de atração de investimentos vem acompanhado de gastos públicos relevantes, como cessão de terrenos, financiamento de infraestrutura e isenção do pagamento de taxas e tarifas públicas, entre outros”.

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compatibilizarem ao novo quadro emergente de dificuldades financeiras16. Na outra proposição, a da autonomização, essa interação é bastante fluída e tênue, de modo que os estados não se defrontariam com grandes impeditivos para manter a integridade de suas aguerridas políticas de desenvolvimento, mesmo vivenciando uma demarcada realidade de aperto orçamentário – como a conformada no pós- Real por intermédio da reestruturação das finanças estaduais e a posterior promulgação da LRF.

A partir dos comentários anteriores, fica evidente que a hipótese da “autonomização” é a que mais de perto interessa esta tese e a que envolve as maiores dificuldades teóricas a serem tratadas nas discussões subsequentes. Embora amparado em argumentos persuasivos, o postulado de que as estratégias competitivas de fomento guardam considerável independência em relação ao poder de comandar gastos dos governos estaduais, por conta dos instrumentos tributários peculiares que lhes dão suporte, não deve ser aceito sem objeções, requerendo um exame melhor de seus fundamentos. Vale a pena, então, acompanhar os passos principais da formulação elaborada no citado trabalho de Prado & Cavalcanti (2000) com o propósito de esclarecer aspectos importantes envolvidos na questão em referência.

3.POLÍTICA DE INCENTIVOS E CUSTOS FISCAIS:

No documento Um estudo sobre a guerra fiscal no Brasil (páginas 51-54)

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