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E FEITOS ADVINDOS DO CERCEAMENTO DA INTERVENÇÃO ESTATAL – “ PROBLEMAS DE INTERVENÇÃO ”

No documento Um estudo sobre a guerra fiscal no Brasil (páginas 80-83)

Q UADRO 3.3 – P OLÍTICAS DE DESENVOLVIMENTO ORIENTADAS PELO MERCADO : A ASCENSÃO DA ‘T ERCEIRA V IA ’ Período Característica geral

3. O DECLÍNIO DA CAPACIDADE DE AÇÃO DO SETOR GOVERNAMENTAL E A REVITALIZAÇÃO COMPETITIVA DAS POLÍTICAS SUBNACIONAIS DE FOMENTO

3.2. E FEITOS ADVINDOS DO CERCEAMENTO DA INTERVENÇÃO ESTATAL – “ PROBLEMAS DE INTERVENÇÃO ”

Interessa agora verificar as implicações mais gerais relacionadas ao processo ampliado de debilitamento do setor estatal, ocasionado tanto por desequilíbrios fiscais que exigem a reestruturação de suas atividades, refreando a intervenção efetuada em múltiplos campos mediante diversos níveis de governo, quanto por reformas liberalizantes intencionais implementadas a fim de desregular e abrir novos mercados à iniciativa privada, bem como para assegurar condições consideradas confiáveis e promissoras à preservação e acumulação de capital – seja na sua forma financeira ou produtiva. Não

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O artigo de Gordon (1983) é uma referência na análise dos efeitos advindos de decisões governamentais descentralizadas em regimes federativos. O modelo exposto sustenta que as políticas adotadas por uma jurisdição geram naturalmente externalidades que atin gem as condições de vida em outras jurisdições: “o próprio processo decisório descentralizado pode levar a um resultado menos efici ente (equitativo). Isso ocorre porque as decisões de uma comunidade afetam de variados modos os níveis de prestação de serviços públicos dos residentes de outras comunidades, embora tais efeitos sejam ignorados no processo decisório. Os tipos de externalidades que apareceram nas equações resultantes das decisões de uma determinada comunidade foram os seguintes: i) os não-residentes podem pagar alguns impostos; ii) os não-residentes podem receber alguns dos benefícios dos serviços públicos; iii) os custos de congestionamento enfrentados por não-residentes podem mudar; iv) as receitas tributárias recebidas em outras comunidades podem mudar devido ao transbordamento da atividade econômica; v) os custos dos recursos dos serviços públicos em outras comunidades podem mudar; vi) mudanças nos preços da produção e dos fatores podem favorecer mais os moradores não-residentes; vii) os efeitos distributivos entre não-residentes seriam ignorados” (Gordon, 1983, p. 580). Com base nessas considerações, e mesmo julgando que um padrão mais descentralizado de organização do setor público possa ter vantagens por aproximar o governo das comunidades locais, o referido autor advoga a constituição de mecanismos de coordenação centralizados no âmbito federal, com o intuito de mitigar as externalidades negativas passíveis de serem criadas por decisões isoladas de entes subnacionais: “à luz [dos] custos decorrentes da falta de coordenação, pode ser preferível fazer com que o governo central assuma a responsabilidade por determinadas atividades, apesar de implicar perda de diversidade. Alternativamente, o governo central pode tentar coordenar as políticas tributária e de gastos locais, como, por exemplo, através de partilha de receitas e de subsídios equivalentes, preservando, assim, a tomada de decisão descentralizada ao diminuir os custos decorrentes da falta de coordenação” (Gordon, 1983, p. 585).

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carece trazer à baila um escrutínio pormenorizado de todas as consequências derivadas de tais transformações que, nas últimas décadas, redefiniram o escopo de operação do Estado, cujos detalhes principais serão abordados em capítulo posterior, bastando agora restringir a análise ao aspecto essencial que importa à presente discussão; qual seja: o comportamento assumido pelas estratégias de fomento no curso de dissolução de um modelo de presença governamental proeminente no domínio econômico, dando lugar a outro mais acanhado e subordinado aos interesses de investidores participantes de mercados mundializados. O texto de Blais & Faucher (1981) pode auxiliar essa pretensão, porque acompanha a trajetória da política industrial de países desenvolvidos ao longo de um intervalo temporal relativamente extenso, compreendendo os anos do pós-guerra de auge e crise dos incisivos e penetrantes programas oficiais de incentivo ao desenvolvimento de inspiração keynesiana40. Seria supérfluo esmiuçar o estudo, cabendo examinar apenas as suas passagens que permitem aclarar melhor o que está sendo denominado de problemas de intervenção.

Um passo inicial é verificar o conteúdo das políticas, indicando, resumidamente, os dispositivos usuais manejados pelos governos no período analisado com vistas a impulsionar e modernizar o setor secundário de suas respectivas economias. Foram identificados quatro tipos de iniciativas, que se desdobravam em diversas ações: i) participação na produção: companhias estatais e mistas atuavam em infraestrutura (energia, transporte e comunicação), insumos básicos (petróleo, mineração, siderurgia, etc.) e outros segmentos relevantes (aeroespacial, informática, construção naval, automobilístico, etc.); ii) assistência financeira: suprimento de crédito preferencial subsidiado, volumes substanciais de subvenções diretas, benefícios tributários e apoio tecnocientífico; iii) proteção tarifária, e iv) regulação de monopólios e de fluxos de Investimento Estrangeiro Direto (IED). Designados os principais vetores de intervenção pública, Blais & Faucher (1981) dão a entender que, em relação aos demais, a assistência financeira seria o instrumental de teor mais tópico, disjuntivo e focalizado, principalmente os subsídios diretos, por conferir maior capacidade discriminatória e seletiva às autoridades governamentais, além de exigir critérios de escolhas mais restritivos nas decisões tomadas para atrair e orientar os investimentos privados, permitindo eleger as empresas individuais a serem beneficiadas; os setores e ramos sujeitos a obter vantagens especiais; as regiões receptoras das inversões produtivas, etc. Na apreciação subsequente da evolução das políticas industriais, os citados autores observaram que, no âmbito do conjunto de mecanismos manipulados pelos gestores do desenvolvimento, a assistência financeira ganhou expressão e importância, com destaque para as subvenções, em detrimento de outras categorias de incentivo, sobretudo as de caráter protecionista,

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A referida pesquisa concentra atenção nos países membros da OCDE no período entre 1950 e 1980, sustentando a análise em dados e informações estatísticas disponíveis até o ano de 1977.

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cujo relaxamento ocorria no mesmo compasso do aprofundamento paulatino da internacionalização dos fluxos comerciais e financeiros e em simultâneo à maré-montante liberal, que veio reclamar o desmanche do liame regulatório assentado pelo Estado e a desobstrução crescente dos mercados.

O Estado abandona seu instrumento indireto e „defensivo‟ (a proteção tarifária) para outro mais direto e „ofensivo‟ (as subvenções). A ajuda direta permite mais de nuance e de precisão na aplicação do que a proteção tarifária. Os programas de subvenção permitem introduzir uma gama praticamente infinita de critérios de discriminação: tamanho da empresa, nível de concentração do setor, número de empregados, nacionalidade do capital, tecnologia utilizada, tipo de produção, região de implantação, mercado visado etc. Eles permitem igualmente ao Estado negociar com empresas específicas e exigir que preencham certo número de condições. Em resumo, o que caracteriza de início a evolução da política industrial desde o fim da segunda guerra mundial é a substituição progressiva da ajuda financeira à proteção tarifária [...] A dinâmica da política industrial desde o pós-guerra é coerente com a emergência das grandes firmas multinacionais. Essas aparecem como as principais beneficiárias dos subsídios governamentais. Elas se beneficiam mais das novas isenções fiscais e são as mais bem posicionadas para tirar partido da redução da proteção tarifária [...] Esta evolução é paradoxal. De uma parte, o Estado se retira de modo a deixar mais o lugar ao jogo do mercado; de outra parte, ele introduz distorções suplementares pela via de suas subvenções. A coincidência não é, de fato, fortuita. É precisamente no momento da liberalização do comércio internacional que os Estados começaram a ter mais recursos para subvenção. Esta liberalização conduziu a uma maior „fluidez‟ das vantagens comparativas e, então, mudou a posição relativa dos diversos setores nacionais frente à concorrência estrangeira. Pelo jogo das subvenções, os governos vieram frear o movimento que eles mesmos tinham deflagrado (Blais & Faucher, 1981, p. 21 e 22).

Os comentários feitos acima possibilitam firmar, em primeira aproximação, um juízo sobre os problemas de intervenção. Eles aludem – como pode ser deduzido a partir de algumas das evidências contidas nos trechos extraídos do trabalho de Blais & Faucher (1981) – à perda de densidade e de abrangência sistêmicas das políticas de fomento provocada pelo estreitamento progressivo da atuação do Estado, concomitante à operação cada vez mais desimpedida e autorregulada dos mercados. Pelo exposto, é sugerido que não foi outra senão essa a linha básica do movimento observado no período em referência, no qual a crise pronunciada do setor público e a caudalosa pressão liberalizante desfechada para remover os empecilhos que embotavam oportunidades propícias à valorização do capital fizeram as políticas de fomento se desprenderem de diretrizes mais “holísticas” e a se orientarem, predominantemente, por metas fracionadas e tópicas, endereçadas ao atingimento de objetivos muito específicos e pontuais, acoplados (ou, porque não dizer, moldados), na maioria das vezes, aos interesses da grande corporação transfronteirizada. Tal metamorfose, a ser melhor avaliada na sequência, se assemelha, de certa maneira, ao que ocorre quando são observados problemas de coordenação, uma vez que as estratégias oficiais fixadas para apoiar e promover as bases produtivas também transitam de uma conduta hegemônica pautada por normas tipicamente solidárias para outras mais próximas às autocentradas – não porque focalizam recortes territoriais determinados, mas pelo fato de serem lideradas, igualmente, por finalidades particularistas e exclusivistas. Trata-se, no entanto,

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apenas de uma analogia, pois os problemas de intervenção têm extensão maior e são de outra linhagem. Nesse caso, por exemplo, a ascendência do “viés autocentrado” no âmbito das políticas de fomento não resulta simplesmente da perda de consistência do “viés solidário” ocasionada pela fragilização do governo central, mas é uma dominância que se impõe espraiadamente em decorrência do debilitamento generalizado do Estado em termos consolidados, envolvendo tanto a sua unidade político- administrativa nuclear como também as demais instâncias descentralizadas e inferiores de poder. De outra parte, mas não menos importante, os componentes que imprimem características generalistas às referidas políticas são abalados, abrindo espaço para que elas sejam manietadas a favor de pretensões bem definidas de agentes privados e assumam, assim, feições e conteúdo demarcadamente direcionados. Ou seja, da mesma forma que faz as iniciativas em prol do desenvolvimento econômico adotadas no plano nacional se tornarem mais individualizadas e consagradas à consecução de projetos privativos, a erosão crescente da capacidade interventora do setor estatal provoca o afunilamento do escopo das ações de fomento dos níveis jurisdicionais subalternos, que também passam a ser norteadas por diretrizes de amplitude muito menor.

Feita essa concisa digressão, é possível retornar ao ponto anterior da explanação e proporcionar um fecho provisório sobre a questão relacionada ao reflexo do esmorecimento do Estado sobre os programas de estímulo às atividades produtivas executados na órbita subnacional. A ideia a ser sublinhada é que os embaraços iniciais de ordem fiscal e financeira enfrentados pelo setor público, desembocando depois em reformas liberais de grande envergadura, geraram os problemas aqui anotados: primeiro, os de coordenação e, posteriormente, os de intervenção, que se somaram e estabeleceram novas condições para a implementação e condução dessas mesmas políticas de incentivo. Foram cobrados, então, ajustes adaptativos inescapáveis às circunstâncias distintas que se constituíram, fazendo as estratégias de fomento operadas pelos entes inferiores a incorporarem uma dinâmica sucessivamente mais hostil e competitiva; mais tópica e individualística. A compreensão de tal transformação requer uma análise com maior minúcia, partindo de uma tipologia básica e simplificada dos principais instrumentos usados na promoção de investimentos, o que é feito a seguir.

No documento Um estudo sobre a guerra fiscal no Brasil (páginas 80-83)

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