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O efeito Flynn: comparações WISC-R/WISC-

Um outro dado que importa analisar, quando se utilizam as Escalas de Wechsler para avaliar a inteligência das crianças pertencentes a grupos espe- ciais da população, refere-se ao efeito Flynn (Flynn, 1984, 1987). Este prevê um ganho médio de três pontos no QI dos sujeitos, em cada 10 anos que pas- sam sobre a aferição de um teste de inteligência. No que se refere às Escalas de Inteligência de Wechsler a comparação dos resultados com a mesma ver- são do teste em dois momentos temporais distintos aponta para uma estabili- dade moderada ou alta. Quando as medidas se efectuam com duas versões diferentes da escala (WISC-R e WISC-III) os resultados mostram descidas de 5 a 8 pontos nos valores de QI de Escala Completa (e.g., Bolen e Col., 1995; Graf e Hinton, 1994, citados por Truscott e Frank, 2001). Trata-se de um de- créscimo esperado pelo efeito Flynn, já que aproximadamente duas décadas separam as duas versões americanas da escala (1974-1991). Os psicólogos devem estar atentos à intervenção deste efeito, pois ele tem implicações direc- tas no diagnóstico das D.A.. Isto é, a inflação dos resultados nas escalas de QI acentua o valor da discrepância entre essa medida e os resultados nos tes- tes aferidos de conhecimentos escolares, conduzindo a um aumento de falsos positivos. Ou seja, no momento em que passam a vigorar as normas da nova aferição, os resultados na escala de QI diminuem e, consequentemente, vai haver um número considerável de sujeitos que, até então eram considerados alunos com D.A., e que deixam de o ser a partir daquele momento, uma vez que já não respeitam o critério da discrepância. O conhecimento deste fenó- meno é ainda mais importante no contexto norte-americano, sobretudo pelas implicações que acarreta a nível administrativo. Isto é, num sistema educativo em que os alunos beneficiários das medidas de educação especial têm de

“certificar” a permanência do seu handicap em cada triénio, submetendo-se a uma nova avaliação psicológica, pode acontecer que, num curto espaço de tempo (imediatamente após a nova aferição da escala), um determinado de- partamento estadual tenha que alterar substancialmente o quadro dos seus re- cursos logísticos e humanos.

Os mecanismos de acção do efeito Flynn ainda não são totalmente conhe- cidos, contudo a investigação tem demonstrado que ele é condicionado pela natureza dos instrumentos de avaliação e, também, que opera de modo dife- renciado nos grupos especiais da população, afectando sobretudo aqueles que apresentam resultados afastados dos valores médios. Ou seja, as diferen- ças entre os QIs obtidos com a WISC-R e os QIs alcançados com a WISC-III serão mais restritos perto da distribuição central, aumentando à medida que nos aproximamos de condições mais extremas (deficiência mental e sobredo- tação).

No que respeita à natureza dos instrumentos de avaliação, tem-se verifi- cado que a inflação prevista por Flynn afecta mais as pontuações dos testes não verbais, como é o caso das Matrizes de Raven, do que as pontuações dos testes predominantemente verbais (Truscott e Frank, 2001). Esta mesma ten- dência deveria registar-se nas Escalas de Inteligência de Wechsler, prevendo- se que nas sucessivas revisões haja descidas mais acentuadas na subescala de realização do que na subescala verbal. No entanto, isso nem sempre se verifi- ca, pelo menos de modo assinalável. Assim, Weiss, 1995, citado por Carlton e Sapp (1997), numa análise de 22 estudos, constata pequenas variações, as- sistindo-se a um decréscimo médio de 3.2 pontos no QIV e de 4.4 pontos no QIR. Curioso, é o facto de que no conjunto dos três testes em que se registam as inflexões mais pronunciados (Semelhanças, Compreensão e Código), dois são parte integrante da subescala verbal. Por seu turno, Graf e Hinton, 1994 (citados por Truscott e Frank, 2001), observam que o efeito Flynn se circuns- creve à subescala de realização.

Relativamente à acção diferenciada do efeito Flynn nos grupos especiais da população, os resultados também não são conclusivos.

Wechsler (1991) ao comparar as duas versões da escala num grupo de crianças com deficiência mental, observa que a evolução dos desempenhos da WISC-R para a WISC-III sofre quebras médias de 8.9 pontos no QIV, 6.8 pontos no QIR e 8.9 pontos no QIEC. Trata-se de um decréscimo mais acen- tuado do que o previsto pelo efeito Flynn, pois os 17 anos que separam as duas versões da escala faziam prever descidas médias de 5.7 pontos. O mes- mo fenómeno é observado por Golombok e Rust (1992) em Inglaterra, numa amostra de 43 crianças com dificuldades de aprendizagem moderadas e se-

veras. De facto, a aplicação das duas versões das escalas de Wechsler em dois tempos mediados por um intervalo de 2 anos, regista um decréscimo da WISC-R para a WISC-III de 8.9 no QIV, 6.8 no QIR e 8.9 no QIEC.

Por seu turno, os resultados da investigação de Sapp, Abbot e Hinckley (1997), confirmam o efeito Flynn, mas não constatam o seu carácter mais pro- nunciado nos grupos extremos. Assim, num grupo de alunos do ensino espe- cial (com distúrbios de aprendizagem, deficiência mental, distúrbios de com- portamento e outros problemas de saúde) registam um decréscimo médio de 5.36 pontos no QIEC, 5.18 pontos no QIV e 5.2 pontos no QIR. Saliente-se que neste estudo a inflexão é mais acentuada nos testes de Semelhanças, Vo- cabulário, Disposição de Gravuras e Cubos.

É importante referir que a nossa prática clínica tem demonstrado que o efeito Flynn se faz sentir de forma pronunciada na população com deficiência mental, mas não produz efeitos no grupo das crianças sobredotadas, que, pa- radoxalmente, invertem frequentemente a tendência desse fenómeno.

Graf e Hinton, citados por Truscott e Frank (2001), num estudo comparati- vo entre os resultados da WISC-R e da WISC-III, registam resultados que con- trariam totalmente a norma esperada. Assim, verificam que o efeito Flynn se faz sentir no grupo de crianças com QI médio, mas não se regista no grupo de crianças com QI inferior a 90. Ou seja, na amostra de QI médio obser- vam-se as descidas previstas pelo efeito Flynn enquanto no grupo de crianças que frequentam programas de educação especial o decréscimo médio é de apenas 2 pontos, ficando muito aquém dos 5.7 previstos. Destaque-se ainda, que no grupo com QI inferior há casos em que os resultados da WISC-III são superiores aos da WISC-R.

Negando também qualquer especificidade à actuação do efeito Flynn na população com necessidades educativas especiais, surgem os resultados da investigação de Weiss, 1995 (citado por Sapp, Abbott e Hinckley, 1997). Este autor analisou 22 estudos e constata que as diferenças no QIEC entre as duas escalas variam entre 1.35 e 18.0 pontos e que nos grupos especiais da popu- lação (dificuldades de aprendizagem, deficiência mental, etc.) se observa a mesma tendência.

No sentido de esclarecer melhor este fenómeno, Truscott e Frank (2001), estudaram o efeito Flynn numa amostra de 171 crianças com distúrbios de aprendizagem (predominantemente dificuldades específicas na aprendizagem da leitura), que num primeiro momento foram avaliadas com a WISC-R e, três anos depois, com a WISC-III. Os resultados mostram que os valores do QIEC alcançados nas duas versões da escala declinam da primeira para a segunda avaliação. Concluem que o efeito Flynn opera nas crianças com distúrbios de

aprendizagem, ainda que os valores observados sugiram que ele não produz os mesmos efeitos nas diferentes competências cognitivas, pois regista-se um decréscimo de 4.77 no QIEC, 2.93 no QIV e 6.68 no QIR.

Neste contexto vale a pena fazer referência a um estudo português que comparou os desempenhos na WISC e na WISC-III numa amostra de 70 crianças e adolescentes com a D. A. e/ou problemas de comportamento (Si- mões et al., 2003). Neste grupo clinicamente heterogéneo foram observadas diferenças importantes [28 pontos (QIEC), 18 pontos (QIV) e 31 pontos (QIR)] sistematicamente favoráveis à WISC. Note-se que existe uma diferença de aproximadamente 35 anos entre as datas de aferição da WISC (1968) e da WISC-III, e que a comparação habitual é entre a WISC-III e a WISC-R.

Face aos resultados, de um modo geral, podemos concluir, provisoriamen- te, que o efeito Flynn actua de modo indiferenciado, nos diferentes grupos da população e que a sua acção é mais pronunciada nalguns testes. No entanto, é um fenómeno que deve ser tomado em conta, particularmente no grupo das crianças com dificuldades de aprendizagem, pois condiciona decisões impor- tantes na vida escolar destes alunos, nomeadamente o acesso à frequência de programas específicos de ensino-aprendizagem.

Metodologia

A WISC-III foi aplicada a 54 crianças com dificuldades de aprendizagem (57.5% rapazes e 42.5% raparigas). Na sua esmagadora maioria pertencem aos estratos sócio-económicos mais baixos. Tivemos como referência a classifi- cação de profissões utilizada no censos de 1991, distinguindo nove catego- rias: 1- membros dos corpos legislativos, quadros dirigentes da função públi- ca; directores e quadros dirigentes de empresas (2.3%); 2- profissões intelectuais e científicas; 3- profissões técnicas intermédias (2,3%); 4- empre- gados administrativos (16.7%); 5- pessoal dos serviços de protecção e segu- rança, dos serviços pessoais e doméstivos e trabalhadores similares (50%); 6- trabalhadores da agricultura e da pesca; 7- trabalhadores da produção in- dustrial e artesãos (11.9%); 8- operadores de instalações industriais e máqui- nas fixas, condutores e montadores; 9- trabalhadores não qualificados da agricultura, indústria, comércio e serviço (16.7%). A zona de residência é em 94.4% dos casos predominantemente urbana, não havendo nenhuma criança a residir numa zona classificada como predominantemente rural. Em resumo, são dados que confirmam a tendência constantemente verificada noutros estu- dos. Isto é, as crianças com dificuldades de aprendizagem são na sua maioria

rapazes que pertencem a estratos sociais mais desfavorecidos (e.g., Carlton e Sapp, 1997; Watkins e Glutting, 2000; Kush, 1996; Truscott e Frank, 2001; Golombok e Rust, 1992). No entanto, refira-se que na nossa amostra as rapa- rigas estão representadas em maior número do que é habitual.

Na constituição do grupo com dificuldades de aprendizagem, foram considerados os seguintes critérios: (i) crianças que os professores sinaliza- vam como tendo D.A. ligeiras ou moderadas e que, por isso, beneficiavam de um regime educativo especial, nomeadamente apoio pedagógico acres- cido e/ou adequação na organização de classes ou turmas, recorrendo a uma redução do número efectivo de alunos. Quer isto dizer, que o critério de diagnóstico das D.A. foi meramente administrativo e não clínico: são alu- nos que estão contabilizados nas estatísticas oficiais independentemente da existência de um diagnóstico clínico. Sendo uma prática muito discutível, é no entanto a mais usual nas nossas escolas, de acordo com as informações que conseguimos recolher junto da Direcção Regional de Educação. Excluí- mos os casos de D.A. severas de modo a reduzirmos a percentagem de fal- sos positivos, que muito provavelmente deveria ocorrer, nomeadamente pela inclusão de crianças com deficiência mental ligeira; (ii) as D.A. poderiam ser generalizadas ou específicas (e.g., dislexia); (iii) a idade da criança de- veria oscilar entre 8 e 11 anos. Com a imposição de uma idade mínima, pretendemos um maior rigor na constituição da amostra, incluindo apenas aqueles casos em que as D.A. têm um carácter mais permanente (pelo me- nos dois anos de frequência escolar), distinguindo-as dos outros em que as dificuldades são transitórias e associadas ao início da escolaridade. Ao im- pormos um limite superior, foi nossa intenção não diluir os sujeitos por um leque etário muito amplo, que forçosamente introduziria um conjunto de va- riáveis confundentes, susceptíveis de dificultar a interpretação dos resulta- dos; (iv) finalmente, a criança não deveria apresentar défices sensoriais, motores, problemas de comportamento e/ou perturbações psiquiátricas (nem poderia estar a ser medicada por razões de ordem psiquiátrica ou dis- túrbio comportamental).

O grupo de controlo é constituído por 54 crianças, seleccionadas a partir da amostra normativa da aferição portuguesa da WISC-III, sem dificuldades de aprendizagem. A metodologia seguida nesta selecção foi a dos “pares idênticos” (Drew e Hardman, 1985). Por conseguinte, as crianças deste grupo foram escolhidas uma a uma, em função das afinidades com um dos sujeitos do grupo “dificuldades de aprendizagem” no que respeita à idade, género, zona de residência (predominantemente urbana ou moderadamente urbana) e nível socio-económico.

Serão objecto de análise as seguintes variáveis: (i) distribuição dos resul- tados nos 13 testes que compõem a escala; (ii) análise dos resultados por três agrupamentos de testes, constituídos com base na solução factorial da escala para a população portuguesa: Índice Compreensão Verbal, Índice Organiza- ção Perceptiva e Índice Velocidade de Processamento; (iii) análise dos resulta- dos em duas medidas de dispersão: valor diferencial entre o QIV e o QIR; dis- tribuição dos resultados em torno da média individual (scatter).