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Admite-se que a origem da palavra “inteligência” remonte ao período romano, sobretudo aos escritos de Cícero (106-43 a.C.): terá resultado da aglutinação de duas palavras, inter (entre) e legere (relacionar, estabelecer relações, escolher) (Miranda, 2000), e da derivada palavra latina intelligen- tìa, que significava “entendimento, conhecimento” (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2004). Enquanto objecto de reflexão filosófica, o conceito manteve ao longo da história da humanidade uma estreita ligação com os contextos sociais, políticos e ideológicos, assumindo a noção de inteligência em geral uma natureza consistente com os valores dominantes e com as qua- lidades humanas enaltecidas pela sociedade em cada época (ver por exem- plo Richardson, 1991).

O estudo científico da inteligência data apenas dos finais do século XIX e emergiu no quadro de uma nova área das ciências naturais, fortemente in- fluenciada pela Biologia, em particular pelas ideias evolucionistas de Charles Darwin: esta área, que veio a ser designada “psicologia diferencial”, admitia então o papel da inteligência no processo evolutivo da espécie humana, pelo que o conceito de inteligência se ligou desde logo, e de forma muito explícita,

Inteligência, educação e sucesso: As abordagens diferencial e sistémica da inteligência humana e suas implicações para a educação

à ideia de adaptação, de sucesso adaptativo, ideia nuclear na Teoria da Evo- lução das Espécies.

A “inteligência enquanto adaptação” tornou-se um conceito chave que de forma mais ou menos explícita atravessou a história da psicologia da inteli- gência humana, na base da investigação fundamental como da aplicada, no cerne do desenvolvimento teórico como das técnicas de avaliação da inteli- gência (Miranda, 2002, 2004). Este conceito emergiu em ambos os simpósios escritos sobre a natureza da inteligência realizados durante o século XX (Thorndike et al., 1921.; Sternberg e Detterman, 1986) e integrou as mais di- vulgadas e aceites concepções e definições de inteligência: constitui um dos três critérios do pensamento inteligente propostos por Binet e Simon em 1909 (Carroll, 1982, p. 36); reaparece na clássica definição de David Wechsler (1944, p.3) “a inteligência é o agregado ou capacidade global do indivíduo para agir finalizadamente, pensar racionalmente e proceder com eficiência em relação ao meio”; está subjacente ao paradigma construtivista da inteli- gência humana (adaptação é assimilação e acomodação) (Miranda, 2002, 2004); é retomado na proposta de uma definição sintética de inteligência por Sternberg (1982, p.3) “[intelligence is] goal-directed adaptive behavior” [com- portamento adaptativo e direccionado].

Os primeiros testes de inteligência surgiram no virar do século XIX para o XX, num contexto de acentuada mudança nos planos social, económico, edu- cacional e intelectual. A explosão demográfica, as implicações remotas da re- volução industrial – a emergência de uma sociedade industrializada e, conse- quentemente, de uma nova organização do trabalho – o desenvolvimento da educação de massas e a democratização do ensino (Carroll, 1982) foram fac- tores que contribuíram para estimular a criação de métodos destinados a identificar as capacidades dos indivíduos e predizer a sua adaptação aos contextos escolar, profissional e, mais tarde, com o eclodir da I Grande Guer- ra, também ao contexto militar. Adaptação significava à época “rentabilida- de” e as variáveis cognitivas, como a inteligência, eram consideradas os me- lhores preditores do “sucesso”, escolar como profissional. As sociedades ocidentais valorizavam então a “organização científica do trabalho” e a “co- locação do homem certo no lugar certo” para aumentar a “prosperidade”, tanto para o empregador como para o empregado (Taylor, 1911); as diferen- ças individuais eram por isso vistas, à luz de um emergente Darwinismo Social (Hofstadter, 1944 citado em Carroll, 1982), como presumivelmente hereditá- rias e determinantes na adaptação dos indivíduos às exigências da nova so- ciedade industrializada e tecnológica (Afonso, 2005a).

O “sucesso”, objectivamente avaliável através das classificações escolares ou das avaliações de desempenho profissional, não só era significativamente correlacionado com o nível de inteligência – numerosas investigações nos meios escolar e laboral assim o documentavam, justificando a implantação de práticas generalizadas de avaliação cognitiva sempre que se pretendia a pre- dição do sucesso – como constituía mesmo critério para a estimação empírica da validade das próprias técnicas de avaliação da inteligência (“validade re- lativa a um critério”: “concorrente” e “preditiva”). Daí o carácter mais forte- mente empírico do que conceptual dos fundamentos da larga maioria das téc- nicas diferenciais de avaliação da cognição humana oriundas da primeira metade do século XX (Afonso, 1997, 2002).

A inteligência foi, assim, a primeira variável cognitiva a merecer a aten- ção dos psicólogos diferencialistas, como objecto de investigação e de medi- ção psicológica, e as diferenças individuais fundamentaram o mais antigo paradigma, e a mais clássica metáfora, da investigação e da avaliação da inteligência humana: o paradigma diferencial (Miranda, 1986, 2000, 2002) e a metáfora geográfica (Sternberg, 1990). No “mapa mental” que consubs- tancia a metáfora geográfica, cuja unidade fundamental é o factor (Miranda, 2002), assume especial relevo uma aptidão ampla, abrangente de um largo espectro do funcionamento cognitivo, designada inteligência geral, ou g. Esta noção de g é por muitos considerada uma das grandes conquistas da psico- logia científica (ver por exemplo Nyborg, 2003), pela quantidade e qualida- de das evidências empíricas que a suportam e pelas implicações, no plano teórico, como no das aplicações. Ela atravessou, de facto, um século – de 1904, quando Charles Spearman pela primeira vez a introduziu até à actua- lidade – assume posição de destaque nos mais consensuais modelos estrutu- rais das aptidões humanas (hoje sintetizados no chamado “modelo C-H-C” ou “Cattell-Horn-Carroll”) e está, de forma mais ou menos explícita, subja- cente aos testes de “inteligência geral” ainda em plena utilização, e à sua aplicação em domínios diversificados de intervenção psicológica, entre os quais a educação.