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Introdução e Fundamentação Teórica

Os nomes próprios têm um papel fundamental na comunicação humana e a incapacidade em evocar os nomes dos outros pode causar embaraço social ou ofensa. Talvez por isso, a dificuldade em aceder aos nomes próprios é uma queixa frequente na população adulta saudável, sobretudo nos indivíduos ido- sos (Lovelace e Twohig, 1990; Evrard, 2002).

Vários estudos indicam que os nomes próprios são particularmente difí- ceis de aprender (Cohen, 1990) e de evocar (Evrard, 2002), o que tem sido atribuído à fragilidade das associações aos seus referenciais únicos. De facto, os nomes próprios são considerados expressões referenciais puras (Semenza e Zettin, 1989), uma vez que, ao contrário dos nomes comuns, não lhes estão

Psicologia Educação e Cultura 2005, vol. IX, nº 2, pp.421-436

© P.P.C.M.C.M. - Colégio Internato dos Carvalhos

Morada (address): Prof Dr. Isabel Pavão Martins. Laboratório de Estudos de Linguagem, Centro de Estudos Egas Moniz, Faculdade de Medicina de Lisboa, 1649-028 Lisboa. Telf./Fax: 217934480, Email: labling@fm.ul.pt

inerentes quaisquer atributos ou propriedades intrínsecas, e a sua associação aos indivíduos é única e inteiramente arbitrária.

Existe igualmente evidência de que os processos cognitivos utilizados na evocação dos nomes próprios se podem segregar, no sistema nervoso, de uma via mais geral, utilizada na nomeação de outros estímulos (nomeadamente objectos manipuláveis e animais), podendo inclusivamente corresponder a uma localização neuroanatómica específica (Damásio e colaboradores, 1996). Esta hipótese baseia-se, não só na descrição de casos com defeitos es- pecíficos de evocação de nomes próprios, mas igualmente de casos de ano- mia, que poupam os nomes próprios, constituindo duplas dissociações entre os nomes próprios e os nomes comuns (Mckenna e Warrington, 1978; Farra- jota e colaboradores, 1999; Lyons, Hanley e Kay, 2002). Esta teoria tem sido corroborada por estudos de lesão e estudos de activação cerebral, que de- monstram a existência de áreas selectivamente activadas na evocação (Damá- sio e colaboradores, 1996) ou preferencialmente activadas na aprendizagem (Herholtz e colaboradores, 2001) dos nomes próprios.

Existe alguma controvérsia sobre quais os factores responsáveis por esta segregação dos nomes próprios, nas redes neuronais utilizadas no acesso e evocação lexical. O facto de serem nomes particularmente difíceis, quando comparados com os nomes comuns, não parece ser suficiente para explicar esta dissociação, uma vez que existem descrições de defeitos gerais de no- meação que poupam os nomes próprios (McKenna e colaboradores, 1978; Farrajota e colaboradores, 1999). Enquanto alguns autores defendem que a diferenciação entre nomes próprios e nomes comuns depende das característi- cas semânticas dos estímulos (Crutch e Warrington, 2004), outros evocam a maior complexidade perceptiva dos estímulos, assim como os seus referenciais únicos, para explicar essa segregação.

Os Testes de Nomeação de Faces Famosas (TFF) constituem o instrumento mais comum para avaliar a evocação de nomes próprios. Têm sido desenvol- vidos, essencialmente, para caracterizar defeitos de nomeação e de memória semântica, em doentes amnésicos ou com demência e para estudar casos de prosopagnosia. Mais recentemente, têm sido também utilizados para avaliar doentes com lesões focais do sistema nervoso e indivíduos com suspeita de de- terioração cognitiva.

Na literatura são diversos os TFF descritos, alguns aferidos em populações saudáveis e outros de carácter experimental (Sanders e Warrington, 1971; Al- bert, Butters e Levin, 1979; Stevens, 1979; McKenna e Warrington, 1980; Fa- glioni, Cremonini e De Renzi, 1991; Pluchon e colaboradores, 2002; Rizzo, Venneri e Papagno, 2002). Não temos conhecimento da existência de TFF pa-

ra a população portuguesa. Embora já tivéssemos desenvolvido versões expe- rimentais deste tipo de prova, no estudo de casos clínicos (Farrajota e colabo- radores, 1999), não dispúnhamos de dados normativos para este tipo de tare- fa na nossa população. Dada a frequência desta queixa na clínica, a sua sensibilidade ao envelhecimento normal e o seu contributo diagnóstico em fa- ses iniciais da demência de Alzheimer (Brazzelli e colaboradoes, 1994; Dela- zer e colaboradores, 2003), sentimos a necessidade de desenvolver um instru- mento que nos permitisse quantificar e caracterizar esse defeito.

O objectivo deste trabalho foi, por conseguinte, o desenvolvimento de um TFF para a população Portuguesa. Este teste foi desenhado de forma a ser aplicável a indivíduos adultos, com mais de 18 anos de idade, de ambos os sexos e de qualquer nível de escolaridade ou proveniência social, desde que o Português fosse a sua primeira língua e que os indivíduos estivessem familiari- zados com a cultura contemporânea portuguesa. Pretendíamos ainda que pu- desse ser utilizado em indivíduos saudáveis ou em doentes com lesão cerebral, se os mesmos tivessem boa capacidade visual e de compreensão das instru- ções do teste.

O TFF consiste na apresentação de fotografias de personagens públicas. O sujeito deve produzir o respectivo nome, ou eventualmente descrever os seus atributos, da forma mais correcta possível. O teste, que aqui descreve- mos, foi apresentado em reuniões científicas ao longo do seu processo de construção e de obtenção de dados normativos (Martins e colaboradores, 2002), embora nunca na sua versão definitiva.

Quanto às dimensões avaliadas nesta prova, sabe-se que esta tarefa en- volve, habitualmente, vários processos cognitivos, activados sequencialmente e em cascata: a) percepção visual e reconhecimento da face como familiar (nível pré-semântico); b) identificação do estímulo, por activação de um conjunto de memórias de longo termo que lhe estão associadas (cargo, profissão, activida- des, idade, nacionalidade ou se está vivo ou não) (nível semântico); e c) acti- vação lexical, com procura, escolha e evocação da forma fonológica do nome e sua produção (nível lexical ou pós-semântico). Dificuldades em qualquer destas etapas podem perturbar a capacidade de nomeação. Pode-se, even- tualmente, identificar o nível do defeito através de provas adicionais (empar- ceiramento de faces, reconhecimento de faces pelo nome, nomeação por ou- tras modalidades sensoriais ou evocação de atributos) e, igualmente, pela análise das respostas e dos erros (nomeadamente a presença do fenómeno “tip-of-the-tongue” ou “debaixo da língua”) ou dos mecanismos facilitadores da evocação.

Método

Amostra

A colheita dos dados normativos na população saudável foi desenhada como um estudo observacional, transversal e prospectivo. Todos os indivíduos da amostra participaram na base do voluntariado, através do consentimento escrito ou oral (nos iletrados). Os dados foram colhidos em dois períodos dis- tintos: estudo piloto e estudo definitivo. Os dados colhidos durante o estudo pi- loto não foram utilizados no estudo definitivo.

A selecção dos indivíduos foi baseada num plano de amostragem estrati- ficado por idade e escolaridade, de forma a assegurar a representação dos vários níveis etários e educacionais. Assim, foi constituída uma grelha com 6 grupos de idade (por décadas, desde a segunda até à sétima) e 3 grupos de escolaridade, que se tentaram preencher de forma equilibrada. Contudo, os dados relativos a alguns subgrupos foram difíceis de obter, nomeadamente dos indivíduos mais jovens de baixa escolaridade e dos idosos de elevado ní- vel educacional. Esta amostra, de conveniência, foi ainda seleccionada atra- vés de um questionário para rastreio de lesão encefálica. Os critérios de inclu- são no estudo foram os seguintes: a) idade igual ou superior a 18 anos; b) ausência de história passada ou presente de lesão cerebral (nomeadamente epilepsia e patologia vascular ou traumática do SNC) ou de doença psiquiá- trica crónica; c) sem evidência de deterioração mental (confirmada por uma pontuação acima do ponto de corte no Mini Mental State Evaluation (MMSE) (Folstein, Folstein e McHugh, 1975); e d) ausência de toxicodependência, al- coolismo ou ingestão de psicofármacos.

Material

Concepção e construção do teste

O desenho do TFF, assim como a análise dos seus resultados, basearam- se em testes construídos para outras línguas e culturas, nomeadamente para a população Inglesa (Sanders e colaboradores, 1971; Stevens, 1979), Norte Americana (Albert e colaboradores, 1979), Italiana (Faglioni e colaboradores, 1991; Rizzo e colaboradores, 2002) e Francesa (Pluchon e colaboradores, 2002).

As faces-estímulo, reproduções fotográficas a preto e branco, em formato 10 x 15cm, de faces de personagens públicas, foram retiradas de revistas, jor-

nais, livros ou da Internet, colocadas em álbuns e apresentadas individualmen- te, sempre pela mesma ordem.

Os itens foram seleccionados de forma a incluir personagens nacionais e internacionais, de diferentes sectores da vida pública (política/governo, entre- tenimento/vida social, cultura e desporto) e de diferentes épocas (no seu pico de popularidade). De facto, uma vez que existe uma gradação temporal no conhecimento das personagens públicas, pretendíamos, posteriormente, utili- zar essa gradação como medida temporal da memória semântica. Desta for- ma, organizaram-se as personagens por épocas correspondentes ao seu pico de popularidade, de modo a que o seu reconhecimento pudesse constituir um índice de memória referente a uma determinada época da vida. Assim, foram seleccionadas, por consenso entre os autores, 200 fotografias para o estudo piloto, tendo em consideração as seguintes características: a) fotografias níti- das, facilmente reconhecíveis, em que a face se apresentasse de frente e sem sombras e, de preferência, da época correspondente ao seu pico de populari- dade; b) ausência de adereços identificadores (ex. coroas, fardas).

Selecção dos itens

O estudo piloto teve como objectivo a selecção dos estímulos para a pro- va definitiva, e consistiu na avaliação de 50 indivíduos (20 homens e 30 mu- lheres) de idades compreendidas entre os 20 e os 75 anos, distribuídos por 5 grupos etários.

Os resultados do estudo piloto foram analisados item a item. Das 200 imagens apresentadas, foram seleccionadas as nomeadas por mais de 70% dos sujeitos (nome completo ou parte mais relevante do nome e nenhum ele- mento incorrecto), uma vez que se pretendia assegurar a exequibilidade do teste na população de baixa escolaridade. Verificou-se, no entanto, que, se- guindo este critério, se obtinha um conjunto enviesado de 55 fotografias, com um predomínio das personagens contemporâneas mais mediáticas (jogadores de futebol e personagens televisivas), deixando, por conseguinte, de represen- tar as diferentes épocas e sectores da sociedade desejados. Assim, e de forma a assegurar a presença de estímulos representativos de todos os sectores pro- fissionais e períodos de tempo, seleccionámos outros itens, entre os mais no- meados, das categorias em falta, obtendo um teste de 74 fotografias, que fo- ram utilizadas na colheita dos dados normativos.

Critérios utilizados na cotação das respostas

A forma de cotar as respostas em provas de denominação de faces públi- cas, raramente é descrita noutros estudos. No entanto, um mesmo estímulo po-

de ter várias respostas correctas, mais ou menos completas, conforme é evoca- da parte do nome ou o nome completo. Foi estabelecido, como regra geral, que uma resposta que incluísse a parte nuclear do nome, ou seja, a parte evo- cada por mais de 90% da população de controlo, seria considerada a respos- ta correcta e cotada com 1 ponto. Às evocações parciais do nome, respostas dadas por menos de 10% do grupo de controlo, foram atribuídas uma pon- tuação de zero.

Por exemplo, para o estímulo “Francisco Pinto Balsemão”, mais de 90% da população incluiu os nomes “Pinto Balsemão” na sua resposta, pelo que essa foi considerada a parte nuclear do nome. Respostas parciais como “Fran- cisco” ou “Balsemão”, embora correctas, foram cotadas com zero, por serem incompletas e pouco frequentes na população saudável. Naturalmente todas as respostas que incluíram um ou mais nomes incorrectos (“António Pinto Bal- semão”) foram pontuadas como zero. Ainda de acordo com este critério, em alguns itens houve necessidade de aceitar duas respostas correctas, uma vez que se verificou uma distribuição binomial das respostas, nunca se tendo atin- gido os 90%. Por exemplo, para o mesmo item, 57.7% dos participantes res- ponderam “Charlie Chaplin” e 32% “Charlot”.

Procedimentos

Após a descrição dos objectivos e procedimentos do estudo e a obtenção do respectivo consentimento, foram recolhidos, para todos os indivíduos, os seus dados biográficos (idade, sexo, lateralidade, local de residência, nível educacional) e preenchido um questionário de saúde, de modo a assegurar que cumpriam os critérios de inclusão do estudo. Foram colhidos elementos re- lativos à zona geográfica de residência (classificada em Urbana ou Rural e em três áreas geográficas - Norte, Centro e Sul, incluindo a zona de Lisboa e Vale do Tejo).

Todos os sujeitos de idade igual ou superior a 60 anos foram também avaliados pela versão Portuguesa do MMSE (Guerreiro e colaboradores, 1994), para excluir deterioração cognitiva. Procedeu-se, de seguida, à aplica- ção do teste de nomeação de faces.

As fotografias foram organizadas, num único álbum, por ordem cres- cente de dificuldade, tendo sido a apresentação sequencial (uma a uma), sem tempo limite. Foram usadas as 74 faces seleccionadas no estudo piloto. Foi dada ao sujeito a seguinte instrução ”Vou-lhe mostrar uma série de foto- grafias. Quero que me diga o nome destas pessoas, o mais completo possí- vel. Pode demorar o tempo que quiser”. As respostas foram registadas em