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EFEITOS PSICOLÓGICOS DA PARTICIPAÇÃO EM OPERAÇÕES BÉLICAS

No documento MARIA LUIZA PIGINI SANTIAGO PEREIRA (páginas 34-40)

Marlowe (2006), discorrendo sobre as conseqüências psicológicas e psicossociais do combate, faz consistentes considerações a esse respeito, sendo a seguinte a síntese de seus argumentos. Esse pesquisador começa pela inquestionável constatação de que poucos eventos são tão estressantes quanto a guerra.

O atual reconhecimento de que o estresse pode de causar sintomas tanto psicológicos quanto fisiológicos, leva à produção de uma rica literatura sobre o estresse induzido pelo combate e pelas operações de guerra a partir dos vários sintomas manifestados pelos militares das diversas forças, salientando que parte desses sintomas pode ser atribuída ao trauma do combate.

Entretanto, a análise das demandas relacionadas ao combate só mais recentemente passou a ser considerada sob a perspectiva de suas conseqüências à saúde e ao bem-estar de seus personagens, tanto em curto como em longo prazo.

Lembrando que o envolvimento em guerras e combates faz parte da trajetória humana no curso de sua evolução de cerca de seis mil anos, ‘mais recentemente’ aqui diz respeito ao momento histórico a partir da Revolução Francesa. Desde então, segundo Marlowe (2006), o envolvimento de soldados oriundos da sociedade-estado – e não mais de uma classe alienada, às margens das demais, como até então se constituíam os guerreiros, trouxe a preocupação do ônus imposto aos veteranos, soldados-cidadãos, para o centro das atenções.

Paradoxalmente, mesmo antes desse momento, o reconhecimento do impacto psicológico e social da guerra sempre foi considerado, fazendo parte da estratégia militar de várias sociedades a utilização da intimidação e da aterrorização, assim como da humilhação, como táticas na busca de abater o moral do inimigo e, conseqüentemente, sua força de resistência.

Um bom exemplo desse efeito é o que era produzido pelas falanges gregas, ou pelas coortes romanas, cujo movimento, compactado, compassado e ruidoso, buscava evocar o temor a partir da idéia de que se tratava de um exército organizado e poderoso em ação. Era a exploração do efeito psicológico do medo e do pânico sobre o comportamento humano.

Baseado em revisão histórica, Marlowe (2006) aponta que esse tipo de organização fez surgir a idéia da interdependência entre os diversos membros da Unidade, para que a forma da linha, compactada e coesa, fosse mantida ou, pior do que isso, não fosse rompida, trazendo o caos e a desorganização, e o conseqüente enfraquecimento do poder de luta da unidade de combate. Assim, as penas para as fugas e deserções sempre foram extremamente severas, pretendendo controlar esse tipo de impulso.

Por outro lado, entretanto, a Unidade passa a ser a principal fonte primária de suporte, segurança e fortalecimento do soldado. Sua própria sobrevivência dependeria da manutenção da coesão da linha.

Dessa época também decorre a valorização da liderança no sentido de despertar, sustentar e orientar o comportamento dos liderados. O líder militar ideal deve agregar conhecimento e aptidão de combate à habilidade para cuidar de sua tropa. Com isso, torna-se capaz de obter o melhor possível da capacidade de combate de seus homens.

Outro conceito que permanece atual é a prática de cerimônias e rituais pré-combate como forma de ‘sacralizar’ a batalha, sendo oferecidos os esforços aos deuses, ou à polis, ou a uma outra nobre causa.

Todas esses aspectos – coesão da tropa, liderança e atribuição de sentido - revelam o reconhecimento do impacto que os embates bélicos provocam no comportamento dos indivíduos, ao mesmo tempo em que procuram influenciar esse comportamento, produzindo motivos para o melhor desempenho na batalha, razões para dela não fugir e para manter-se alinhado com os objetivos da unidade, através do ‘espírito de corpo’ e ‘moral da tropa’.

A respeito do ‘espírito de corpo’ e do papel que a unidade militar representaria para o indivíduo, Lebigot et al (1991), discutindo sobre tratamento das neuroses de guerra em veteranos franceses, sob uma perspectiva psicanalítica, apontam o papel que o Exército, como uma ‘multidão organizada’ que sabe manter a imago do pai ideal, reconfortante e benéfica, na forma de chefe infalível que ama seus subordinados e os protege da morte. Estaria na capacidade de ‘bem trilhar o caminho do pai morto’, a capacidade da superação dos traumas de guerra que, segundo esses autores, evocam conflitos de culpa e fascínio, de orgulho e vergonha, pelas experiências desagradáveis vividas na guerra.

Segundo Wessely (2005) os homens lutam por seus amigos e os melhores protetores contra o colapso em batalha são a coesão e a união do grupo, além de questões como moral, liderança e bons equipamentos.

Desde a antiguidade, como hoje, soldados que lutam por uma boa causa, apoiando e apoiado por seus companheiros e exortados por um líder a ser seguido, refletem isso em seu comportamento aguerrido e contam com esse contexto para a amenização do impacto das ameaças e dos ataques pressupostos.

As conseqüências nefastas das batalhas, por outro lado, manifestas pelo colapso do soldado, apesar de observadas, tiveram tratamento diferente ao longo da história.

Marlowe (2006) acredita que o tratamento dado a essa questão ao longo do tempo sofreu influência direta das expectativas culturais, ou seja, o entendimento que determinada sociedade teria sobre violência, trauma e convicções sobre a morte. As expectativas assim modeladas, projetadas nos soldados ao longo das eras, trariam forte determinação sobre o tipo de ruptura ao qual ele estaria sujeito. Da mesma forma, as manifestações psíquicas e fisiológicas dos soldados também seriam modeladas por essa expectativa.

Helman (2003), falando especificamente sobre os aspectos culturais do estresse, compartilha dessa posição, afirmando que os fatores culturais e, mais ainda, os valores culturais, desempenham um papel complexo na reação ao estresse, papel que pode ser considerado ora protetor, ora patogênico. Assim, o pertencimento a um grupo com um sistema conceitual de mundo, ao tornar significativa e coerente com as experiências do dia-a-dia, reduziria o estresse causado pela incerteza. Da mesma forma, crenças compartilhadas sobre o que seja sucesso e prestígio, e seus contrapontos, poderiam ter efeitos tanto positivos quanto negativos sobre a saúde do indivíduo. Além disso, a cultura contribuiria para dar forma a essa reação através de uma linguagem de sofrimento reconhecível (p. 267).

Tem-se daí que o confronto bélico entre grupos com valores culturais diversos traria também a possibilidade do choque cultural como um agravante entre as experiências negativas decorrentes das batalhas, pelo desconcerto de não se compreender as ações e reações do inimigo, principalmente aquelas relacionadas à violência.

De qualquer maneira, mesmo se considerando o impacto das experiências de guerra sobre o comportamento humano, e também a possibilidade de colapso dos guerreiros, as baixas sempre fora consideradas uma questão mais determinada por contingências individuais do que pela influência do contexto.

Em que pese a ‘bruta, desagradável e breve’ vida dos soldados até o final da Idade Média, brevidade essa determinada pela grande probabilidade de morrer em batalhas ou em conseqüência de ferimentos delas decorrentes, o ponto de ruptura sempre foi considerado em termos da ausência, ou perda, de traços necessários como honra, heroísmo, coragem e força. Se o guerreiro viesse a sucumbir, ele não teria sido suficientemente honrado, ou heróico, ou, corajoso, ou forte.

Essa noção de força e coragem, de uma certa maneira, mantém-se até hoje, mesmo que, a partir do século XIX, o desenvolvimento científico tenha tornado disponível um arsenal diagnóstico e terapêutico mais extenso.

A partir desse momento, relatos que hoje se sabe relacionados ao estresse começaram a ser feitos, levando a formulações como ‘coração do soldado’, para explicar a presença de sintomas como a elevada taxa de batimentos cardíacos que acompanhava a fadiga de batalha.

A tendência da época em se dicotomizar processos psíquicos dos fisiológicos, restringiu a compreensão dessas constatações.

Além disso, como constataram Kearney et al. (2003), a despeito das reações típicas de estresse traumático em guerreiros terem sido observadas por séculos, historicamente sempre houve uma forte tendência, dentro do militarismo e da sociedade em geral, em negar o impacto psicológico da guerra entre os militares, e que

[...] comandantes e oficiais médicos, que assumem um papel primário no gerenciamento das baixas relacionadas ao estresse, sempre alimentaram a expectativa de que os militares são imunes ao impacto da exposição a experiências traumáticas e rotulam aqueles que experienciam reações significativas ao estresse como fracos, covardes ou simuladores (p. 6).

Já a Primeira Guerra Mundial encontra as idéias de Freud estabelecidas na Psicanálise, e a dos fisiologistas sustentando a interdependência de processos mentais e fisiológicos. Com isso, o impacto das experiências de guerra sobre a psique dos combatentes pôde ser considerado de forma mais complexa.

A noção de trauma foi crucial para as primeiras formulações de Freud que, refletindo sobre o impacto da guerra sobre os combatentes, ampliou suas idéias sobre o assunto, abarcando a importância do impacto das experiências ambientais na produção de neuroses, e cunhando a expressão de ‘neurose de guerra’, a partir do ‘trauma de guerra’ (MELLO; FIKS, 2006).

Segundo Schetatsky et al. (2003),

Ao ser confrontado com os quadros psiquiátricos desencadeados pela Primeira Guerra Mundial, de 1914 a 1919, Freud retoma o tema das neuroses traumáticas. Ele re-enfatiza, então, a importância decisiva da intensidade dos

estressores traumáticos, da ausência de descargas apropriadas verbais ou motoras para aliviá-las e do despreparo dos indivíduos para o seu enfrentamento, causando o rompimento do que chamou de ‘barreira de estímulos’, que protegeriam o ego das estimulações excessivas do ambiente externo. Assim, o organismo, incapaz de lidar com a intensidade da estimulação, veria seu aparelho mental inundado por ela, causando paralisia mental e intensas tempestades emocionais (p. 10).

Outras figuras diagnósticas importantes a partir de então passaram a ser a fadiga de guerra, que se seguia ao ‘choque de artilharia’ (shell shock), a síndrome do esforço e a neurastenia.

Afastamentos decorrentes de sofrimento psíquico incapacitante, e não apenas de ferimentos físicos, passaram a ser documentados (STETZ et al., 2005), produzindo um acervo importante, e de tal ordem, que a experiência daí decorrente pôde ser ampliada para a melhor compreensão de formas de sofrimento psíquico e doenças mentais não necessariamente relacionadas a militares ou a vítimas de guerra.

O fato de que as experiências bélicas do final do século dezenove e do século vinte levaram à evolução de várias áreas da ciência também se confirmou com relação ao avanço da Psiquiatria e da Psicologia.

Não obstante, mesmo que, a partir de então, a força das experiências externas passasse a ser integrada na compreensão e tratamento das baixas militares, continuava prevalecendo a idéia de que os quadros apresentados pelas vítimas de combate eram predominantemente influenciados por condições intrínsecas ao indivíduo, ou seja, por vulnerabilidades decorrentes de suas experiências precoces de vida, ou por predisposições orgânicas.

Como diria Wessely (2005), “se você entrou em colapso e nunca se recuperou, então a causa real não foi a guerra, mas sua herança genética ou sua criação. A guerra foi meramente o gatilho” (p. 460, trad. da autora).

Da Primeira para a Segunda Guerra Mundial, esse conceito desdobrou-se em medidas com intenção preventiva, baseadas principalmente na seleção em massa. De acordo com a mentalidade da época, a possibilidade de identificar previamente, dentre os indivíduos alistados, aqueles com maiores probabilidades de sofrerem um colapso futuro, contribuiria para a diminuição das baixas por razões psiquiátricas e conseqüentemente para o esforço de guerra, além de garantir um contingente menor a ser assistido no pós-guerra.

Esse pensamento predominante teve seu mais ilustre representante em Harry Stack Sullivan. Nos Estados Unidos, psiquiatras e psicólogos, com base em testes desenvolvidos para esse fim, conduziam seleções por exclusão as quais, segundo Wessely (2005) chegaram a remover cerca de 2 milhões de homens do alistamento, a despeito do efeito secundário altamente estigmatizante desse tipo de prática.

Marlowe (2006), entretanto, pontua que a Segunda Guerra Mundial acabou por se tornar um divisor de águas com relação à visão que se tem sobre os efeitos em curto e longo prazo do impacto da guerra sobre o funcionamento psicológico dos soldados.

Com o desenrolar dos acontecimentos, a necessidade de mobilização dos contingentes para as diversas frentes de batalha levou a uma revisão da prática da seleção por exclusão, que resultou na incorporação de homens inicialmente avaliados como vulneráveis, o que permitiu a constatação de que, em que pese dentro desse grupo as baixas por razões psiquiátricas tenham sido em maior proporção, estas ficaram bem abaixo da expectativa inicialmente proposta (WESSELY, 2005).

Ao mesmo tempo, a constatação de que o volume de baixas psiquiátricas variava de acordo com o rigor da frente de batalha, tendo seus marcos mais contundentes em batalhas como a do Pacífico e do Norte da África, e também de acordo com o grau de coesão da unidade operacional, novamente as considerações se voltam para a força dos determinantes ambientais. Tais constatações levam ao estabelecimento da máxima segundo a qual todo homem tem seu ponto de ruptura, ou seja, não importa quão bravo ou corajoso, todo homem é vulnerável.

Levaram também à reafirmação da importância do grupo de combate e de sua liderança mais próxima, como estrutura mediadora primária que habilita o soldado a enfrentar o estresse e a prevenir o colapso, bem como os danos psicológicos mais duradouros.

Guerreiros de ontem e de hoje enfrentam o mesmo tipo de demandas negativas: − Exposição a ameaças, reais ou antecipadas, à sua integridade e à sua vida. − Exposição a cenas de violência.

− Luto pelos companheiros abatidos. − Exposição a doenças e acidentes.

− Períodos de medo e ansiedade intensos, alternados com períodos de monotonia e insatisfação.

− Campanhas levadas a cabo longe de seu ambiente de origem ou seu país. − Preocupações com sua família e seu grupo, e saudades de casa.

− Condições de vida inadequadas, ou seja, de acampamento ou acantonamento e de satisfação de necessidades fisiológicas.

− Alimentação baseada em rações.

Mesmo que a presença de ameaças seja inquestionavelmente uma importante fonte de estresse, é necessário se ressaltar alguns aspectos ligados à realidade de acampamento ou acantonamento dos soldados, que transcendem o mero desconforto físico.

Com relação às condições de “moradia”, Rabinovich (1992) explora em seu artigo a organização do modo de morar na ausência de paredes ou tetos convencionais. Muito embora seu trabalho refira a moradores de rua, a autora ilustra como o lugar onde se está é organizado pela pessoa, como um fenômeno psíquico, de modo a garantir as funções básicas da moradia quais sejam, a de proteção, cuidados (alimentação e higiene), identificação e cidadania, socialização e de

noção de ‘tempo vivido’. Na visão da autora a moradia assume, assim, um papel importante de intermediação entre a subjetividade e o mundo objetivo.

A inclusão de todos esses aspectos foi consolidando a aceitação de que o resultado de certas demandas só pode ser compreendido na complexa interação da pessoa, seu grupo social e o evento ou eventos específicos.

Não obstante a permanência da noção de vulnerabilidade e da tentativa de prevenção através de seleções exclusivas, passou-se a observar a coexistência com esforços de uma abordagem mais integrativa dos efeitos das experiências de combate no comportamento humano.

Abram Kardiner é apontado por Schetatsky et al. (2003) como uma figura importante nessa mudança de paradigma, através de sua obra “As Neuroses Traumáticas de Guerra” a qual, segundo os pesquisadores, levaram à definição mais recente de Transtorno de Estresse Pós- Traumático, que será agora abordado.

No documento MARIA LUIZA PIGINI SANTIAGO PEREIRA (páginas 34-40)