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O SENTIDO MÍTICO DO VÔO

No documento MARIA LUIZA PIGINI SANTIAGO PEREIRA (páginas 116-122)

Hino à Bandeira Nacional

3.8.1 O SENTIDO MÍTICO DO VÔO

O que é isto, uma fantasia? perguntou Ícaro ao ver o pai colar as penas nas varas de madeira. Tudo se inicia pela fantasia, meu Ícaro ... – disse o velho, com ar sonhador. As 100 Melhores Histórias da Mitologia (2003)

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Situar cronologicamente nos últimos dois ou três séculos a aventura do homem ligada ao vôo significa desprezar todo o longo percurso, que remete a uma fantasia tão profundamente arraigada na alma humana.

Tal afirmativa é sustentada pela profusão de símbolos e mitos ligados ao vôo e ao voar.

Segundo Chevalier e Gheerbrant (2006), nos mitos e nos sonhos, o vôo alude a um desejo de sublimação, de busca de harmonia interior e de ultrapassagem de conflitos.

O ente mitológico mais comumente associado aos aviadores é Ícaro, morto aos 16 anos enquanto empreendia uma ousada fuga do labirinto de Creta, sobrevoando o mar equipado com asas projetadas por seu pai, Dédalo. Fixa-se no encantamento de Ícaro pela experiência do vôo, que conseqüentemente o levou à perda dos parâmetros de segurança, razões suficientes para apontá-lo como o ícone dos aviadores, mas a história vai muito além dessa associação imediata. Ícaro é filho de Dédalo e da escrava Naucrata, do reino de Creta. Escultor, arquiteto, artesão e engenheiro, Dédalo possuía uma oficina em Atenas, na qual se dedicava à invenção e ao desenvolvimento de objetos e obras que visavam melhorar a vida e o trabalho dos demais. Percebendo-se suplantado em suas criações por seu jovem sobrinho, Talos, Dédalo, tomado pela inveja, o mata. Descoberto pelos atenienses, é levado ao Aerópago, para julgamento, e seu crime define sua prisão e pena de morte.

Consegue, entretanto fugir e, juntamente com Ícaro, obtém guarida em Creta, governada pelo Rei Minos, para quem começa a trabalhar. Passa, então a submeter seu talento e sua força criadora aos fins políticos de supremacia daquele governante.

Enquanto isso, a esposa de Minos, Pasífae, enamora-se do magnífico touro branco que Poseidon fez surgir do mar, como prova do reconhecimento divino do direito de Minos ao trono de Creta. Tal prova foi suscitada pelo próprio Rei, quando da disputa pela sucessão com seu irmão. Fazia parte da contrapartida exigida por Poseidon, que o animal fosse sacrificado em seu altar. Minos, entretanto, ambicionando a posse de tal animal, ofereceu outro, de seu rebanho, em holocausto.

Pasífae consegue a consumação carnal de seu amor pelo touro preservado por seu marido, vestindo um aparato construído por Dédalo, a seu pedido. Com isso ela concebe e dá à luz um monstro, metade humano, metade animal, o Minotauro.

Minos, mesmo furioso com ambos, mas sentindo-se em parte responsável, opta por poupar Dédalo e encobrir o desonroso ato de sua esposa. Pede a Dédalo que desenvolva uma prisão inexpugnável, para ali confinar o monstro. Este constrói, então, um complexo labirinto, de tão difícil trânsito, que ninguém conseguiria escapar.

O Minotauro deve ser alimentado e exige a carne de jovens virgens. Minos, passa a impor, como dívida de guerra da Atenas subjugada, ao seu rei Egeu, que envie remessas anuais de nove rapazes e nove moças, sacrificados na alimentação do Minotauro. Isso perdura até o surgimento do herói ateniense Teseu que, com a ajuda da filha do próprio Minos, Ariadne, invade o labirinto, mata o monstro, conseguindo depois fugir.

Certo de que o jovem casal contou com a ajuda de Dédalo, Minos o aprisiona no Labirinto, punição que entende seria muito mais rigorosa – privando-o da liberdade - do que condená-lo à própria morte. Ícaro é aprisionado com o pai e o vê, a cada dia, envidar esforços para conseguir a sobrevivência de ambos, enquanto raciocina uma forma de fuga. Posto que o labirinto era construído a céu aberto, Dédalo passa a observar o vôo da profusão de espécies de pássaros existentes na região e propõe a Ícaro: “Os pássaros não têm asas, mas nós as construiremos, então poderemos voar”, certo de que a via aérea seria a única rota possível de escape.

A simplicidade da proposta, baseada na construção de uma prótese que permitisse a superação de uma limitação humana natural, provoca a curiosidade de Ícaro.

Passam a coletar as penas caídas dos pássaros, que são cuidadosamente arranjadas por tamanho e proporções de modo a comporem as asas, sendo estas finalmente fixadas em cera e atadas a correias de couro, podendo assim ser vestidas.

Quando estão prontos, Dédalo “brifa”4 Ícaro, definindo o plano e os parâmetros do vôo que estão prestes a empreender. Alerta-o a não voar muito próximo ao mar, para que não encharque as delicadas penas, nem próximo ao sol, para que se não derreta a cera que as fixa. Qualquer das alternativas levaria a avarias na prótese e à conseqüente queda e morte no mar.

É a partir desse ponto que a história é mais conhecida, sabendo-se que Ícaro, inebriado pela experiência, perde os parâmetros do vôo e se aproxima perigosamente do sol. As penas de suas asas se soltam e, apesar de seus gritos de socorro, cai vertiginosamente no mar. Dédalo, que ia adiante, constata o fim trágico de seu filho, sem alternativa a não ser, depois de sobrevoar insistentemente o local da queda, recuperar e enterrar seu corpo.

Sua jornada e sua história prosseguem. Ele foge para a ilha de Trinácia, talvez com a ajuda de Pasífae, onde permanecerá sob a hospitalidade e o jogo de outro rei, Cócalo. Suas asas, ele as

oferta no altar de Apolo, a personificação da beleza e da luz, uma das doze divindades do Olimpo.

É importante que a história seja contada em seu enredo mais amplo para que neste se destaquem alguns aspectos importantes, sem desconsiderar, entretanto, a profusão de significados, sentimentos e conflitos que a trama engendra.

Em primeiro lugar, é evidente o panorama no qual o vôo é inserido. Ele é a representação do desejo de liberdade, da liberdade criadora, que leva à superação das limitações da realidade mas que pode desconsiderar valores éticos. A simplicidade com a qual o plano é proposto conota ousadia alimentada pelo anseio humano em busca dessa superação.

Em segundo lugar, comparando os dois aeronautas, é Dédalo quem empreende o vôo perfeito: Decola, pousa e, de acordo com uma máxima da aviação, sai andando e com possibilidade de usar seu equipamento para novamente voar. Ele sustenta também o perfil do piloto eficiente: Alia arrojo e autocontrole, técnica e criatividade, ousadia e respeito à máquina.

Ícaro, por sua vez, deixa-se levar pelo imediatismo da experiência. Perde o foco, descontrola-se emocionalmente, jovem e imaturo que é. Morre em conseqüência dos atos e decisões de seu pai, de quem o conselho protetor não segue.

É intrigante considerar que o mito do vôo se prenda muito mais intensamente às vulneráveis asas de Ícaro.

Finalmente, salienta-se que, em vôo, não só as vítimas, mas também os sobreviventes, pagam o tributo pela desconsideração dos limites, sejam eles físicos, técnicos ou éticos.

3.8.2 O MITO DO HERÓI

“Não somos heróis, não fomos heróis!” protestam veementemente os veteranos do 1º GAvCa. A despeito disso, há várias referências qualificando o seu desempenho como heróico, especialmente quando remetem aos mortos em combate.

É importante, então, que se façam algumas reflexões sobre o mito do herói ou, melhor dizendo, os mitos do herói. O arquétipo do herói, na linguagem junguiana, se manifesta em uma profusão de mitos, diferentes nos detalhes porém consistentes na estrutura. Por essa razão, opta-se aqui por, em lugar de mencionar suas diferentes versões, descrever sua estrutura básica e sua função primordial, sob a orientação dos trabalhos de Campbell (1992, 1997, 2005) e Jung (1977, 1978, 1985).

Herói é o homem ou mulher que, vencendo suas limitações, empreende feitos extraordinários, guerreiros ou magnânimos. É também o personagem central de enredos dramáticos ou cômicos. Segundo Campbell, o padrão heróico segue um percurso: “vindo do mundo cotidiano, se aventura numa região de prodígios sobrenaturais; ali encontra fabulosas forças e obtém uma vitória decisiva; o herói retorna de sua misteriosa aventura com o poder de trazer benefícios aos seus semelhantes” (2005, p. 36). Esse padrão de afastamento do mundo respondendo ao apelo da aventura, o contato com alguma fonte de poder, enquanto empreende seu caminho de provas, e seu retorno, trazendo elementos que enriquecem a vida, sua e dos demais, tornariam- no também o portador simbólico do destino de Todos.

Apesar de sua disposição ao sacrifício, dos desafios, tentações e das provações por que passa, seu retorno é, na verdade, o requisito mais difícil porque:

- seu sucesso pode levá-lo ao profundo repouso da iluminação completa, distanciando- o, assim, do interesse pelo sofrimento humano;

- se não se tornar submisso através de testes de iniciação, mas simplesmente alcançar seu alvo e levar a graça obtida para o mundo que desejou, pode ser aniquilado pelas poderosas forças que desequilibrou, ou

- em optando por um voluntário e seguro retorno, poderá encontrar incompreensão e desconsideração por parte daqueles a quem foi auxiliar, colocando sua carreira em colapso.

Assim, mesmo dotado de dons excepcionais e honrado por seu meio, num segundo momento, corre o risco do não reconhecimento e do desdém.

O herói pode se apresentar na figura de um guerreiro, um amante, um imperador, um redentor, um santo. Simboliza a divina imagem redentora e criadora, liberando, como resultado de sua bem-sucedida aventura, o fluxo da vida no corpo do mundo. Assim, o herói mítico traz de sua aventura os meios de regeneração de sua sociedade, ou do mundo como um todo.

Para Jung, cinco etapas marcariam a trajetória do herói: - seu nascimento humilde mas milagroso;

- evidências precoces de sua força sobrenatural, ascensão rápida ao poder e à notoriedade;

- sua luta triunfante contra as forças do mal, sob a tutela de mentores ou guardiões, que o ajudam a superar sua fraqueza inicial;

- sua falibilidade ante a tentação do orgulho (hybus), e - seu declínio e morte, por ato de traição ou sacrifício.

- No primeiro ciclo, sua conduta seria basicamente instintiva, desinibida, infantil;

- no segundo, seria encontrado um pouco mais civilizado, movido agora por fortes emoções e busca de desafios;

- no terceiro, suas ações seriam suscitadas por sentimentos de idealismo e sacrifício, e, finalmente,

- no quarto ciclo, invencível mas vítima do abuso de sua própria força e orgulho, oferece-se em sacrifício.

Jung via nesses aspectos compartilhados pelos mitos de heróis um esquema com um significado psicológico específico, cuja principal função seria a de favorecer o desenvolvimento da consciência do Ego, através do conhecimento de suas forças e fraquezas, habilitando-o para os desafios da vida.

A “batalha contra o monstro”, um dos mais comuns desafios do herói, representaria o confronto da pessoa com suas tendências regressivas, tendo como resultado final a melhor integração intrapsíquica: O herói convence-se de seus elementos sombrios, ou seja, de seus aspectos ocultos, reprimidos ou desfavoráveis, passando a tirar daí energia e impulsos criadores mais adaptados.

Os ciclos de desenvolvimento do herói representariam nosso esforço para cuidar dos problemas advindos de nosso próprio crescimento.

Os heróis são jovens e morrem jovens. A morte trágica do herói coincidiria, finalmente, com a conquista da maturidade, representada por uma melhor integração entre as forças internas que compõe a nossa psique.

Sob a vertente do herói guerreiro, observam-se coincidências entre a trajetória proposta pelo mito e os diversos momentos que marcaram a campanha do 1º GAvCa em combate, razão pelo que esse atributo é conferido aos seus veteranos, em algumas menções qualificativas do seu desempenho.

3.8.3 MITOS DE GUERRA – MARTE E MINERVA

A referência mitológica à guerra conduz imediatamente a Marte, divindade do Olimpo e filho de Júpiter e Juno. Mal visto pelos demais deuses, inclusive por seu próprio pai, Marte somente conseguia, contraditoriamente, despertar alguma afeição em Vênus, a deusa do amor, com quem teve um filho, cupido. Pouco adorado também entre os mortais, a antipatia despertada por

ele justificava-se por seu temperamento belicoso, seu estilo rude e seu gosto pela pilhagem e pelo assassinato, que buscava satisfazer através dos atos de guerra.

Em combate, era precedido por seus filhos Medo e Terror, num terreno previamente preparado pela Discórdia. Ao final das contendas, o terreno era ocupado pelas Queres, deusas sanguinárias que se lançavam sobre suas vítimas, bebendo seu sangue, devorando sua carne e arrastando-as para a morada das sombras.

Desprovido de virtudes, Marte não buscava, nem respeitava, alianças e ideologias. Movia-se exclusivamente por seu gosto sanguinário. A despeito disso, Marte era, na maioria das vezes, mal-sucedido em suas ações tendo que, muitas vezes, fugir da batalha, ferido e humilhado, por outros deuses e heróis. Era visto como um mal necessário a ser conclamado quando a batalha era a única alternativa. Foi mais cultuado pelos romanos do que pelos gregos, que o invocavam em suas batalhas, e lhe deram uma imagem mais jovem e portentosa, revestida com uma brilhante armadura.

Em sua saga, entretanto, Marte se faz acompanhar de outra figura mitológica, também associada à guerra, representada por Minerva, sua irmã.

Filha de Métis e Júpiter, nasceu da cabeça de seu pai, já revestida de armadura e lança. Divindade de primeira grandeza, era admirada muito mais por suas virtudes de benemerência, disponibilidade e, principalmente, de justiça e de sabedoria, mas também por suas habilidades guerreiras, caracterizadas antes pelo uso do bom senso e da sabedoria do que pela força bruta. Minerva muitas vezes contrapunha-se ao irmão, Marte, cujo relacionamento era marcado pela rixa e pela desafeição. O confronto entre Minerva e Marte era também o confronto de duas modalidades de combate: uma delas sustentada pela tática, diplomacia e pelos nobres instintos do guerreiro virtuoso – estilo de Minerva, e outra movida pelo impulso tresloucado direcionado à destruição e à morte em si mesmas e pelo gosto por sangue, estilo de Marte.

Esse confronto realça, afinal, uma contraposição, ou seja, que se pode fazer a guerra de duas maneiras. Uma virtuosa, voltada para a defesa, da própria integridade, dos próprios bens, da justiça,ou ainda valores e ideais, onde o uso da força se dá mediado pela sabedoria, inteligência, destreza, aliança e respeito ao opositor. A segunda, não virtuosa, é empreendida como um fim em si mesma, alimentando motivos de supremacia, mediada pela ira, belicosidade e contenda. Realça, ainda, que, para a alma humana se sentir apaziguada diante da inevitabilidade da guerra, precisa ver algum tipo de virtude no seu encadeamento e desencadeamento. A defesa de nobres ideais como motivo para a guerra tornariam justos os atos beligerantes, principalmente se modelados pelo uso da diplomacia, da sabedoria e da astúcia. Por outro lado, não há justiça no uso irracional da força voltada apenas para a contenda e para a destruição. No mito, a virtude supera o vício.

Os tópicos a seguir explicitam a abordagem metodológica procedida para a pesquisa aqui conduzida.

4.1

ABORDAGEM

O objetivo aqui proposto define uma abordagem hipotético-dedutiva, sob o ponto de vista da lógica do conhecimento (SANTOS, L., 2006).

Sob o ponto de vista do tipo de estudo, tem-se um estudo de caso descritivo.

Quanto à forma de investigação, a tese, o objetivo e o material de estudo disponível foram atendidos pela abordagem qualitativa e quantitativa, mais apropriada para o entendimento de fenômenos que ocorrem naturalmente, relativos à história de vida das pessoas, sem pressupor o controle e manipulação de variáveis (MAYAN, 2001).

Essa escolha também se justifica uma vez que se busca ampliar a compreensão do fenômeno estudado, principalmente seu caráter processual, para além de uma explicação causal para o mesmo (NEDER, 1993).

No documento MARIA LUIZA PIGINI SANTIAGO PEREIRA (páginas 116-122)