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O ESTRESSE E A ATIVIDADE AÉREA

No documento MARIA LUIZA PIGINI SANTIAGO PEREIRA (páginas 30-34)

Tendo em vista que a prática aviatória se desenvolve em um ambiente extremo para o ser humano, essa atividade é consensualmente considerada estressante pelos profissionais especializados em medicina aeroespacial e em psicologia da aviação.

Nesse meio, o organismo submete-se a condições desfavoráveis de pressão, temperatura, umidade, luminosidade, gravidade, radiação, velocidade e ruído, as quais causam impacto sobre

sua fisiologia, impacto esse que, para ser minimizado, depende da contínua evolução ergonômica das aeronaves, equipamentos e vestes, além do treinamento fisiológico dos tripulantes a tais condições.

Quanto ao aspecto psicológico, há que se considerar que a inserção na prática aviatória, para ser efetiva, precisa ser re-significada, evoluindo de sua condição de fonte natural de perigo para a de risco assumido, através da constante consideração e respeito aos óbices a serem, sempre que possível, superados ou, ao menos, contornados.

A despeito dessa evolução, a prática, em si, continua sendo intrinsecamente percebida pelo indivíduo como perigosa, o que leva ao estabelecimento do conflito interno “medo versus desejo de voar” (CIEAR, 1975). O medo, acionado pelo instinto de sobrevivência, para ser superado, depende de que a força do desejo o sobreponha.

Avaliando-se a força desse desejo pode-se considerar também a força da motivação que ele aciona. Tem-se daí que profissionais ligados ao vôo apresentam, em sua quase totalidade, grande nível de motivação profissional (PEREIRA, M., 2005).

A solução assim conseguida, remete o conflito intrapsíquico medo versus desejo a um plano subconsciente, cobrando, entretanto, o preço do sacrifício emocional. Há concordância entre vários autores sobre um certo grau de empobrecimento emocional, que acompanha o aeronavegante.

Acerca desse assunto, e ilustrativamente, Ursano (1980), consolida o seguinte quadro, com respeito a dados de pesquisa sobre características emocionais em pilotos militares:

[...] o piloto tende a evitar e negar sua vida emocional interior. Sensações íntimas tendem a ser percebidas como externas e motivadoras de modificações no ambiente mais do que a introspecção. Prefere manter os pensamentos concretos e evitar ambigüidades [...] O quadro geral é de um indivíduo com uma vida ativa e orientada para aquisições, que tende a ignorar seus estados emocionais internos [...] podendo-se esperar que tenha dificuldades quando confrontado com fracassos ou com uma situação ambígua, particularmente em termos sociais, tendo poucos mecanismos disponíveis para lidar com essa parte de sua personalidade altamente negada (p. 1246).

Por outro lado, a forte motivação, que inclui componentes emocionais e cognitivos, por se configurar como um contraponto à noção de perigo, tem importante papel na atenuação do impacto das vicissitudes do vôo, e, portanto, de seu potencial estressógeno.

Dejours (1992) enfatiza o “lugar excepcional da motivação no desempenho dos pilotos de caça: Pois, nesta profissão, é preciso estar motivado a todo instante sem o que o afrontamento do perigo corre o risco de terminar em catástrofe” (p. 88). Segundo esse autor, o desejo de voar condensa as aspirações de superpotência, de ultrapassagem e de libertação aos limites do homem.

O nível consciente incluiria aspectos como prazer ou alegria de voar, a sensação de ser livre, a busca de novas sensações e a utilidade social do vôo, chance de controlar-se a si próprio e de performance psicofisiológica especializada para uma atividade que não abrange muitos erros.

Em nível pré-consciente, motivação envolveria o prestígio ligado à profissão, a identificação com as características heróicas da aviação e seus benefícios secundários como suposto sucesso sexual, a necessidade de expressar a afetividade extrapunitivamente mas inibida por padrões sociais e do Superego. Em nível inconsciente os conteúdos poderiam apenas ser levantados através de uma abordagem interpretativa, levando em conta o desenvolvimento da motivação nas profundezas da mente do indivíduo e possíveis distúrbios psicopatológicos (p. 955-6)

Jones (2002) assinala que a motivação para o vôo pode representar o equilíbrio entre fatores positivos, como satisfação, significado emocional e habilidades de enfrentamento, e fatores negativos, como medo, ansiedade, e perigo experimentado ou antecipado (p. 404).

A questão da motivação, se revela tão importante para a prática aviatória que seu contraponto, o medo do vôo, em aeronavegantes profissionais, sinaliza mudanças ligadas a problemas de adaptação, e podem se manifestar em diferentes níveis, desde reações de ajustamento até através de sintomas fóbicos e reações psicofisiológicas mais intensas, sempre valorizadas pelos profissionais de saúde.

Na medida em que o desejo de voar estimula a motivação aviatória, se estrutura como vocação e se organiza como opção profissional, a etapa seguinte diz respeito à inserção sócio- organizacional do indivíduo no meio aviatório.

Por um lado, a inserção nesse ambiente é necessária para que a prática aviatória se efetive. É nesse foro que o piloto é selecionado, treinado, examinado, acompanhado e contratado como profissional. É nesse ambiente que ele compartilha suas experiências e ideais relacionados à aviação. Por outro lado, tendo em vista que o ambiente aviatório se mostra pouco receptivo ao compartilhamento de temores, dúvidas e à ocorrência de falhas, tende a ser percebido pelo piloto como pouco adequado para apoiá-lo nesse aspecto(JOHNSTON, 1985).

Processos seletivos, treinamento contínuo e exames periódicos contribuem para a minimização de fatores de risco, porém não protegem completamente os profissionais da exposição ao estresse, e nem poderiam, além de serem, em si, estressógenos. A inevitável exposição do piloto aos eventos de vida, tem sido apontada como um importante aspecto a ser considerado com respeito à manutenção de sua capacidade de enfrentamento dos impactos inerentes à atividade aérea (ALKOV, 1974,1985; JONES, 2002).

Paralelamente, estudos voltados ao levantamento de traços de personalidade comuns aos pilotos – alguns deles identificando características da “personalidade do tipo A”, de Rosenman e Friedmann – encontram aspectos que permitem concluir sobre sua tendência à exposição ao estresse (DeHART, Rufus, 1980; HENDRIX, 1985; PICANO, 1991).

Mesmo considerado um grupo ocupacional dos mais saudáveis, a carreira e os controles previstos não protegem os aeronavegantes da exposição ao estresse. Estudos sobre causas de afastamento em aeronavegantes encontram a prevalência de doenças classicamente relacionadas ao estresse, como doenças coronarianas, distúrbios neurológicos e doenças psiquiátricas (CAMPOS JR et al., 1984; DeHART, Rufus, 1980; JOHNSTON, 1985; MAXWELL; DAVIES, 1982; MOHLER, 1984, 1986).

Pigini (1988), estudando o prontuário de 511 pilotos civis e militares, encontrou, como diagnósticos mais prevalentes, pelo número de indivíduos afetados, Hipercolesterolemia (44,2%), Perda Auditiva (32,5%), Excesso de Peso (19,8%), Hipertensão (11,9), Hipergliceridemia (7,4) e Diabetes Mellitus (2,9), e como principais causas de afastamento as relacionadas a transtornos cardio-circulatórios, fatores de risco cardíaco e transtornos otorrinolaringológicos.

A realidade dessas condições de trabalho vem justificando a atenção que os especialistas têm dado às condições de estresse sobre os aeronavegantes, não só pelo risco, pequeno mas inerente, da súbita incapacidade em vôo provocada por distúrbios cardio-circulatórios, mas antes disso, e com maior probabilidade, de quedas de desempenho induzidas por sobrecargas, com previsível comprometimento da segurança da operação.

Dada sua importância, muito já se pesquisou sobre as implicações psicofisiológicas, sociais e institucionais do estresse nesse ambiente, repercutindo na evolução de conceitos tecnológicos e ergonômicos, buscando a minimização do impacto que o meio adverso exerce sobre esses profissionais, e no estabelecimento de processos de seleção, treinamento e acompanhamento de pessoal, buscando o desenvolvimento de profissionais que melhor interajam com as especificidades dessa atividade (HAWKINS, 2005).

Especificamente quanto à seleção psiquiátrica, além da apreciação da saúde mental, outras características são buscadas. Dentre elas, como arrola Jones (2002), “motivação, habilidade, estabilidade, maturidade, atenção, percepção, antecipação e julgamento para tomar boas decisões antes e durante o vôo, e força e resiliência para resistir a prolongados estressores” (p. 406).

No Brasil, assim como em vários países do mundo, os aeronavegantes estão sujeitos a uma rotina de exames e avaliações de desempenho e capacidade, que incluem inspeções de saúde periódicas, estas últimas reguladas pelo estabelecimento de padrões de condição psicofísica,

Figura 1 - Um piloto de caça do Brasil na Campanha da Itália, pronto para decolar,

com máscara de oxigênio. Fonte: Heróis dos Céus ..., (2004).

buscando apreciar a manutenção das condições inicialmente selecionadas, além de prevenir que algum processo mórbido comprometa esse perfil.

Com relação a questões militares, entretanto, a especificidade das missões aéreas pressupõe a exposição a estressores típicos, os quais nem sempre podem ser contornados ou evitados. Kearney et al. (2003) lembram que os riscos e as ameaças implícitas na aviação militar decorrem de sua natureza mesma e de sua razão de ser. Seu mapeamento abrange desde questões ligadas ao enfrentamento de condições especialmente adversas atinentes ao ambiente físico, para cuja adaptação o aeronavegante depende de trajes e equipamentos especiais, e de treinamento fisiológico específico, passando pelo treinamento e preparo para as operações militares propriamente ditas, culminando no emprego em operações reais, mas se estendendo para além da desmobilização, no retorno à rotina.

Teixeira (2005) registra que a evolução da aviação de combate fez elevar, a partir da Primeira Guerra Mundial, em seis vezes o teto máximo de vôo e em dezesseis vezes as velocidades alcançadas, o que, acrescidas as forças de aceleração (forças ‘G’), deixa evidente suas implicações no combate de caça ou nas manobras evasivas, com tremendas conseqüências sobre o organismo humano.

O preparo para a guerra e a participação efetiva em operações bélicas, entretanto trazem, per se, uma série de estressores amplamente estudados e documentados ao longo da história, como se verá a seguir.

No documento MARIA LUIZA PIGINI SANTIAGO PEREIRA (páginas 30-34)