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Elenco, figurino e locação como geradores de identificação

CAPÍTULO 4 – A ANÁLISE DA PUBLICIDADE

4.4. Elenco, figurino e locação como geradores de identificação

Da mesma forma que elementos do universo popular como o circo e o grotesco são apropriados pela publicidade de forma a falar a mesma língua do público de classe C, potencial consumidor de seu produto, a escolha das imagens que compõem o anúncio passa pelo mesmo processo: a escolha da locação das cenas, do elenco, do figurino, dos objetos que irão compor as cenas, todos os detalhes são deliberadamente e detalhadamente escolhidos para se aproximar do público que se pretende atingir.

O comercial da Coca-Cola, por exemplo, veiculado no SBT durante a novela Carrossel, começa mostrando a paisagem de uma cidade grande como São Paulo. A cena se fecha na varanda de um prédio, onde um rapaz grita “Vai Brasil!”. Nessa tomada já é possível observar, ao fundo, as antenas de TV em outro edifício, que tem sua fachada manchada e descascada. Esse tipo de “imperfeição”, que na verdade retrata a realidade, não era aceitável na publicidade em décadas passadas.

Figura 45: Comercial Coca-Cola 2013

Em seguida, a câmera se fecha numa rua estreita, como o beco de uma favela com paredes descascadas, um menino negro corre por essa ruela, ora levando uma bandeira do Brasil, ora levando uma pipa ou um skate. Outro menino, dessa vez branco, leva uma bicicleta.

Figura 46: Comercial Coca-Cola 2013

Figura 47: Comercial Coca-Cola 2013

Os meninos se unem numa nuvem verde e amarela e começam a pintar: a bola, os pneus das bicicletas. Fazem parte da cena objetos simples do cotidiano. A bola é cinza, o balde é dos mais simples e baratos que se pode encontrar.

Suas bicicletas colorem a pista, os paralelepípedos da rua são pintados de verde e amarelo. A bola pintada suja o muro com as cores da bandeira do Brasil.

Figura 49: Comercial Coca-Cola 2013

Figura 50: Comercial Coca-Cola 2013

Novamente podemos ver as imperfeições da realidade raramente vistas na propagada. O muro sujo, descascado e imperfeito vira o mural para as cores verde e amarela.

A cena se transforma numa festa cheia de jovens. “A Coca-Cola coloriu as latas. Agora, vamos juntos colorir o Brasil na Copa das Confederações da FIFA”. E encerra o comercial com os jovens se abraçando em comemoração e o slogan aparece escrito “Abra a felicidade”.

Figura 51: Comercial Coca-Cola 2013

Alguns detalhes desse anúncio são relevantes na análise. A presença das imperfeições da realidade é uma característica marcante e contemporânea. Ao comparar esse comercial com outro da mesma marca, porém de mais de vinte anos atrás, é possível notar que essa aproximação da realidade não era permitida. A peça de 1989, que era assinada com o slogan “Emoção pra valer”, mostrava tomadas cinematográficas de praia e calor, amigos se divertindo, num verão perfeito. Algumas cenas se distanciam da realidade através de técnicas de pós-produção que dão a ilusão de um mundo sem imperfeições.

Figura 53: Comercial Coca-Cola 1989

Figura 54: Comercial Coca-Cola 1989

O comercial de 1989 foi escolhido deliberadamente para mostrar o outro extremo das escolhas de locação, elenco, figurino e tratamento de imagens: aquela que se distanciava da realidade e mostrava pessoas excessivamente felizes em cenas perfeitas e imagens trabalhadas, o que contrasta com a propaganda dos dias de hoje, que tenta se aproximar da realidade do público ao mostrar imperfeições sem maquiagem ou pós-produção.

Almeida, ainda em seu livro Telenovela, Consumo e Gênero, faz uma análise semelhante da novela O Rei do Gado. “A pobreza é um estado comparativo reforçado pela riqueza que se vê na televisão” (ALMEIDA, 2003, p. 172).Segundo a pesquisa da autora, a novela é um luxo danado, e as imagens são tratadas para mostrar cenas “melhoradas” que acabam se afastando da realidade. Esse luxo é ao mesmo tempo motivo de crítica e de admiração do público. Fato é que o distanciamento da realidade é percebido.

Os personagens Donana e Zé do Araguaia acima citados levam uma vida simples num cenário maravilhoso de casa de fazenda, com fogão à lenha sempre funcionando, cercados pela natureza do pantanal. As cenas em que aparecem mostram um belo tratamento de imagens, sempre com cores amareladas. (Ibid., p 176)

E é justamente nas imagens tratadas que está o distanciamento da realidade que o comercial da Coca-Cola busca diminuir ao mostrar o balde barato, o muro descascado, a fachada manchada, o beco estreito da favela. O afastamento do “luxo danado” e das imagens tratadas, presentes no comercial dos anos 1980. aproxima o produto da realidade das favelas e da realidade urbana da própria classe C.

Pesquisa divulgada pelo Instituto Datapopular mostrou que, em 2013, 65% dos moradores das favelas são de classe C, enquanto dez anos antes esse mesmo percentual era de 33%. Ou seja, hoje, 11,7 milhões de brasileiros moram nas favelas, o que poderia representar o quinto maior estado do país (QUAINO, 2013).

Outro detalhe importante é a presença da moça negra nas cenas finais do comercial. Iara Beleli, em seu artigo “Cenários marcados pela cor, a inclusão do negro na publicidade brasileira” (2006), faz uma crítica não só à ausência de atores negros na publicidade brasileira, como também às formas de uso quando eles estão presentes. Em 848 peças analisadas pela autora de 1973 a 2003, apenas sete usaram atores negros e em todas elas (exceto as que mostravam Pelé) associavam esses atores ou modelos a situações de pobreza e violência.

Embora reconheça que os publicitários contratam atores negros para gerar identificação com a “classe media negra”, que adquire poder de compra, sua questão central é que a abertura de espaço para atores e modelos negros não modifica, mas acentua as diferenças sociais.

A utilização de imagens de “pretos, pardos, mulatos, crioulos, morenos” agrega alguns quesitos ao padrão estético hegemônico há tempos promovido pela propaganda, mas não o modifica. A ascensão de classe não significa que a “cor” desapareça como um fator de distinção social. (Ibid.)

Almeida também analisa a questão da presença de atores negros na publicidade brasileira, especificamente. Na opinião da autora os negros estão mais presentes em anúncios que buscam certa representação do Brasil, como por

exemplo: em anúncios de varejo ou de cerveja, ou ligados à elementos de “brasilidade” como carnaval, verão, futebol, praias (ALMEIDA, 2003).

Embora a Coca-Cola seja uma das poucas marcas que historicamente usou atores negros (bem como orientais, ruivos, morenos, loiros) em sua publicidade, o caso do comercial analisado, veiculado em junho de 2013, é bem explicado por ambas as autoras, Beleli e Almeida: aqui a atriz negra é colocada num cenário urbano que se aproxima da pobreza das favelas e também no contexto de brasilidade ligada ao futebol.

Outros casos de escolha do elenco podem ser colocados nessa análise. Sotaques antes ausentes na publicidade começam a aparecer. No comercial de Vanish, por exemplo, veiculado no SBT durante a novela Carrossel, a escolha de uma atriz com um sotaque tipicamente paraibano chama atenção. Como grande parte das empresas e agências de publicidade estão localizadas no eixo Rio-São Paulo, dificilmente encontra-se na publicidade um sotaque de região diferente do país.

O comercial começa com um depoimento de um personagem apresentado como Claudia Louize. Além do nome, também faz parte da apresentação da personagem sua origem – Paraíba.

A escolha desse Estado certamente não se deve ao acaso. Segundo a publicação do Governo Federal Vozes da Classe Média (BRASIL, 2012a), o Nordeste foi a região onde mais cresceu a população de classe C. Em 2002, esse grupo representava 22% da população da região, em 2012, passou a representar 42%.

Claudia Louize, da Paraíba, conta sua experiência com clareamento de roupas brancas. “Quando você bota água sanitária na roupa branca, ela fica amarela. E quando você cheira assim, a pessoa sabe logo, cê usou água sanitária né. Foi muito fácil pra mim depois do Vanish lavar roupa. Menina, aquele grosso sai todo assim ó. E além de ficar branco, ele conserva a roupa”.

Figura 55: Comercial Vanish 1

As cenas seguintes mostram a personagem utilizando o produto: “Dou uma esfregadinha, deixo a roupinha de molho lá, ponho na máquina, e aí faz o ciclo normal. Uma boa roupa branca é a melhor aparência que a pessoa pode dá”.

Uma voz diferente encerra a peça: “Vanish Crystal White. O branco até três tons mais branco”.

Figura 56: Comercial Vanish 1

Todos os detalhes de uma peça publicitária são escolhidos deliberadamente com o objetivo de capturar a atenção do seu público-alvo, gerando identificação. Desde os cenários, a locação da filmagem, até o elenco, seu sotaque, maquiagem, penteado e figurino. Após a filmagem, o tratamento das imagens também cumpre um papel de acordo com o objetivo daquele comercial, podendo esconder imperfeições ou valorizá-las, criar uma atmosfera de fantasia ou limpeza. Nesta sessão foi possível analisar comerciais que lançam mão desse tipo de artifício para atrair o público de classe C.