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Será que é errado dizer que literatura é aquilo que cada um de nós considera literatura? Por que não incluir num conceito amplo e aberto de literatura as linhas que cada um rabisca em momentos especiais? [...] Porque não chamar de literatura a história de bruxas e bichos que de noite, à hora de dormir, sua mãe inventava para você e seus irmãos? [...] Estes textos não têm a mesma cidadania literária que o romance famoso com crítica no jornal e comentado na escola? (LAJOLO, 1982, p. 10).

As questões propostas por Lajolo (1982) são indagações que nos provocam a também formular outras questões sobre o fenômeno literário: por que há uma espécie de classificação hierárquica da literatura, dividindo-a em clássica, canônica, popular, de entretenimento, de bolso, de mercado, de cordel, dentre outras nomenclaturas? Em que tal classificação influenciaria a leitura de um texto literário realizada por um suposto leitor? Existe um valor de mercado, social, atrelado às práticas de leitura literária? Haveria uma espécie de controle ou um cuidado para que essa hierarquia literária fosse mantida, como, por exemplo, uma distribuição de cada tipo de literatura a públicos específicos, levando em consideração critérios sociais e políticos, por exemplo?

Essas perguntas nos motivam a refletir sobre a Literatura a partir do momento em que nos deparamos com essa arte, em nossa trajetória, como leitores. Tomando por base o Brasil, em princípio, conhecemos a literatura, embora não com esse nome, através das narrativas clássicas infantis contadas por avós, pais, mães, tios, professores, contadores de histórias, narradores de desenhos animados apresentados na TV, dentre outros, quando ainda somos crianças. Também nessa fase é possível conhecer as anedotas, as adivinhações, os poemas rimados, dentre outras criações, as quais são responsáveis por provocar a imaginação das crianças, fazendo com que estas experimentem criar mundos paralelos ao chamado mundo real, como o fantástico e o maravilhoso, por exemplo. É nessa fase que a leitura exige habilidades do receptor para entender uma imagem presente em algum impresso ou em alguma tela, criar outras tantas imagens a partir das histórias que ouve ou simplesmente inventá-las. Assim, mesmo sem reconhecer o código de sua língua (quando ainda não alfabetizado), o leitor já existe, pois já sabe fazer associações, inferências, criar outras histórias, ainda que não seja a mesma contada em um livro infantil, em um jornal ou em uma revista em quadrinhos.

Como ainda não há a rigidez dos parâmetros escolares, o “leitor” infantil ignora o que seja literatura, qual seu conceito e quais as discussões teóricas que legitimam uma obra escrita, dentre outras convenções. É também comum ao mundo infantil uma relação que envolve admiração, sedução e criatividade com o livro, independente da sua natureza. Desse modo, as crianças ainda não alfabetizadas olham a capa e as gravuras (se houver) e contam suas histórias, tendo por base a própria imaginação.

Quando a criança já é alfabetizada, há a possibilidade de realização das expectativas que possuía quando não era alfabetizada. Também é possível, nessa fase, uma extensão do sentimento que havia entre o leitor e a leitura, passando a combiná-los com o suporte. Essa relação pode ser observada no conto “Felicidade clandestina”, de Clarice Lispector. A história apresenta uma garotinha apaixonada pelo livro Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. Ao descobrir que outra menina possuía o referido livro, punha-se a pedi-lo emprestado e sempre ouvia uma desculpa da dona do livro para não emprestá-lo. Obstinada, a garota não desistia e sempre ia até a casa dos pais da menina “gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados” (LISPECTOR, 1998, p. 11), no intuito de conseguir o seu objetivo. Um dia, a mãe da dona do livro, estranhando a silenciosa presença daquela garotinha todos os dias, cobrou explicação das duas. Ao entender o que acontecia, obrigou a filha a emprestar o livro e realizou o desejo da brava leitora:

“E você fica com o livro por quanto tempo quiser.” Entendem? Valia mais do que me dar o livro: "pelo tempo que eu quisesse" é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer. Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo. Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade (LISPECTOR, 1998, p. 11).

O texto ficcional de Clarice Lispector mergulha e convida o leitor a também mergulhar no universo infantil e conta a história de uma menina e de suas visões acerca do contexto em que vive. Nesse contexto o que mais lhe interessa é o livro pertencente a outra menina. A imaginação da garota e a forma como a história é contada podem também provocar a

imaginação do leitor do conto, pois mexe com as memórias de todos nós que tivemos contato com algum livro em nossa formação leitora. Também é possível perceber a preocupação da menina em não “devorar o texto” de uma vez. Assim, prefere admirar o suporte, sentir-se dona em sua plenitude, antes de realizar o que a satisfazia: a leitura. E essa realização dar-se- ia através da paixão e da certeza de uma ávida leitora em acessar uma famosa narrativa da literatura brasileira.

Ao começar o processo de alfabetização escolar, passamos a outro nível do “reconhecimento” da literatura através das aulas e do livro didático. No ensino fundamental, a literatura é tratada como gênero e não há uma separação da disciplina Língua Portuguesa. A literatura, aqui, aparece em forma de fragmentos de narrativas e de poemas (às vezes estes são transpostos para o LD na íntegra), desde a literatura infantil dita clássica até a literatura contemporânea. Nesse momento, a criança, aluna, leitora, cidadã conhece formalmente a literatura. Mas será que nessa fase é possível se apropriar de conceitos e nomenclaturas complexas que definem e classificam o termo em questão? Ou será que a ampliação do horizonte de expectativas do leitor suplanta quaisquer terminologias conceituais? Reflitamos.

No ensino médio, a literatura passa a ser tratada como disciplina pelo livro didático (embora não seja pelos documentos oficiais), se julgarmos pela divisão apresentada pelos manuais, gozando do prestígio de ter uma seção que a separa da Gramática e da Produção de textos. Às vezes, uma coleção possui um livro separado apenas com conteúdos referentes à literatura. E é nesse momento que vem à tona uma extensa quantidade de conceitos e nomenclaturas. Além de um conceito de literatura apresentado em cada manual didático, há outros conceitos, os quais são apresentados em todo o ensino médio brasileiro. Pela ordem, Trovadorismo, Humanismo, Classicismo, Barroco, Arcadismo, Romantismo, Realismo, Naturalismo, Parnasianismo, Simbolismo, Pré-modernismo, Modernismo, Pós-modernismo. E há ainda as ramificações dentro de alguns movimentos, como o Romantismo (que possui três gerações) e o Modernismo (formado por três fases e relacionado também ao pré-modernismo e ao pós-modernismo), por exemplo. Aqui se configura a formação cidadã do leitor pelo livro didático. A partir daí, o referido leitor já escolarizado é “convencido” a enquadrar qualquer texto literário em uma das classificações citadas acima. Ou seja, aquilo que começa como provocação, fruição a partir da contação de histórias na infância, tende a se “domesticar” com as classificações propostas pela periodização da literatura brasileira. Salvam-se aqueles que possuem uma história de leitura que vai além dos muros escolares, ou seja, os que leem à revelia dos manuais escolares:

A escola media o encontro entre a criança e a obra de arte literária de forma bastante diferente da mediação feita entre o adolescente e o texto literário. Para este, a experiência literária escolar se volta para o “aprender”, mais e mais distanciado do prazer e da criatividade literários, com ênfase nos aspectos mais formais e menos desafiadores da educação (LEAHY-DIOS, 2004, p. XXVIII-XXIX).

É possível perceber, em alguns romances brasileiros, histórias que ficcionalizam uma relação entre leitores e escolas, o que também pode provocar o leitor a repensar sua formação escolar. No livro A formação da leitura no Brasil, Marisa Lajolo e Regina Zilberman destacam a obra Sílvia Pélica na Liberdade, de Alfredo de Mesquita, como um dos exemplos de obras literárias contextualizadas em um ambiente voltado às práticas escolares. A história se baseia em casos acontecidos entre 1899 e 1917 na casa do avô materno do autor, Cerqueira César, e apresenta a seguinte passagem:

Quando Sílvia ficou na idade, Nhá Lica pensou em mandar ela prá escola. Sílvia precisava aprender a ler, escrever, fazer conta, como as outras crianças. Então, Nhá Lica, que era muito boa, lembrou da escola de D. Margarida, coitada, que era uma senhora tão virtuosa trabalhadeira e esforçada. A gente devia mesmo ajudar ela, que lutava tanto, tinha tanta precisão. Mais uma aluna já adiantava [...]

_ Vamos Sílvia, que é isso? Leia.

Um sorriso indefinido levantou os cantos da boca, apertou os olhinhos miúdos de Sílvia, que continuava muda.

_ Vamos, Sílvia, seu Zezé foi mostrando as sílabas escritas. Vamos, soletre comigo: b, ó, bó, T, e; te... Vamos.

Sílvia olhou bem o desenho por cima da palavra e, sorrindo, triunfante:

_ B, ó, bó, t, e, te: Canoa. Disse.

_ Ora, Sílvia que é isso? Então é assim que te ensinaram na escola? Então, vamos continuar a ler, disse seu Zezé e mostrou outra palavra para Sílvia. Vamos juntos: S, ó, só, F, á, fá...

E Sílvia, fiel a seu próprio método de soletração:

_ S, ó, só, F, á, fá... Deu uma espiada no desenho em cima, e: Cadeira! (LAJOLO; ZILBERMAN, 2011, p. 167).

O método de ensino utilizado por seu Zezé para alfabetizar a pequena Sílvia se revela tão ineficiente quanto o escolar, o qual ele critica. As inferências feitas pela criança, embora não atinjam o significante escolhido pelo seu alfabetizador, traduzem as concepções da garotinha no que diz respeito ao estabelecimento de uma relação entre um determinado objeto e uma palavra que ela já conhece e que, em sua análise (notemos que ela pensa antes de responder), pode perfeitamente nomear o objeto à sua frente. Assim, a condição criativa da pequena Sílvia esbarra na rigidez didática do seu Zezé. Porém, a decidida criança segue o seu

próprio raciocínio e não permite que sua criatividade e o seu método de análise sejam desconstruídos, por enquanto. Também podemos ampliar, a partir do texto extraído, uma discrepância que ocorre nas escolas ao se trabalhar a leitura e tentar extrair desta, frequentemente, conceitos ou definições já contidos no livro didático ou em um dicionário. O paradoxo se revela quando o texto literário é alvo de “domesticação” para se ensinar conteúdos gramaticais, por exemplo, ignorando a sua natureza complexa, simbólica, ambígua. Por outro lado, nem todos aqueles que passam pelas aulas de leitura nas escolas brasileiras, em especial as públicas, conseguem ou se dão conta de que precisam resistir para mudar essa realidade. O ensino de leitura literária encontra cada vez mais empecilhos para se realizar. O descalabro vai desde a leitura (que muitas vezes fica somente na decodificação ou no desfile de palavras lidas, sem discussão) até as respostas prontas para questões também prontas, que não exigem nenhum tipo de reflexão acerca do que se leu. Desse modo, seguimos questionando a incoerência existente entre a formação de um leitor que tem por base o incentivo à imaginação, à criatividade, fora das escolas, antes de se alfabetizar, em alguns casos, e a “oficial” formação leitora que, ao invés de ler literatura, ampliar seu horizonte de expectativas e de leitura, apreende conceitos de escolas literárias, características de movimentos literários e principais obras e autores e suas épocas.

Certamente, o que vemos em quadros como o descrito acima é um não-ensino de uma não-literatura. Em destaque, a escola pública nega ao aluno o direito que ele tem de se apropriar de um texto literário. Por mais que os manuais didáticos, aprovados pelo Ministério da Educação (MEC) juntamente com as Secretarias de Educação de estados e municípios, sugiram a leitura de textos literários originais e não somente dos fragmentos extraídos e apresentados no livro didático de literatura, dificilmente isso será feito por alunos e também por professores.

Ao constatarmos esse problema, percebemos que isso não fica restrito aos muros escolares. Configura-se em um problema de negação do direito à leitura literária, conforme palavras de Antonio Candido (2004), ao discursar sobre o direito à literatura como um dos direitos humanos:

Por que? Porque pensar em direitos humanos tem um pressuposto: reconhecer que aquilo que consideramos indispensável para nós é também indispensável para o próximo. Esta me parece a essência do problema, inclusive no plano estritamente individual, pois é necessário um grande esforço de educação e auto-educação a fim de reconhecermos sinceramente

este postulado. Na verdade, a tendência mais funda é achar que os nossos direitos são mais urgentes que os do próximo (CANDIDO, 2004, p. 172).

Se, como nos diz Candido, é difícil reconhecermos que o indispensável para nós também o é para o outro, isso pode se tornar impossível quando não temos consciência de que não agimos dessa forma. Até defendemos a igualdade, mas essa defesa fica no discurso, pois, como afirma o teórico, não percebemos que os nossos desejos, os nossos direitos também poderão ser do outro, que nem sempre pertencerá à mesma classe social à qual pertencemos. Ao defender tal posicionamento, o referido autor cita alguns dos bens descritos como incompressíveis (aqueles que não podem ser negados a ninguém): o alimento, a casa, a roupa. E outros identificados como compressíveis: os cosméticos, os enfeites, as roupas supérfluas. Mas onde estaria a arte literária em tais definições? Dependeria de um conjunto de elementos mensurados entre um ponto de vista individual e um ponto de vista social. O direito à literatura estaria ao mesmo lado de outros direitos como a saúde, o amparo da justiça pública, o direito à crença, ao lazer, dentre outros. Mas seria a literatura um “bem incompressível”? Eis o conceito formulado por Candido (2004, p. 174):

Chamarei de literatura, da maneira mais ampla possível, todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis da produção escrita das grandes civilizações.

Pelo exposto, percebemos que, para Candido, a literatura é, sim, um bem incompressível e, como tal, um direito inquestionável ao cidadão. Mas é um direito perigoso, pois o texto literário, por ser capaz de provocar inúmeras leituras – inclusive de um mesmo leitor em situações diferentes – tende a ser vigiado pelos organismos do Estado brasileiro. Em especial, a escola e o livro didático de literatura oferecem ao aluno e cobram do mesmo ideias que dificilmente exigiriam uma associação entre aquele discurso e um outro social e político, por exemplo:

[...] a literatura é obviamente social: social por parte da língua que utiliza, social por parte dos temas, social por parte dos autores e dos leitores; social por parte dos recursos utilizados. Como o texto tem relação com o contexto, a literatura de um país tem relação com este país, é claro (JOBIM, 2009, p. 125).

A literatura, longe de ser apenas um texto de entretenimento ou datado (como são levados a pensar os muitos alunos brasileiros), “confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas” (CANDIDO, 2004, p. 175).