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Se é certo que os leitores sempre existiram em todas as sociedades nas quais a escrita se consolidou enquanto código, como se sabe a propósito dos gregos, só existem o leitor, enquanto papel de materialidade histórica, e a

leitura, enquanto prática coletiva, em sociedades de recorte burguês [...]

(LAJOLO; ZILBERMAN, 2011, p.120).

O surgimento do leitor, como ser que exerce uma função social, data de meados do século XVIII, na Europa, quando o acesso à leitura era permitido aos nobres e legitimado pelo poder absolutista vigente. Somente após as revoluções burguesas, através de práticas educativas, o ensino passou a ser democratizado. Com isso, instituições como as famílias, os casamentos, as igrejas resultaram em principais difusores da nova prática, cada um atendendo a interesses particulares.

Os primeiros passos para formação e o fortalecimento da sociedade leitora do Brasil acontecem no Rio de Janeiro do século XIX, cidade que já apresentava alguns mecanismos para produção e circulação da literatura. Nessa época, autores do Romantismo brasileiro como José de Alencar, Bernardo Guimarães e Manoel Antônio de Almeida dirigiam-se ao público leitor com muita cautela, visando “fisgar” o seu suposto consumidor das obras que escreviam, e também consolidar a literatura produzida nos moldes consagrados da época, além de

garantir o espaço para novas produções. Segundo Lajolo e Zilberman (2011), Manuel Antônio de Almeida publicou em folhetim, na imprensa carioca em l852-1853, Memórias de um

sargento de milícias, com o qual teve muito mais êxito do que quando começara a lançar suas

obras em livros. No primeiro contato, trata o leitor como despreparado. Nessa publicação, parecia conduzir o leitor pela mão, como se estabelecesse um caminho a percorrer.

Quanto à narrativa, o escritor atesta a ocorrência de expressões para chamar a atenção do leitor, buscando, dessa forma, condicioná-lo à continuidade dos fatos, ou garantir que ele descubra novos elementos na leitura. Isso revela um narrador paternalista que conduz e invoca o leitor a cada momento da história com explicações constantes e retrocessos no relato.

O comportamento dos narradores românticos atendia à ideologia de um processo político que teve início no decorrer do Brasil Colônia, a partir da substituição do ensino religioso pelos decretos do Marquês de Pombal, por sua vez amparados no Verdadeiro método

de estudar, de Luís António Verney. A política instituída por Pombal para controlar a

circulação da leitura no Brasil, sobretudo em relação aos livros que vinham de outros países, contava com um poderoso fisco português:

Quando se tratava de controlar os súditos, a coroa portuguesa não media esforços. Temendo a difusão de ideias perigosas, fazia com que seus órgãos de censura controlassem não apenas o envio de livros para as colônias d’além-mar, mas também a movimentação livresca entre cidades portuguesas, autorizando ou não a circulação de livros dentro do país (ABREU, 2003, p. 23).

Desse modo, os impressos que representassem, de alguma forma, ataques à igreja, à família, ao casamento, à moral e às outras instituições consolidadas pela sociedade portuguesa seriam censurados e não entravam no país, pelo menos pelas vias legais. Assim, o leitorado ainda incipiente apropriava-se de escritos vindos da Europa, em geral portugueses, e, com o estabelecimento da família real no Brasil, passou a consumir também os textos aqui produzidos. O mercado do livro era praticamente inexistente e os textos produzidos eram, nos primeiros anos do estabelecimento da imprensa, “biografias romanceadas” (CÂNDIDO, 2009). Esses textos se caracterizavam pelo elogio a algum nobre, construído através de narrativas. Conforme observa Márcia Abreu (2003, p. 84), o livro aqui publicado significava moeda de troca “para obtenção de postos e favores ou para ganhar a simpatia dos poderosos, já que quantidade significativa de obras saídas dos prelos da Impressão Régia dedicava-se ao elogio dos soberanos”.

Também no período colonial observa-se uma tendência à massificação dos saberes através da leitura:

Entre os séculos XVI e XIX, as práticas sociais em geral passaram a ser reorganizadas sob a forte influência das práticas sociais escriturais e mesmo aqueles que tinham nenhum ou pouco domínio da escrita se viram cercados por ela. Até mesmo as práticas sociais essencialmente orais revestiram-se de características das escritas [...]. Como conseqüência desse processo, surgiu a ideia da escolarização em massa, que tem como princípio a pedagogização da aprendizagem dos saberes que foram escriturados (saberes codificados): a escola assumiu a prática de dividir os conhecimentos em partes hierarquicamente ensinadas, pondo fim ao saber não sistematizado (JURADO; ROJO, 2009, p. 42).

A leitura no Brasil, portanto, nasceu sob as rédeas de uma censura portuguesa que institucionalizava estratégias de produção e também de consumo. Como bem cultural, instituiu-se como privilégio do clero e da nobreza, determinando quais tipos de leitura eram adequados a cada um dos estratos contemplados.

Apesar dos interesses políticos presentes na produção do impresso no país, a vida cultural da colônia se transformou consideravelmente, pois nesse período também foram publicadas obras direcionadas ao ensino, segundo pesquisa de Marisa Lajolo e Regina Zilberman (2011). Ainda segundo o estudo das autoras, a Impressão Régia seguia publicando obras literárias, gramáticas, obras referentes à medicina, traduções etc. No entanto, essas publicações ocupam apenas um pequeno espaço de uma poderosa indústria do livro que começa a se desenhar, a do livro didático:

[...] imprensa e livro didático nascem ao abrigo do Estado e sujeitam-se a ele. As duas imagens – uma, vinculando imprensa e livro didático e, em vista da produção em massa deste, reforçando sua parceria com o capitalismo; outra, fazendo-a dependente do apadrinhamento do Estado, que conforme o caso, atua como mecenas, padrasto ou pai – balizam as condições entre as quais oscilam leituras e leitores (LAJOLO; ZILBERMAN, 2011, p. 128).

Com tais finalidades, o livro didático brasileiro, desde o seu nascimento, compromete- se com a política do Estado. Assim, para representar o governo vigente, combinou leitura e ideologia política. Isso iria influenciar o consumidor do LD em sua formação leitora, pois a apropriação seria resultante da combinação entre esses dois polos. O livro didático é também um dos instrumentos mais importantes no contexto educacional, o principal representante dessa política, o meio mais acessível de leitura nas escolas.

As pesquisas realizadas, segundo os autores, versam sobre problemas semelhantes: a qualidade do manual didático brasileiro e sua aplicabilidade. Contribuem também para fortalecer o caráter cultural que o livro didático assumiu ao longo de sua existência por conta da sua representatividade sociopolítica. Quanto a isso, Antônio Gomes Batista (2007) destaca a importância do livro didático para a cultura educacional brasileira.

Em síntese: o livro didático desenvolve um importante papel no quadro mais amplo da cultura brasileira, das práticas de letramento e do campo da produção editorial e compreende, consequentemente, diferentes dimensões de nossa cultura, de suas relações com a escrita e com o letramento, assim como os processos sociais, culturais e econômicos de diferentes facetas da produção editorial brasileira significam também compreender o livro escolar brasileiro (BATISTA, 2007, p. 534).

Embora o livro didático seja o principal suporte (senão o único em muitas escolas) do qual os professores dispõem, ele não se configura como a única possibilidade de se letrar literariamente um sujeito. Antes de começarmos a nossa discussão sobre o tema, apresentaremos os conceitos formulados por pesquisadores da área sobre os termos letramento e letramento literário. Sobre letramento, Rildo Cosson e Graça Paulino constroem um entendimento a partir de dois eixos. O primeiro eixo, advindo do inglês litteracy, define letramento como “a habilidade de ler e escrever, em uma noção que abarca o que chamamos de alfabetização” (PAULINO; COSSON, 2009, p. 64). Cabe ressaltar que essa vertente se refere aos progressos individuais dos sujeitos no que diz respeito à conquista de habilidades e competências no uso da tecnologia da escrita. O segundo eixo surgiu entre 1970 e 1980 e apresenta uma distinção proposta por Brian Street (1984) “entre um ‘modelo autônomo de letramento’ identificado com o uso tradicional do termo e um ‘modelo ideológico de letramento’ que corresponde à nova perspectiva” (PAULINO; COSSON, 2009, p. 65). Nesse caso, afasta-se da perspectiva individual observada no primeiro eixo e se identifica com uma ideologia voltada às práticas sociais de apropriação da leitura e da escrita. Sendo assim, os autores concluem que:

[...] nessa concepção, [...] letramento não pode ser singular, mas sim um plural, pois há tantos letramentos quanto as práticas sociais e os objetos que enformam o uso da escrita na nossa sociedade letrada, como se observa no uso do termo em expressões tais como letramento digital, letramento financeiro ou letramento midiático, para indicar a competência da leitura e interação social, associada à escrita e até para além dela (PAULINO; COSSON, 2009, p. 65).

As definições dos autores acima mencionados sobre letramento nos interessam, uma vez que nos auxiliam a refletir acerca do pensamento homogeneizado sobre a leitura, sobretudo a literária, presente tanto nos manuais didáticos quanto em discursos escolares. Para ampliar estas reflexões, buscamos novamente auxílio na definição que Cosson e Paulino oferecem ao termo “letramento literário”:

[...] propomos definir letramento literário como o processo de apropriação

da literatura enquanto construção literária de sentidos. Aqui convém

explicitar, em primeiro lugar, que considerar o letramento literário um processo significa tomá-lo como um estado permanente de transformação, uma ação continuada e não uma habilidade que se adquire como aprender a andar de bicicleta ou um conhecimento facilmente mensurável como a tabuada de cinco (PAULINO; COSSON, 2009, p. 67).

Partindo desse princípio, entendemos que o letramento literário se realiza no exercício cotidiano que se faz com o texto literário, mas não para repetir fórmulas, ao contrário, ler para desenvolver habilidades de apropriação do texto através de variadas associações que partem de conhecimentos prévios a fim de enriquecer o que se extrai do referido texto. Naturalmente, essa prática se opõe ao engessamento das aulas de literatura tão denunciado por pesquisadores da área. O livro didático, nesse caso, colabora negativamente para a formatação desse quadro, pois, como já explicitamos, impõe uma gama de conteúdos distribuídos em capítulos e subdivididos em seções de leitura de fragmentos de textos, imagens, biografias, contextos históricos e questões de múltipla escolha ou de interpretação. Vale acrescentar que todas as questões contêm respostas no “livro do professor”. Entendemos, portanto, que o letramento literário proposto pelos autores como um processo contínuo da prática de leitura e apropriação da escrita está longe de se realizar nas escolas. Nesse sentido, os autores vão além dos muros escolares quando pensam a literatura como um processo social e cultural:

Também deve ficar claro que o letramento literário não começa nem termina na escola, mas é uma aprendizagem que nos acompanha por toda a vida e que se renova a cada leitura de uma obra significativa. Depois, trata-se de apropriação, isto é, um ato de tornar próprio, de incorporar e com isso transformar aquilo que se recebe, no caso, a literatura. Não há assim, leituras iguais para o mesmo texto, pois o significado depende tanto do que está dito quanto das condições e dos interesses que movem essa apropriação (PAULINO; COSSON, 2009, p. 67).

De acordo às proposições de Paulino e Cosson (2009), não é apenas tarefa da escola promover o letramento literário dos seus alunos. Como cidadãos, esses alunos têm à sua disposição outros meios de ler e de se apropriar de textos literários das mais diversas naturezas, sobretudo daqueles que não são oferecidos nas escolas. E mesmo quando a escola é o único meio de acesso ao literário, ao concluir o ciclo, o sujeito poderá continuar o exercício da leitura e da apropriação de textos da sua escolha ou por indicação de outras pessoas. Isso faz com que a prática da leitura se concretize em letramento literário ao assumir um caráter social e não apenas escolarizado:

[...] o letramento literário pode ser concebido simplesmente como uma das práticas sociais da escrita, aquela que se refere à literatura. Nesse caso, a adoção do conceito de letramento literário vem ao encontro da sempre reivindicada leitura efetiva dos textos literários como requisito sine qua non para o acesso concreto e frequente a obras literárias após ou durante o ensino escolar da literatura (PAULINO; COSSON, 2009, p. 67).

Considerando as definições dos autores acima mencionados, compreendemos que o sistema educacional brasileiro se encontra em dívida com os seus principais atores. Nas escolas, os professores, em especial os de Língua Portuguesa e Literatura, e os alunos são alvo de uma poderosa máquina político-editorial que insiste em oferecer um modelo de confecção do livro didático de literatura que já se antecipa aos problemas que poderiam surgir a partir da leitura, ainda que seja de um fragmento de texto literário, pois há respostas para tudo. Não há espaço para o contraditório:

[...] a escola enfatiza demasiadamente o conhecido e o mensurável, negando espaço para o estranho e o inusitado. É o que se observa, por exemplo, no modelo de bom aluno repetidor, cuja competência mais valorizada é dizer aquilo que o livro didático ou professor já disse: quanto mais literal a repetição, melhor [...] Quando surgem textos e práticas que permitiriam uma interação questionadora, poética, diferente, aberta a tendências dos educadores é pautar-se pela reação da maioria e negar as produções de sentido imprevistas no contexto da comunidade escolar de leitores e produtores de texto, caracterizada pela homogeneização (PAULINO; COSSON, 2009, p. 71).

A prática da leitura desenvolvida com apoio do livro didático, mais especificamente o livro didático de português, produz envolvimento do estudante com o mundo da escrita e da

literatura; contudo, a cultura escolar, apesar de investir pedagogicamente na leitura, ainda camufla a leitura literária no que ela tem de próprio. A leitura com vistas ao letramento literário torna-se indissociável do livro didático de português; afinal, esse compêndio ainda é o principal material de acesso – e para alguns o único – que os estudantes têm para as práticas de escrita e leitura. Nesse material, ainda há uma limitação de textos que são considerados complexos de entendimento, quando não os fragmentam ou sintetizam, tornando-os descontextualizados e afetando sua coesão. Portanto,

[...] as exclusões desobrigam esse tipo de LDP17 de tomar esses elementos

como objetos de ensino/aprendizagem, autorizam o professor a fazer o mesmo e colaboram perigosamente para a construção tanto de uma concepção equivocada de linguagem escrita, leitura e literatura, quanto na incerteza na leitura e da rarefação nos padrões de letramento (RANGEL, 2005, p. 140-141).

A escolarização da literatura nos livros didáticos com vistas ao letramento literário é também enfocada por Rildo Cosson (2009), que situa a escola a partir dos mecanismos que esta desenvolve, como construtora do letramento literário:

[...] devemos compreender que o letramento literário é uma prática social e, como tal, responsabilidade da escola. A questão a ser enfrentada não é se a escola deve ou não escolarizar a literatura, como bem nos alerta Magda Soares, mas sim como fazer essa escolarização sem descaracterizá-la, sem transformá-la em um simulacro de si mesma que mais nega do que confirma seu poder de humanização (COSSON, 2009, p. 23).

Rildo Cosson argumenta que é possível desenvolver letramento literário na escola, sendo dessa instituição, talvez, a grande responsabilidade de formar alunos leitores. O autor não se intimida ao afirmar que “estamos diante da falência do ensino da literatura” (COSSON, 2009, p. 23). A partir de sua experiência enquanto professor e pesquisador, ao se referir às incoerências que há no ensino de literatura para os dois níveis de educação – fundamental e médio –, Cosson afirma que “o ensino da literatura brasileira limita-se [...] a história da literatura brasileira, [...] quase como apenas uma cronologia literária, em uma sucessão dicotômica entre estilos de época, cânone e dados biográficos dos autores [...]” (COSSON, 2009, p. 21).

17 Livro Didático de Português.

O papel que a escola, o professor e o livro didático desempenham na formação do letramento literário do estudante deve ser minuciosamente entendido e distinguido. Ao seguir o manual didático, cabe ao professor não transformar as aulas em abordagens meramente informativas sobre cânone, história e características literárias de obras e escolas. Ele precisa ir além, de modo que o jovem aluno tenha, na sala de aula, nas leituras e atividades o incentivo à prática da leitura. Nesta perspectiva, Rildo Cosson acredita ser possível desenvolver o letramento literário na própria escola, com o uso de materiais didáticos, sem com isso abolir a autonomia do professor.

Graça Paulino (2004, p. 52), em “Formação de leitores: a questão dos cânones literários”, apresenta a investigação de Lígia Chiappini (1983) em que a pesquisadora critica “o autoritarismo de professores que veem a literatura como letra morta e contra a ritualização de uma aula que trabalha os textos literários como saberes instituídos e inquestionáveis”. A pesquisa de Chiappini, conforme Graça Paulino, possui o mais alto empenho para que o ensino da literatura no Brasil seja renovado e democrático, uma vez que há polarização entre cânones escolares e cânones literários. Desta forma, a autora busca assinalar que os cânones escolares constituem as técnicas para seleção de livros literários que sobressaem nas escolas. Ela define “esse processo de escolha de textos como o trabalho de educadores não-leitores literários, que lidam apenas profissionalmente com a literatura dita juvenil” (PAULINO, 2004, p. 54, grifo da autora).

Visto por este prisma, na seleção dos cânones literários já existe uma preferência que culmina em uma desfigurada escolarização dos cânones, a exemplo de “algumas seleções escolares de Machado de Assis. Se é preciso que o ‘grande escritor’ esteja presente na escola, publicam-se antologias que atendam às definições escolares de gêneros” (PAULINO, 2004, p. 54, grifo da autora). Do mesmo modo, ainda sobressai a ideia de que textos mais complexos são difíceis de serem assimilados pelo jovem estudante. A questão é que os fragmentos de textos literários ou textos didatizados têm objetivos voltados para a escola e a forma como isso corre incide para uma escolarização da leitura literária errônea, equivocada:

Pensando especificamente na leitura em contexto escolar, não podemos perder de vista que os textos que circulam em sala de aula, à exceção daqueles produzidos especificamente para esse contexto – os didáticos, por exemplo – são escolarizados. Isso quer dizer que são retirados de sua esfera de produção/circulação/recepção de origem (a literatura, por exemplo) e repostos em outra situação de produção, em uma esfera que tem fim específico de ensino de um objeto escolar, seja um conhecimento, seja uma capacidade leitora, seja uma prática letrada (JURADO; ROJO, 2009, p. 45).