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5.6. Análise e interpretação dos dados

5.6.1. Estabelecimento das categorias

Após as observações e registro das aulas de Literatura ministradas nas escolas selecionadas e as entrevistas com os alunos e professores envolvidos na pesquisa, passamos à etapa da construção das categorias de análise, pois chegava o momento de transformar os dados primários (documentos escolares, registro das observações e entrevistas) em dados secundários. Assim, as concepções das instituições escolares e de seus representantes sobre o processo de educação literária mediado pelo livro didático foram elaboradas a partir das seguintes categorias de análise: 1 – Apropriação; 2 – Representação. Tais categorias foram extraídas do referencial teórico construído a partir do pensamento de Roger Chartier, identificado como História Cultural. A representação é definida como o lugar (o mundo social), a posição e os interesses de quem ocupa determinado espaço:

As representações do mundo social [...] embora aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem os utiliza (CHARTIER, 1988, p. 17).

As “verdades” legitimadoras do livro didático e legitimadas pelos discursos escolares seriam, desse modo, garantidoras de uma forma escolar e representariam o discurso de um grupo social, o qual forjaria uma “universalização” de um ensino de leitura literária a ser disseminado nas instituições escolares de ensino médio, validando uma educação literária com base em um estereótipo do que seria literatura.

Outro conceito norteador na História Cultural, a Apropriação, é assim definido por Chartier (1988, p. 27):

A apropriação, tal como a entendemos, tem por objectivo uma história social das interpretações, remetidas para as suas determinações fundamentais (que são sociais, institucionais, culturais) e inscritas nas práticas específicas que as produzem. Conceder deste modo atenção às condições e aos processos, que muito concretamente, determinam as operações de construção do sentido (na relação de leitura, mas em muitas outras também) é reconhecer, contra a antiga história intelectual, que as inteligências não são desencarnadas, e, contra as correntes de pensamento que postulam o universal, que as categorias aparentemente mais invariáveis devem ser construídas na descontinuidade das trajectórias históricas.

Relacionamos o conceito de Apropriação com o de práticas de leitura, por entender que eles estão associados ao encontro entre o “mundo do texto” (o que é possível de apropriação por parte de leitores) e o “mundo do leitor” (que se apropria a partir de práticas de leitura)21:

Reconstruir em suas dimensões históricas um tal processo exige, em primeiro lugar, considerar que suas significações dependem das formas e das circunstâncias por meio das quais os textos são recebidos e apropriados por seus leitores (ou ouvintes). Estes últimos nunca são confrontados com textos abstratos, ideais, desligados de qualquer materialidade: eles manipulam objetos, ouvem palavras cujas modalidades governam a leitura (ou a escuta) e, ao fazê-lo, comandam a possível compreensão do texto. Contra uma definição puramente semântica do texto [...] é preciso considerar que as formas produzem sentido quando mudam os suportes que o propõem à leitura. Toda história das práticas de leitura é, portanto, necessariamente, uma história dos objetos escritos e das palavras leitoras (CAVALLO; CHARTIER, 1998, p. 6).

A aplicabilidade deste conceito e sua associação com o conceito de Apropriação se realizaria a partir das considerações sobre a leitura. Trata-se de uma “prática encarnada por gestos, espaços e hábitos” (CAVALLO; CHARTIER, 1998, p. 6). A partir de tal conscientização seria possível “identificar as disposições específicas que distinguem as comunidades de leitores, as tradições de leitura, as maneiras de ler” (CAVALLO; CHARTIER, 1998, p. 6):

Todos aqueles que podem ler os textos não os lêem da mesma forma e, em cada período, é grande a distância entre os grandes letrados e os menos hábeis dos leitores. Contrastes, igualmente, entre normas e convenções de leitura que definem, para cada comunidade de leitores, usos legítimos do livro, maneiras de ler, instrumentos e processos de interpretação. Contrastes, enfim, entre as expectativas e os interesses muito diversificados que os diferentes grupos de leitores investem na prática de leitura. Dessas determinações que comandam as práticas, dependem as maneiras pelas quais os textos podem ser lidos, e lidos de formas diferentes por leitores que não partilham as mesmas técnicas intelectuais, que não mantêm uma mesma relação com o escrito, que não atribuem nem a mesma significação nem o mesmo valor a um gesto aparentemente idêntico: ler um texto (CAVALLO; CHARTIER, 1998, p. 6-7).

Após as definições das categorias de análise, apresentamos a justificativa da sua aplicabilidade no tratamento dos dados encontrados na investigação: A Representação auxilia a conhecer o contexto das escolas pesquisadas a partir dos discursos legitimadores, tanto

21 Paul Ricouer, 1985

daqueles formatados no livro didático e nos documentos oficiais das instituições, quanto nos “discursos” percebidos através das observações e das entrevistas realizadas. Da Apropriação, destacamos a necessidade de saber como os alunos e os professores se apropriam dos textos literários que lhes são oportunizados na sala de aula ou fora dela. Do mesmo modo se dá a aplicabilidade das práticas de leitura, no sentido de saber quais as práticas adotadas por professores e alunos para se apropriar de um texto. Daí a relação dessas categorias de análise com a nossa pesquisa, a partir da identificação de um “grupo escolar” que partilha das mesmas práticas de leitura (instituídas a partir de um discurso legitimador) para se apropriar dos textos literários.

A seleção das categorias acima identificadas serviu também para que pudéssemos nos situar, isto é, compreender qual a responsabilidade em relação ao tratamento dos dados coletados nesta investigação; afinal estamos lidando com objetos pertencentes a um grupo social. Definir as referidas categorias nos obrigou a não apenas conhecer a teoria que embasa esta pesquisa, mas também a relacioná-la ao que foi pesquisado:

As percepções do social não são de forma alguma discursos neutros: produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar um projecto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas [...]. As lutas de representações têm tanta importância como as lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção do mundo social, os valores que são os seus, e o seu domínio (CHARTIER, 1988, p. 17).

No entanto, é preciso ressaltar que, por se tratar de pesquisa etnográfica, estávamos cientes de que outras categorias poderiam surgir durante o processo investigativo, e daí as categorias aqui apresentadas, com base no referencial teórico construído, pudessem sofrer ajustes como exclusão, substituição ou acréscimo de novas categorias.

Para embasar a análise dos dados coletados na investigação, utilizamos a técnica de análise de conteúdo, definida por Laurence Bardin (2011, p 115) como “um conjunto de instrumentos metodológicos cada vez mais sutis em constante aperfeiçoamento, que se aplicam a ‘discursos’ (conteúdos e continentes) extremamente diversificados”:

A análise de conteúdo é um conjunto de técnicas de análise das comunicações. Não se trata de um instrumento, mas de um leque de apetrechos; ou com maior rigor, será um único instrumento, mas marcado por uma grande disparidade de formas e adaptável a um campo de aplicação muito vasto: as comunicações (BARDIN, 2011, p. 37).

Dentre as técnicas constantes da análise de conteúdo, selecionamos a “análise de conteúdo e a análise documental” como norteadoras desta etapa da investigação. A primeira por ter como objeto final, segundo Bardin (2011, p. 52), a “manipulação de mensagens (conteúdo e expressão desse documento) para evidenciar os indicadores que permitam inferir sobre uma outra realidade que não a da mensagem”. A segunda por ter como objetivo a “representação condensada da informação, para consulta e armazenamento”.

Para tanto, definimos dentre as unidades de análise (Registro e Contexto) aquelas que mais se adequaram à nossa investigação: Da Unidade de Registro, escolhemos o “Tema” (aplicado às entrevistas e aos registros das observações) descrito como uma [...] asserção sobre determinado assunto. Pode ser uma simples sentença (sujeito e predicado), um conjunto delas ou um parágrafo (FRANCO, 2005, p. 39).

Também aplicamos as unidades de contexto definidas como

[...] o ‘pano de fundo’ que imprime significado às unidades de análise. Podem ser obtidas mediante o recurso a dados que explicitem a caracterização dos informantes, suas condições de subsistência, a especificidade de suas inserções em grupos sociais diversificados: na família de origem, no mercado de trabalho, em Instituições consagradas e reconhecidas [...] (FRANCO, 2005, p. 43).

O “pano de fundo”, como unidade de contexto, auxiliou a interpretação das informações obtidas através da coleta de dados, considerando o contexto dos participantes desta pesquisa. Assim, os espaços escolares foram visitados e observados, as aulas foram observadas e os registros destas devidamente realizados, assim como as entrevistas. Todos esses instrumentos tiveram por base, nesse sentido, nossa preocupação em relacionar todos os eventos coletados ao espaço social dos envolvidos.