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A atividade de planejamento requer sustentação técnica rigorosa, sem a qual não é possível a sua adequada realização. Não obstante a técnica não seja a solução para tudo, não é possível planejar sem modelos, processos, técnicas, profissionais de diversas áreas, instrumentos claros e fundamentados no método científico. Planejamento demanda suporte estrutural, sob pena de burocratização, com o preenchimento de quadros e formulários sem justificativa teórica e sem procedimentos técnicos fundamentados. O que é pior, e comum em tempos

249 Ricardo Lobo Torres, ao tratar do orçamento participativo apresenta as vantagens: “a) fortalece a cidadania ativa, traço básico da moderna democracia deliberativa; b) permite as escolhas comunitárias de obras e serviços de acordo com critérios que muitas vezes escapam aos órgãos de representação; c) torna visível para o cidadão o cálculo do custo\benefício” na entrega de prestações públicas. E as dificuldades: “a) pode enfraquecer a representação política; b) sujeita-se à manipulação pelos indivíduos que disponham de mais tempo ou gosto pelo trabalho comunitário; c) exige da comunidade formação técnica compatível com a análise de propostas orçamentárias, nem sempre possível; d) carece do cálculo global e da apreciação macroeconômica das necessidades do município ou do Estado”. (TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional financeiro e tributário: o orçamento na Constituição. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 104. v. V).

250 MEDAUAR, Odete. O direito administrativo em evolução. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 233-234.

eletrônicos informatizados, a prática de “copiar-colar” modelos de planos alheios, elaborados com fins semelhantes, mas com diagnósticos diferentes, sem os ajustes necessários, e isso quando é possível ajustá-los. É um atuar que nega o planejar por completo.

Para exercer atividade de planejamento não basta competência, como plexo de atribuições de determinada pessoa ou órgão de direito público; é necessário, também, ter capacidade estrutural de planejamento. O exercício de toda e qualquer competência, na função administrativa, pressupõe capacidade, em termos de recursos humanos; é por essa razão que se realizam concursos públicos rigorosos de provas e títulos, para admitir no serviço público pessoas capacitadas e qualificadas. Para efeito de planejamento, falamos de capacidade interna, integrante da estrutura burocrática do Poder Público, para o exercício da função administrativa, e não de capacidade externa, de ser parte em relação processual, ou, ainda, de assumir direitos e obrigações.

A estrutura de planejamento demanda: (i) recursos humanos, com profissionais de áreas variadas, conforme a matéria do plano, como engenheiros, contadores, médicos, nutricionistas, sanitaristas, geólogos, topógrafos ou agrimensores, economistas, advogados ou procuradores, médicos veterinários, técnicos em informática, profissionais do magistério, etc.; (ii) recursos físicos, com local e material adequados, compreendendo os mais diversos, desde papel, computadores, acesso à internet, veículos, equipamentos, para coleta e análise de informações; e (iii) recursos econômico-financeiros, para cobrir os gastos necessários, etc.

Aqui reside o maior problema da falta de planejamento administrativo: a inexistência de estrutura para planejar. Segundo levantamento do IBGE, publicado com base no censo de 2000,251 o Pacto Federativo brasileiro possui 5.560 municípios, dos quais 73,3% possuem menos de vinte mil habitantes; somente 4,1% deles possuem mais de cem mil. O fato é que a maioria esmagadora das municipalidades com até vinte mil habitantes, que só sobrevivem, com raras

251 INDICADORES sociais municipais: uma análise dos resultados da amostra do Censo Demográfico 2000 –

Brasil e Grandes Regiões. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, Rio de Janeiro, 2004.

Disponível em:

<http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2000/indicadores_sociais/ism2000.pdf>. Acesso em: 10 out. 2009.

exceções, de repasses financeiros externos, não possui, nos seus quadros permanentes de pessoal, um único engenheiro civil e, quando existe, este profissional, remunerado, em média, com valor que varia entre um salário mínimo e meio e três salários, é desmotivado e despreparado, mal conseguindo analisar e aprovar projetos edilícios apresentados por particulares. Municípios não têm, em sua grande maioria, um topógrafo ou agrimensor e, menos ainda, os aparelhos para estudo e análise de terrenos para a fase de diagnóstico dos planos de construção. Os municípios com cem mil habitantes não contam, em sua maioria, com um órgão de engenharia adequado para planejar. Estes dados reais demonstram bem a inexistência de estrutura de planejamento.

Esta é, também, a situação real de alguns Estados-membros. Fábio Konder Comparato, logo após a promulgação da Constituição de 1988, já alertava sobre a “incoerência organizacional” na criação de novos Estados, ao afirmar que os três Estados criados – Tocantins, Roraima e Amapá – e “mais oito outros, num total de onze”, têm receitas próprias “muito inferiores ao montante das transferências de recursos fiscais que lhes são feitas pela União”. Segundo informa, no Estado do Tocantins, 22% da receita é própria e 78% provêm de recursos federais; Roraima, na proporção de 13% para 87%; no Amapá o percentual é de 11% de receita própria para 89% de recursos federais; e, no Acre, de 10% para 90%. Diante desse quadro, conclui com a pergunta: “Faz algum sentido sustentar-se a autonomia política dessas unidades federativas, incapazes de atender, com recursos próprios, à suas despesas correntes?”252

A nossa função administrativa é focada exageradamente nas áreas contábil e jurídica, passando, as demais, despercebidas. O Direito Administrativo aparece sempre como pedra de tropeço, principalmente para os constitucionalistas, que também não apresentam soluções; isto é, como o ramo jurídico que emperra, ou como se ouve às vezes, “aranhol”. É absolutamente natural que as maiores dificuldades surjam no exercício da função administrativa e, por consequência, no Direito Administrativo, que cuida das normas e princípios do fazer, do atuar e concretizar as decisões políticas, pois, entre o falar e o fazer, há um abismo. As

252 COMPARATO, Fábio Konder. A organização constitucional da função planejadora. In: TRINDADE,

Antônio Augusto Cançado et al. Desenvolvimento econômico e intervenção do Estado na ordem constitucional: estudos jurídicos em homenagem ao Professor Washington Peluso Albino de Souza. Porto Alegre: Safe, 1995. p. 84.

maiores dificuldades surgem na fase de concretização. Gilberto Bercovici adverte que é “a atuação da máquina administrativa uma das principais condicionantes do sucesso ou fracasso do planejamento em todos os níveis”.253

Há uma tragédia obviamente anunciada (sem exageros), na transferência de recursos da União e Estados aos municípios, para construção de obras ou realização de serviços, exatamente por falta de estrutura de planejamento. Os convênios celebrados são precedidos de “planos de trabalho” (art. 116, Lei n. 8.666/93), que se limitam ao preenchimento de “X”, sem debates, sem estudos e pesquisas, em formulários pré-prontos, o que, como já dissemos, não é atividade de planejamento. Repassar um milhão de reais ou mais para um município de cinco mil habitantes, que não tem um único engenheiro civil no seu quadro permanente de pessoal, é propiciar desvio de dinheiro público e construção deficitária de obra pública. Todo e qualquer ente público que não possua estrutura de planejamento não tem como planejar e seus atos acarretam desvio, desperdícios e gasto inadequado de dinheiro público. Irregularidades e ilícitos de toda ordem são aí cometidos.

É ilusório pensar que tais entes da Federação podem solucionar a questão, contratando com terceiros a elaboração de planos, pois lhes falta pessoal capacitado para as respectivas avaliação e fiscalização, que ficam ao sabor dos desejos e caprichos de terceiros. Estes acabam por dar a última palavra nos planos que elaboram. Basta aferir que o planejamento orçamentário dos pequenos e médios municípios é elaborado, em larga medida, por empresas que prestam serviços contábeis informatizados, que “preparam” os projetos das leis de meio – PPA, LDO e LOA –, pré-prontos, fora da sede administrativa, sem nunca discutir com o pessoal da Administração Municipal, e o fazem de forma padronizada, para vários municípios, que acabam por ter planos idênticos, mas com realidades diversas. As Câmaras, por sua vez, não sabem analisar tais projetos de lei e muito menos apresentar emendas. Estes fatos evidenciam a falta de estrutura de planejamento.

E não é só. A atividade de planejamento não se esgota com o término da obra, por ser ação contínua, permanente e sistemática. A obra é instrumental de

253 BERCOVICI, Gilberto. Desigualdades regionais, Estado e Constituição. São Paulo: Max Limonad, 2003.

serviço ou utilidade pública, que devem ser mantidos.254 É inútil a construção de um hospital ou uma creche que jamais poderão ser mantidos por pequenos municípios. O planejamento, se elaborado, vai demonstrar isso.

Durante o processo de prestação de contas dessas transferências, os órgãos de fiscalização, muito bem estruturados e remunerados, chegam à conclusão da tragédia obviamente anunciada: “os Municípios não têm estrutura de planejamento”. Nunca tiveram e não vão ter, porque não têm condições financeiras para manter, em seus quadros, profissionais capacitados e bem remunerados, nem para possuir equipamentos modernos e adequados para o exercício da atividade de planejamento. O Programa Nacional de Administração Fiscal dos Estados (PNAFE), que tem a finalidade de definir estratégias de modernização fiscal para os Estados brasileiros, apresentou relatório em que aponta a falta de “estrutura mínima para um ambiente de planejamento sistematizado e articulado”, com as demais “esferas de organização administrativa”, concluindo que há “baixa capacidade e pouca experiência dos órgãos públicos em planejamento”, que se perdeu a “prática de definir objetivos, estabelecer metas e medidas de desempenho”, e que o “planejamento não era uma atividade de rotina” dos órgãos públicos; e, ainda, que é deficiente a “política de recursos humanos”, com “falta de estruturação de carreiras específicas” e “de recursos de tecnologia da informação”. Encerra dizendo que este quadro factual “permanece até hoje em grande parte dos Estados brasileiros e em quase totalidade dos Municípios”.255

O Direito Administrativo, atualmente, apresenta tendência de sempre focar o deslocamento de competência, ou de pretender resolver tudo por força de sanção, como se tipificar condutas, como crime ou improbidade administrativa, resolvesse a falta de estrutura de planejamento. No atual momento histórico, não há governante que não saia do governo sem carregar inúmeros processos judiciais de toda ordem, principalmente, prefeitos de municípios pequenos e médios. Os agentes públicos vivem hoje, no Poder Público, uma situação de “corruptofobia” que, no dizer de Carmem Lúcia Antunes Rocha, “leva à presunção de que todas as pessoas e, em especial, todos os agentes públicos são não apenas desonestos, mas culpados”, em

254 Sobre a distinção em serviço público e obra pública, por todos v. GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. O serviço público e a Constituição Brasileira de 1988. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 129-132.

255 PROGRAMA Nacional de Administração Fiscal dos Estados – PNAFE. Porto Alegre, RS. Disponível em:

que não existem “colegas de atividades, mas cúmplices de desonestidade na Administração Pública”.256

A falta de estrutura de planejamento e do próprio exercício desta atividade, que está condicionado àquela, causa males imensamente maiores do que os desvios de conduta ética, que acabam por encontrar terreno propício na ausência de estrutura. Mesmo que o agente público queira e seja honesto, sem estrutura de planejamento isso não é possível, pois não tem meios para prestar bons serviços públicos e evitar desvios. Tira-se um governante e substitui-se por outro, mas a situação permanece a mesma, não se altera, porque o problema é estrutural. Gastamos “rios amazônicos de tinta” para tratar do acudimento de atos administrativos viciados e dos mecanismos de controle, mas não tratamos da atividade de planejamento. Há um verdadeiro endeusamento dos institutos da licitação e do concurso, mas estes, sem planejamento prévio, não passam de mera formalidade, de cumprimento aparente dos comandos constitucionais.

A Constituição Federal dá sinais de melhora da estrutura de planejamento, ao prever a manutenção, pela União, Estados e Distrito Federal, de escolas de governo, para a formação e o aperfeiçoamento dos servidores públicos, impondo a participação nos cursos como requisito de promoção na carreira (art. 39, § 2º, CF, acrescentado pela EC n. 19/98).

Institui, ainda, regime de colaboração dos sistemas de ensino, cabendo, à União, exercer, em matéria educacional, função redistributiva e supletiva, visando a garantir equalização de oportunidades educacionais e “padrão mínimo de qualidade do ensino mediante assistência técnica e financeira” aos demais entes da Federação (art. 211, § 1º, CF), bem como cooperação técnica e financeira da União e dos Estados com os municípios, em programas de educação infantil e de ensino fundamental (art. 30, VI) e nos serviços de atendimento à saúde da população (art. 30, VII).

Por fim, cria as figuras dos consórcios públicos e dos convênios de cooperação entre entes federados, para a gestão associada de serviços públicos e a “transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal e bens essenciais à

256 ROCHA, Cármem Lúcia Antunes. Princípios constitucionais da Administração Pública. Belo Horizonte:

continuidade dos serviços transferidos” (art. 241, CF, com redação dada pela EC n. 19/98).

Para disciplinar este último dispositivo constitucional, foi promulgada a Lei n. 11.107/2005, que dispõe sobre normas gerais de contratação de consórcios públicos, regulamentada pelo Decreto Federal n. 6.017/2007. Este prevê a gestão associada da atividade de planejamento (art. 2º, IX), que chega a definir como “as atividades atinentes à identificação, qualificação, quantificação, organização e orientação de todas as ações, públicas e privadas, por meio das quais um serviço público deve ser prestado ou colocado à disposição de forma adequada” (art. 2º, X). Busca, assim, união de forças para criar estrutura de planejamento entre os integrantes do consórcio ou convênio.257