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3 POESIA E HIPOCRISIA

6 DISTORÇÕES E CONTRASTES ENTRE IGUALDADE E DIFERENÇA

6.1 PARADIGMAS, PADRÕES, MODELOS, DOGMAS E AFINS

6.1.1 Fundamentos teóricos e práticos

Uma primeira distorção e contraste entre igualdade e diferença é saber o porquê de haver paradigmas, e a quem interessa a imposição de um pensamento, uma conduta, um padrão, um modelo, e até mesmo um dogma. Esta necessidade e busca por parte de alguns em impor paradigmas humanos, sociais e econômicos é atroz. A busca por verdades universais e paradigmas predeterminados impede o desenvolvimento espontâneo e inesperado de novas ideias, a saber:

A expressão ‘novos paradigmas’ constitui uma maneira sintética e conveniente de aludir a mudanças que tem experimentado a teoria e a práticas científicas nos últimos vinte anos. Segundo a visão dos paradigmas anteriores, a ciência podia conduzir à certeza, ao previsível. Impulsionou, assim, a busca por marcos universais unificadores, regularidades, visões inclusivas, sem espaço para os desenvolvimentos espontâneos, inesperados. Tudo o que ocorreu, devia ser em princípio, explicável em ternos de leis gerais e imutáveis. Nosso próprio conhecimento era um reflexo da realidade preexistente. A lógica deste tipo de representação é a história da desaparição progressiva do autor/observador científico. Esta desaparição tornou-se tão completa que permitiu a representação do mundo que surge hoje, aparentemente progressiva e sem sujeito. Desde tal ponto de vista, o curso dos acontecimentos nada tem q ver com nossa participação neles.361 362 (Tradução livre).

360 SANTOS, Boaventura de Sousa Santos. Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na

transição paradigmática. In:______. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2000. v. 1. p. 61.

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SCHNITMAN, Dora Fried. (Coord.). Nuevos paradigmas en la resolución de conflictos. Perspectivas e prácticas. Argentina: Juan Granica, 2000. p. 28.

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Na acepção proposta por ALAN TOURRAINE: “Um paradigma não é apenas um instrumento nas mãos da ordem dominante, mas também a construção de defesas, críticas e movimentos de libertação.”363364 (Tradução livre). Ele conceitua paradigma, afirmando que:

Todo paradigma é uma forma particular de apelação a uma figura ou outra que eu denomino por sujeito e que é a afirmação de formas mutáveis, da liberdade e da capacidade dos seres humanos para criar e transformar-se individualmente e coletivamente. A subjetivação, ou seja, a criação do sujeito, nunca pode ser confundida com a sujeição do indivíduo e da categoria. [...] A ideia de paradigma dá lugar à luz, tanto quanto à sombra. Si se pode consagrar todo discurso para monitorar e punir, o paradigma valora tanto a liberdade como a alienação, tanto os direitos humanos como a obsessão pelo dinheiro, poder e identidade.365366

(Tradução livre).

Tudo que seja objeto de preocupação dos Direitos Humanos não pode ser revestido de paradigmas ou modelos, pelo próprio caráter da sua universalidade.

Não é fácil saber a quem interessa a imposição de paradigmas ou standard, mas sabemos que no mundo Ocidental, eles existem e são impostos. O comércio, o mercantilismo e o próprio capitalismo enquanto um modelo e padrão de comportamento desejam homogeneizar os pensamentos, as condutas, o comportamento dos seres humanos e não há interesse que a diversidade seja vista e ressaltada positivamente.

362

Transcrição do texto original: La expresión ‘nuevos paradigmas’ constituye una manera sintética y

conveniente de aludir a cambios que han experimentado la teoría y la practica científicas en los últimos veinte años. Según la visión de los paradigmas anteriores, la ciencia podía conducir a la certeza, a lo predecible. Se impulso, por ello, la búsqueda de marcos universales unificadores, regularidades, visiones inclusivas, sin espacio para los desarrollos espontáneos inesperados. Todo lo que ocurría debía, en principio, ser explicable en términos de leyes generales e inmutables. Nuestro propio conocimiento era un reflejo de la realidad preexistente. La lógica de este tipo de representación es la desaparición progresiva del autor/observador científico. Esta desaparición devino tan completa que permitió la representación del mundo que surge hoy, aparentemente progresiva y sin sujeto. Desde tal punto de mira, el curso de los acontecimientos nada tiene que ver nuestra participación en ellos.

363 TOURAINE, Alain. Un nuevo paradigma: para compreender el mundo de hoy. Tradução Agustín López

Tobajas. Buenos Aires: Paidós, 2006. p. 17.

364

Transcrição do texto original: Un paradigma no es sólo un instrumento en las manos del orden

dominante, sino igualmente la construcción de defensas, criticas y movimientos de liberación.

365 TOURAINE, Alain. op cit., loc cit.

366 Transcrição do texto original: Todo paradigma es una forma particular de apelación a una figura u otra

de lo que yo denomino el sujeto y que es la afirmación, de formas cambiantes, de la libertad y de la capacidad de los seres humanos para crearse y transformarse individual y colectivamente. La

subjetivación, es decir la creación del sujeto, no puede nunca confundirse con la sujeción del individuo y

la categoría. […] La idea de paradigma deja lugar a la luz tanto como la sombra. Si se puede consagrar todo discurso a vigilar y a castigar, el paradigma valora tanto la libertad como la alienación, tanto los derechos humanos como la obsesión por el dinero, el poder y la identidad.

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Não podemos pensar na mudança de paradigmas constante que de tempos em tempos e a depender de inúmeras situações ambientais, econômicas, políticas e sociais, se renovem.

A história demonstra que sempre que há um novo conflito367, seja de qual espécie: político, jurídico ou social, o primeiro pensamento é na mudança do paradigma ou na desconstrução do pensamento que deu causa ao problema, mas quando estamos diante da igualdade enquanto um valor, esta não deve realmente ser questionada porque todos os seres humanos têm igual valor, enquanto seres que são não importando as diferenças, distinções, desigualdades em qualquer aspecto que seja. Esta igualdade-valor e a igual dignidade dos seres humanos são um verdadeiro dogma inquestionável. Já o seu princípio, suas nuances e espécies é que sofreram ao longo dos tempos, distorções de sentido para privilegiar interesses de poucos.

Um dogma pode transpor o tempo e resistir às mudanças sociais? As religiões, por exemplo, perderiam seus fieis em razão disso? Temos visto que sim. É por esta e outras reflexões que no campo do Direito, habilitar dogmas através das normas jurídicas ou até mesmo dos princípios é gerar não só problemas de interpretação, mas esvaziar o sistema normativo de seu próprio conteúdo, pois estaríamos diante de uma norma que ao longo do tempo perderia seus fieis e, portanto ensejaria a confecção de uma nova norma-dogma para readaptar o sistema se é que poderíamos continuar chamando o Direito como um sistema de normas que ordenam a sociedade e que a representa.

Até mesmo nas religiões que possuem elementos que positivam seus dogmas em escrituras, apresentam problemas quando transpõem gerações de fiéis e enfrentam a

realidade que dia a dia se transforma. Existem dogmas, mas há quem os questionem. Essa necessidade constante de categorizar pessoas, classificar, também contribui

negativamente para construção de paradigmas sociais com o sentido do “bom” ou “ruim”, de forma a gerar um pertencimento forçado e ilusório dos indivíduos em um determinado grupo.

Porque precisamos o tempo todo dividir, classificar todos os seres em categorias, classes? Toda vez que fazemos isso, distorcemos o sistema protetivo, pois a certeza da

367 Sobre a perspectiva de novos paradigmas diante da resolução de conflitos, Cf. SCHNITMAN, Dora Fried.

(Coord.). Nuevos paradigmas en la resolución de conflictos. Perspectivas e prácticas. Argentina: Juan Granica, 2000.

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exclusão ao se incorporar uns e excluir outros de determinada categoria, é o que gera os standard, os paradigmas que tanto conforto dá às normas positivadas.

Padronizar e impor comportamentos também retira a escolha e o respeito às características e peculiaridades dos seres humanos, tanto como seres em si ou em grupos. ALAIN SUPIOT sobre a imposição de um pensamento universal e uniformização de crenças:

Mas ao fazer assim o indivíduo o alfa e o ômega do pensamento jurídico, esquece-se a única certeza que o estudo do Direito pode trazer: não há identidade sem limites, e quem não encontrar seus limites em si os encontrará no exterior de si. Pensar a europeização ou a mundialização como processos de apagamento das diferenças e de uniformização das crenças é preparar-se para dias futuros mortíferos. Julgar universais

suas categorias de pensamento e pretender impô-las ao mundo é o

caminho mais seguro que conduz ao desastre.368 (Grifo nosso).

ARISTÓTELES é quem se ocupou em pensar sobre as categorias e dar nomenclaturas possíveis para cada classificação com a finalidade de criar um raciocínio lógico perfeito através dos silogismos, o que para nós, não é esta a forma adequada quando diante de valores como a igualdade ou a busca pelo entendimento do seja a diferença e seu correto antônimo. O pensamento aristotélico, nestas temáticas de igualdade-valor, não deve ser usado quando falamos do ser humano como ser em si, com suas peculiaridades e diferenças, senão cairíamos no erro do pensamento da exclusão, pois quem não pertencesse a esta ou àquela categoria ou classificação estaria fora de um determinado sistema social ou jurídico, o que seria extremamente danoso.

Categorizar e classificar indivíduos distorce o sistema social e jurídico, principalmente se pensarmos na igualdade enquanto um valor para todos os seres humanos, e seria irreal concluir que seja válida qualquer classificação. Esta gera a ideia de haver uma hierarquia entre os seres humanos, como tais. A imposição de paradigmas e standard é que faz isso. Não podemos cair neste erro e, portanto a imposição destes cria uma escala comparativa que leva à classificação de seres por determinados critérios e à exclusão também quando fora do que for definida como a “melhor posição na hierarquia entre os seres”.

Justifica-se o pensamento e uso de categorias e classificações, quando diante do sistema de grupos tanto sociais como culturais, em prol de construção de políticas

368

SUPIOT, Alain. Prólogo XII. In: ______. Homo juridicus: ensaio sobre a função antropológica do Direito. Tradução Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 12.

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específicas a um determinado segmento da sociedade, considerado minoria ou não, em luta por direitos.

Prospectar o futuro, mas resolver os problemas presentes parece não ser a principal preocupação legislativa, não somente do sistema brasileiro, mas de outros ordenamentos estrangeiros. No campo do Direito interno ou estrangeiro, não podemos transformar princípios jurídicos e normas em mandamentos religiosos e em verdadeiros dogmas. Esta é a realidade das interpretações hipócritas e dissimuladas para a manipulação das ideias embutidas no núcleo dos princípios e normas fundamentais que distorcem o sistema jurídico e social, tal como no princípio da igualdade, descrito no caput art. 5° da CF/88, e seguintes, justamente porque a efetivação e aplicação do direito descrito são complexas e dificultosas. Há preceitos jurídicos, que são vistos como “sagrados e divinos” e que nem mesmo podem ser questionados.

Quando tratamos da temática dos paradigmas, dogmas e modelos estamos diante de outro conceito que na sociedade atual, tem sido muito relevante em psicologia social e que nos importa em relação ao estudo das igualdades e diferenças entre os seres humanos: os estereótipos que são “as imagens cristalizadas que se costuma aplicar a um grupo humano (‘os americanos são individualistas’, ‘os franceses são ranzinzas’; as enfermeiras são dedicadas’).”369 Até a década de 1970, os estudiosos do tema, tratavam mais das temáticas quanto ao preconceito e menos em relação aos estereótipos. Essa alteração no uso e emprego de terminologias implicou em mudança de orientação teórica, pois já não se julga o valor de verdade do estereótipo e o seu conceito é mais neutro e abrangente, enquanto “a noção de preconceito supõe uma crença falsa e mal informada.”370

Surge a questão: “A realidade é una ou múltipla? Pessoal ou impessoal? Está fora ou dentro, próxima ou distante, é transcendente ou imanente?”371 Somente através dos diversos tipos de religiões é que cada uma daria uma resposta diferente às essas perguntas, porém em um ponto de vista geral teriam pontos similares entre elas. Diante disso, pensar no que seja a realidade e o que ela efetivamente representa parece ser mais algo transcendental do que jurídico e, é por isso que o Direito tem tanta dificuldade de entender a dita realidade para traduzi-la em princípios e normas. Contudo, impõe dogmas que são

369 DORTIER, Jean-François. Dicionário de ciências humanas. Rev. e coord. da Tradução Márcia Valeria

Martinez de Aguiar. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. p. 181.

370 Ibid., loc, cit. 371

COOGAN, Michael D. (Coord.) Religiões: história, tradições e fundamentos das principais crenças religiosas. São Paulo: Publifolha. Tradução Graça Sales, 2007. p. 8.

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típicos de um caráter divino só capaz de ser aceito através do plano das religiões. Não podemos transformar o Direito em algo sacro, pois se pensarmos assim teremos o primeiro entrave para afastar a poesia normativa de um “poema normativo” com métrica latentemente ruim em sua escrita e em algo que possa efetivamente ser a necessidade social que foi positivada, já que o positivismo jurídico é o que impera como teoria do direito no atual momento.

A própria concepção teórica sobre modelo, é aplicada em diversas áreas das ciências humanas com várias acepções. Na economia (modelos de mercado, por exemplo), na psicologia (modelos de memória), na geografia (modelo de espaço urbano), na história (modelo de sociedade feudal), na sociologia (em conceitos de tipo-ideal e modelo de decisão), utilizam esta conceituação. Como um conceito válido para modelo372, temos:

É para a realidade o que um mapa é para a paisagem real. Do ponto de vista descritivo, ele apresenta através de um esquema simplificado os traços marcantes de uma realidade eliminando os detalhes ‘inúteis’. Mas ele vai mais longe, já que possui uma função explicativa ao mostrar as relações que unem os elementos de um sistema.373

Devemos tentar abolir esses conceitos pré-formatados, pois não sabemos em qual momento foram impostos como paradigmas, dogmas e modelos os quais geram estereótipos e rótulos, do que seja certo e errado, bom ou ruim. Atribuir e buscar padrões enseja problemas no entendimento sobre a igualdade e a diferença incitando sentido de exclusão e discriminação naquilo que não se enquadrar em categorias e classificações, já que estas distorcem as relações sociais e o entendimento jurídico-legal sobre o tema.