• Nenhum resultado encontrado

3 POESIA E HIPOCRISIA

3.2.4 Hipocrisia jurídica ou hipocrisia na le

Obedecer a uma lei por ser lei sem questioná-la é o mesmo que realizar o dever pelo dever. As hipocrisias existentes nas leis e na própria CF/88 brasileira são de várias ordens e sempre existiram ao longo do tempo. Questionar é preciso porque se acostumar com as diversas distorções sobre a igualdade de tratamento na lei, muitas vezes, apenas são formas de evitar mudanças nas estruturas tanto legislativas, judiciárias e executivas.

Pensar em dogmas jurídicos ou no seu sentido geral é temerário quando estamos diante da análise do contexto social e econômico de uma realidade que é vista hipocritamente, na tentativa de manter os paradigmas impostos para o sistema jurídico.

71 BARTHES, Roland. Crítica e verdade. Tradução Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Perspectiva, 2007.

(Debates; 24). p. 163.

72 Sabemos que as normas são gerais e abstratas para alcançar uma universalidade de sujeitos, porém

sabemos que na prática não é isso que acontece. No campo de estudo da igualdade, vemos isso claramente, pois não há efetividade de igualdade formal nem material. As normas e princípios, provenientes da igualdade, por toda constituição são sempre textos comoventes, mas que não mais podem ser lidos como um poema eivado de poesia, somente pelo fato de estarem ali positivados e gerando um suposto conforto social de que alguma forma há a presença de valores de Direitos Humanos, revestidos como normas de direitos fundamentais constitucionais.

51

Interessante notar que, foi possível encontrar um artigo de HANS KELSEN, inserido em uma obra que retrata a relação entre o Direito e a Psicanálise, destinado a um discurso na “Segunda Jornada Austríaca de Juristas”, mas que por uma indisposição de KELSEN, não foi possível haver o pronunciamento. Melhor assim, pois iniciar um discurso com a afirmação: “O Direito é um sistema de normas; e as normas constituem o sentido de atos de vontade dirigidos ao comportamento dos outros.”7374(Tradução livre). É um raciocínio por demais simplista ao querermos definir o Direito apenas como um sistema de normas. O Direito é muito mais que isso e precisa ser mais. Aos juristas cabem outros papeis, principalmente no campo de estudo da igualdade, reflexões e distorções. Sobre o papel do jurista, PIERRE BOURDIEU75 diz:

Os juristas são os guardiões hipócritas da hipocrisia coletiva, ou seja, da reverência ao universal. A reverência verbal concedida universalmente ao universal é uma força social extraordinária e, como todos sabem, os que conseguem ter de sua parte o universal dotam-se de uma força nada desprezível. Os juristas, enquanto guardiães hipócritas da crença no universal, detêm uma força social extremamente grande. Mas estão presos em seu próprio jogo, e constroem, com a ambição da universalidade, um espaço de possibilidades e, portanto, também de impossibilidades, que a eles mesmos impõem-se, queiram ou não, na medida em que pretendam permanecer no seio do campo jurídico.76

PIERRE BOURDIEU, ao citar uma expressão criada por ALAIN BANCAUD77: a piedosa hipocrisia jurídica analisa:

73

KELSEN, Hans. La función de la constitución. In: MARI, Enrique Eduardo. Derecho y psicoanálisis: teoría de las ficciones y función dogmatica. Buenos Aires: Hachette, [1987]. p. 81-88. p. 81. Na pesquisa realizada, jamais poderíamos esperar encontrar um textos de Kelsen em uma obra que se relacionasse à Psicanálise e Direito. No mínimo bastante curioso, pela teoria que propõe. Este artigo de Kelsen também foi publicado: Forum, año 11, n. 132, p. 583-586, 1964. Está também agregado nas Atas dessa Jornada citada, em Viena, 1964. v. 7. p. 67 e seq.

74 Transcrição do trecho original: El derecho es un sistema de normas; y las normas constituyen el sentido de

actos de voluntad dirigidos al comportamiento de otros.

75

Pierre Félix Bourdieu foi um sociólogo francês. Era filósofo de formação e foi docente na École de

Sociologie du Collège de France. Abordou em seus trabalhos a questão da dominação e é um dos autores

mais lidos, em todo o mundo, nos campos da antropologia e sociologia.

76 BOURDIEU, Pierre. Os juristas, guardiães da hipocrisia coletiva. Tradução Eduardo Emanoel

Dall’Agnol de Souza. Disponível em: <http://direitosociedadecultura.blogspot.com.br/2011/03/os-juristas- guardiaes-da-hipocrisia.html>. Acesso em: 15 set. 2015. Este texto corresponde à tradução para o português de uma transcrição vertida ao espanhol (a cargo de J.-R. Capella) de uma exposição oral de Pierre Bourdieu, publicada originalmente em francês. Cf. CHAZEL, François. COMMAILLE, Jacques. (Ed.) Normes juridiques et régulation sociale. Paris: LGDJ, 1991. Esta tradução em português, que igualmente à versão espanhola evita retirar o caráter coloquial da exposição, foi realizada por Eduardo Emanoel Dall’Agnol de Souza.

77 É advogado e sociólogo. Está ligado ao Institut d'histoire du temps présent - IHTP. Cf. BANCAUD, Alain.

In: INSTITUT D'HISTOIRE DU TEMPS PRESENT. Disponível em:

52

Alain Bancaud, então, comenta muito inteligentemente uma noção produzida pelos juristas: a de ‘piedosa hipocrisia’, ou seja, essa espécie de truque (cujo equivalente pode ser encontrado em todos os campos profissionais: é o oráculo que diz que o que ele diz foi a ele revelado por uma autoridade transcendente) através do qual o jurista dá por fundamentado a priori, dedutivamente, algo que está fundamentado a

posteriori, empiricamente. Essa piedosa hipocrisia é exatamente o

princípio do que chamo de capital simbólico, que consiste em se obter um reconhecimento baseado no desconhecimento. [...] Conheceis o dito segundo o qual ‘a hipocrisia é uma homenagem que o vício tributa à virtude’, e eu havia falado antes de piedosa hipocrisia. Caberia dizer que

a piedosa hipocrisia jurídica é uma homenagem que os interesses específicos dos juristas tributam à virtude jurídica; e em certo modo,

quando se está no jogo jurídico, não se pode transgredir o direito sem reforçá-lo.78 (Grifo nosso).

Precisamos afastar as hipocrisias jurídicas do nosso ordenamento jurídico. Tanto do Direito posto, através de leis e da própria Constituição, como do próprio sistema principiológico. No campo das normas, os problemas são graves e as soluções advindas dos Tribunais superiores, principalmente no campo de discussões da efetividade dos direitos fundamentais - desdobramentos da igualdade, portanto; são claramente resultados de decisões políticas e orçamentárias e por vezes, não técnicas, que sempre impedem a aplicação das normas de maneira a manter a igualdade formal, a igual oportunidade e condições para o acesso aos direitos por todos os indivíduos e grupos. ALAIN SUPIOT79 acerca das interpretações da igualdade, a saber:

[...] A marca do próprio capitalismo não é a perseguição da riqueza material, mas o domínio da quantidade que ele faz reinar sobre a diversidade dos homens e das coisas. A igualdade é objeto de

interpretações malucas quando, sob o domínio da quantidade, somos

levados a acreditar na abstração do numero independentemente da qualidade dos seres enumerados.80 (Grifo nosso).

78 BOURDIEU, Pierre. Os juristas, guardiães da hipocrisia coletiva. Tradução Eduardo Emanoel

Dall’Agnol de Souza. Disponível em: <http://direitosociedadecultura.blogspot.com.br/2011/03/os-juristas- guardiaes-da-hipocrisia.html>. Acesso em: 15 set. 2015. Este texto corresponde à tradução para o português de uma transcrição vertida ao espanhol (a cargo de J.-R. Capella) de uma exposição oral de Pierre Bourdieu, publicada originalmente em francês. Cf. CHAZEL, François. COMMAILLE, Jacques. (Ed.) Normes juridiques et régulation sociale. Paris: LGDJ. 1991. Esta tradução em português, que igualmente à versão espanhola evita retirar o caráter coloquial da exposição, foi realizada por Eduardo Emanoel Dall’Agnol de Souza.

79 É professor e jurista francês. Ele foi eleito para Collège de France na cadeira: État et sociais

mondialisation: analisar juridique des solidarités”. Cf. Alain Supiot. Disponível em: <http://www.college-de-france.fr/site/alain-supiot/>.

80

PRÓLOGO. In: SUPIOT, Alain. Homo juridicus: ensaio sobre a função antropológica do Direito. Tradução Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 28.

53

A principal consideração neste tópico é afirmar: existem hipocrisias jurídicas e legislativas. Não podemos negá-las. No estudo da igualdade e das diferenças isso aparece claramente tanto nas decisões judiciais, quanto nas próprias normas e leis positivadas.

A igualdade deve pedir menos hipocrisia na formulação e análise das suas normas; as diferenças pedem “olhos” e reconhecimento à beleza da diversidade humana.

54

4 IGUALDADE

“Vocês riem de mim porque sou diferente Eu rio de vocês porque são todos iguais.”

Bob Marley81

O ocidente e o oriente analisam a igualdade conceitualmente de maneiras diversas, principalmente após a Guerra Fria, pois a relação entre igualdade e liberdade em vários momentos históricos, foi de sobreposição de um para com o outro e esta alternância histórica demonstra que a liberdade e a igualdade não são conceitos puros e predeterminados. Sempre foram usados de acordo com a valoração e a interpretação manipulada por fatores de poder, força, batalhas e guerras.

A igualdade pode ser pensada de muitas maneiras. A primeira delas é a igualdade em relação à desigualdade; a segunda relação está em oposição à diferença e a terceira relação está na identidade. Essas três relações são essenciais e formam uma tríade analítica sobre o entendimento da igualdade enquanto um conceito.

Um grande questionamento que se faz é se há ou não uma igualdade natural. LUIZ EDUARDO SOARES acerca da igualdade natural:

Em outras palavras, saber que todos são iguais por natureza não ajuda muito. Até porque para muita gente, em diferentes momentos da história, em diferentes sociedades, muito mais importante do que a igualdade natural são as diferenças de gênero, de cor, de idade, de classe social, de descendência familiar, etc. Alegar igualdade natural só é relevante quando já se parte do consenso de que as diferenças sociais devem ser reduzidas, eliminadas ou, pelo menos, contrabalançadas por princípios, leis, valores, direitos e deveres igualitários. Falar em igualdade natural

não é, portanto, o ponto de partida, como se suporia, mas ao contrário, é o ponto de chegada: só tem lugar quando há algum

acordo, na sociedade, de que as diferenças são injustas.82 (Grifo

nosso).

Sabemos que a igualdade no viés dos traços comuns entre todos os seres humanos é o que seria a igualdade natural, no nosso entender. Os traços que nos diferenciam e

81

Robert Nesta Marley foi um cantor, guitarrista e compositor jamaicano, e o mais conhecido músico de reggae de todos os tempos, famoso por popularizar o gênero.

82 SOARES, Luiz Eduardo. Algumas palavras sobre direitos humanos e diversidade cultural. In: ALENCAR,

Chico (Org.). Direitos mais humanos. Rio de Janeiro: Garamond, 2002. p. 67-79. p. 71. Trata-se de um livro bastante peculiar por ser uma coletânea de textos de diversos autores como o de Luiz Eduardo Soares, aqui citado.

55

distinguem, pelos contextos em que vivemos, veremos que são as nossas características e peculiaridades que fazem com exista a diversidade, enquanto um conceito deve se coadunar com a chamada igualdade natural, tal como definiu LUIZ EDUARDO SOARES. Não podemos afirmar que haja um ponto de partida ou chegada acerca do que denominou por igualdade natural, mas sabemos que a verdadeira igualdade de todos os seres humanos é a dos seus traços comuns. E sobre esta não podemos questionar. Os traços comuns são a base da dignidade universal de todos os seres humanos, independente das suas diferenças e peculiaridades singulares ou de sua identidade individual. A dignidade humana é que deve ser universal porque esta não enxerga diferenças ou distinções, com base em nenhum critério. Os conceitos de igualdade ou diferença são conceitos relativos e temporais, já a dignidade não.

A primeira das igualdades defendidas historicamente é a igualdade perante Deus, o que poderíamos chamar de igualdade religiosa, diante do que é afirmado nos livros sagrados que “todos somos filhos de Deus.” A segunda, é a já conhecida igualdade perante a lei, e a terceira é a igualdade na lei. Existem diversas classificações para a igualdade a depender do ordenamento jurídico de qual Estado ou de qual autor estudamos. Veremos algumas nos tópicos a seguir. ALAIN SUPIOT acerca da igualdade:

Enquanto na maior parte das outras civilizações o homem se vê como parte de um Todo que o envolve e o ultrapassa, que o precedeu e sobreviverá a ele, nossa cultura jurídica nos conduz, ao contrário, a ver o homem como a partícula elementar de toda sociedade humana, como um indivíduo nos dois sentidos, qualitativo e quantitativo, desse termo. No sentido qualitativo, o indivíduo é, à imagem do Deus dos monoteístas, um ser único, incomparável a qualquer outro, sendo para si mesmo, o seu próprio fim. No plano quantitativo, é um ser indivisível e estável. Ser idêntico a si mesmo e a todos os outros é a unidade de conta por excelência.83 (Grifo do autor).

Continua o pensamento, afirmando que:

[...] Não poderá deitar raízes duradouras se esta igualdade for entendida no modo puramente quantitativo. Toda dificuldade das sociedades modernas está justamente em dever pensar e viver a igualdade sem negar as diferenças. Isso se aplica tanto às relações entre homens e mulheres

83

SUPIOT, Alain. Homo juridicus: ensaio sobre a função antropológica do Direito. Tradução Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 17.

56

como entre homens ou mulheres de nacionalidade, de costumes, de culturas, de religiões ou de gerações diferentes.84

Tendo em vista estas reflexões iniciais, nos tópicos deste capítulo veremos as nuances da igualdade, suas distinções conceituais e os desdobramentos jurídicos.