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O DIREITO E A IGUALDADE: CONTROVÉRSIAS SOBRE A POSITIVAÇÃO E O DISCURSO JURÍDICO

3 POESIA E HIPOCRISIA

4.3 O DIREITO E A IGUALDADE: CONTROVÉRSIAS SOBRE A POSITIVAÇÃO E O DISCURSO JURÍDICO

Uma grande preocupação no ambiente jurídico é a normatização de tudo que seja possível positivar. A busca incessante por um fundamento, tal como faz o positivismo

243 TAWNEY, Richard Henry. La igualdad. Versión española: Francisco Giner de los Ríos. México: Fondo

de cultura económica, 1945. p. 61-62.

244 Transcrição do texto original: Es el hecho de que, a pesar de la diversidad de sus caracteres y

capacidades individuales, los hombres poseen en cuanto tales una cualidad que es digna de cultivarse, y que una comunidad es más adecuada para lograr todo lo posible de esa cualidad si la toma en cuenta al planear su organización económica y sus instituciones sociales, si da poca importancia a diferencias de riquezas, cuna y posición social, y establece sobre firmes cimientos instituciones que se enfrenten a comunes necesidades y sean fuente de civilización y de goces comunes. Las diferencias individuales que tanto se subrayan, hubieran dicho, sobrevivirán siempre y no han de ser lamentadas sino celebradas. Pero su existencia no es razón para no tratar de establecer la mayor medida posible de igualdad respecto al medio, la circunstancia y las oportunidades. Por el contrario, es una razón más para redoblar nuestros esfuerzos hacia su estabelecimiento, con el fin de garantizar que estas diversidades en las prendas personales puedan llegar a ser utilizadas.

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jurídico, não pode se basear em critérios matemáticos, pois na área jurídica e da própria moral, não há como criar teoremas.

A expressão grafada na bandeira brasileira “Ordem e Progresso” retrata um dos lemas do positivismo de AUGUSTO COMTE245, sendo esta uma expressão formulada pelo próprio. É claro entender que COMTE se referia à ideia de embasar uma filosofia positiva para restabelecer a ordem diante de uma sociedade capitalista e industrial, refletindo o entusiasmo burguês a partir da segunda metade do século XIX.

A hipocrisia jurídica ou a mera argumentação retórica é o que se observa quando o desejo de quem aplica e mantém a ideia fiel ao positivismo jurídico que não dá margem para pensar e nem refletir sobre os problemas e situações reais. Esta questão não existe somente em relação ao estudo da igualdade e a forma que o Direito positivado, tal como está, é aplicado, pois basta aplicar a norma já que para os conclamados positivistas não existe só em relação à forma como o Direito positivado trata a igualdade, mas de um modo geral.

Definir “não iguais” e “iguais” em tempos de pós-modernidade246 ou de avanços tecnológicos, é complexo e por vezes pode parecer impossível. Hoje não somente o acesso a bens e critérios econômicos distingue, mas o acesso ao conhecimento e à tecnologia faz com que os supostamente “melhores” apareçam. Não se trata de seleção natural, já que os fatores exógenos e os valores culturais locais influenciam na percepção do que seja “igual” e “diferente”.

A compreensão do Direito por princípios e do Direito por regras deve ser elucidada neste momento. Entender o contexto da igualdade enquanto princípio ou enquanto regra sempre foi um tema controverso a depender do ponto de vista de cada autor que discute a temática, mas que aqui merecem algumas reflexões e considerações para as discussões propostas.

O nosso Direito atual é composto de princípios e regras. A esta observação importa também distinguir a Constituição em relação à lei, pois as normas legislativas são

245 Isidore Auguste Marie François Xavier Comte foi um filósofo francês, fundador da Sociologia e do

Positivismo, que trabalhou intensamente na criação de uma filosofia positiva. Cf. COMTE, Augusto.

Discurso sobre o espírito positivo. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Coleção Os Pensadores).

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O sentido aqui de Pós-modernidade, diz respeito à ruptura histórica com a Modernidade do Ocidente, identificada por Jean-François Lyotard. Na Pós-modernidade a marcha implacável em prol do progresso, se esgota. É nesta fase que podemos dizer que a relação entre desenvolvimento e progresso perde sua consistência, em relação ao que significava na Modernidade. Cf. TOURAINE, Alain. Crítica da

modernidade. Petrópolis: Vozes, 1994. HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade:

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prevalentemente regras, enquanto que normas constitucionais sobre direitos e sobre a justiça são prevalentemente princípios.247

Infelizmente as soluções aos problemas da sociedade, não se encontram no incompreensível vernáculo das leis e constituições, mas sim em outras áreas do saber. Sabemos que a ideia do Direito em positivar as normas é trazer ordem às condutas sociais em prol da Justiça. Contudo, a positivação de regras e princípios traz apenas o “desejo” ou o ideal pela ordem social pacifica e harmônica. Por isso que as inúmeras interpretações aos textos legais e constitucionais só confundem e nada elucidam sobre o que realmente deveria ser facilmente compreendido por qualquer pessoa.

Talvez os ideais narrados em forma de normas e princípios das constituições e das leis, no Brasil, tenham sido inspirados pela obra de LEWIS CARROLL248, Alice no País das Maravilhas.249 Parece descabida a comparação, mas veremos que não. A pequena Alice usa, na obra, palavras longas, que muitas vezes não compreende, mas que ela utiliza por acreditar serem importantes, assim como faz o legislador brasileiro ao elencar certos preceitos no texto constitucional. A história de LEWIS CARROLL também se passa numa sociedade vitoriana idealizada, porém, cheia de mistérios. É esta sociedade que muitos normatizadores pensam ainda fazer parte, pois somente a enxergam para elaborarem seus textos com o fito de gerar uma paz social. Para celebrarmos tal paz social precisamos primeiro conhecer bem os motivos que levaram à guerra. Na citada obra há um lado obscuro e sombrio, difícil de entender e interpretar e que possui vários enigmas. Alguma semelhança com a obscuridade e dificuldade em entender os princípios e normas constitucionais? Certamente que sim. Com tantos enigmas nessa história de LEWIS CARROLL e considerando toda fábula como um texto aberto, ele pode representar aquilo que quisermos que represente ou da forma que queiramos interpretá-lo, porque em um conto de fadas tudo que ali está pode significar coisas diferentes em contextos diferentes, é por isso que sobrevivem ao longo dos tempos. Os problemas da realidade social não são

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ZAGREBELSKY. Gustavo. El derecho dúctil: ley, derechos, justicia. Tradução Marina Gascón. 5. ed. Madrid: Editorial Trotta, 2003. p. 109. O autor é de nacionalidade italiana e professor da Universidade de Turin. Entre outras obras publicadas temos: “A justiça Constitucional” (1977), “Direito Constitucional” (1984) e “Sociedade-Estado-Constituição” (1988). A obra aqui citada tem o título original: “Il Diritto

mitte. Legge diritti giustizia.” A palavra italiana mitte, poderia ser traduzida no português como dúctil,

ponderável, flexível, ou alguma outra expressão com esta ideia.

248 Foi um romancista, contista, fabulista, poeta, desenhista, fotógrafo, matemático e reverendo anglicano

britânico. Lecionava matemática no Christ College, em Oxford. Interessante que o mencionado autor foi um matemático, e que muitas polêmicas envolvem seu nome. Lewis Carroll era seu pseudônimo, já que seu nome verdadeiro é Charles Dogson.

249 A obra foi escrita em 1862. Há uma comparação, que a princípio não seria obvia, mas com um tom de

ironia, entre o Direito com usas normas e o texto deste citado autor. Cf. LEWIS Carroll: Os mistérios e controvérsias por trás de seu “Alice no país das maravilhas”. Disponível em: <http://falacultura.com/alice- lewis-carroll/>. Acesso em: 29 jul. 2015.

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fábulas. Alguns intérpretes constitucionais querem, no decorrer do tempo, considerar que o texto constitucional é aberto às livres interpretações que forem mais convenientes a alguns, em determinados momentos históricos.

Sabemos que há mandamentos constitucionais e legais abertos, mas quando falamos de Direitos Humanos traduzidos no plano interno, tal como a igualdade ou a liberdade, precisamos repensar o real sentido do que está sendo positivado e transformado em norma e se atenderá aos anseios e necessidades da sociedade assim como a manutenção da sua ordem.

Dependem, então, os Direitos Humanos da positivação na lei e nas constituições? Se estivermos discutindo um valor, por exemplo, como a igualdade entendemos que os Direitos Humanos não dependem de leis ou constituições, mas se discutimos um princípio que contenha um valor em seu núcleo, da mesma forma, a nosso ver, também não seria necessário estar positivado e sujeito a inúmeras interpretações à moda de cada intérprete. O que importa é o valor no núcleo da regra, norma ou princípio. A importância da positivação de alguns valores transformados em princípios é a segurança jurídica em determinados momentos históricos, como no caso do pós-guerra de 1945 com a elaboração da DUDH em 1948, e que seu conteúdo, de alguma forma foi incorporado e positivado internamente pelos Estados, através de leis ou em constituições. Não podemos acreditar que somente a positivação mantém a harmonia e ordem social. Há outros fatores que também influenciam. Como na ordem posta é o que temos, os princípios acabam por serem mais importantes que as normas, já que são mais facilmente manipuláveis pelos intérpretes.

“O conteúdo dos princípios constitutivos do ordenamento jurídico depende do contexto cultural de que fazem parte.”250251 (Tradução livre). No núcleo desses princípios estão importantes e valorosos conceitos, tais como a igualdade, a liberdade, a justiça, a solidariedade, a pessoa e a dignidade humana, dentre outros, porém esses princípios e valores devem ser controlados, de forma a evitar que não adquiram um caráter absoluto, pois seriam considerados como verdadeiros mandamentos tiranos. Evidente, portanto, que a ponderação ou a ductibilidade dos princípios ou como preferem alguns: a relativização

250 ZAGREBELSKY. Gustavo. El derecho dúctil: ley, derechos, justicia. Tradução Marina Gascón. 5. ed.

Madrid: Editorial Trotta, 2003. p. 124.

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Transcrição do texto original: El contenido de los principios constitutivos del ordenamiento jurídico

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dos princípios se difere das regras jurídicas e da ética, já que estes últimos se traduzem em outros conceitos.

Em uma sociedade pluralista, tanto os princípios como os valores podem ser alterados, modificados, relativizados em um determinado momento histórico e pelos mais variados motivos: econômicos, sociais e políticos. O que não há como mudar é a dignidade humana, pois é um traço comum a todos os seres humanos e um valor efetivamente universal.

Apesar de ser, clara e real, a alteração de princípios e valores, precisamos afastar qualquer ideia de um grande mercado de valores, em que tudo possa ser transacionado, desde que se possa precificar. Este é um cancro que deve ser expurgado de qualquer sociedade que deseja firmar-se como pluralista. Não há que falarmos em uma mercantilização de valores ou princípios jurídicos. O que vemos é uma grande bolsa de apostas deste “mercado de valores” que oscila no mundo jurídico, de tempos em tempos, a depender da conveniência política, econômica, ou por um simples interesse de um grupo que deseja sobrepor-se a outro, pelos mais variados motivos, por considerar-se superior e com alguma finalidade específica. A própria noção do Direito, inclina a ideia de obediência, mas uma obediência que muitas vezes é de um sobre outro, ou do mais forte sobre o mais fraco.

Sabemos que o Direito cria certas controvérsias morais, pois em sua positivação legal, prevê dispositivos antagônicos ao clamor social, ou aos preceitos morais de uma sociedade. Em alguns casos, gera perplexidade por parte de seus “súditos”, se entendermos o Direito como um sistema impositivo soberano de um determinado pensamento ou como um regulador jurídico de condutas sociais.

Todas essas questões merecem reflexões quando estamos diante de preceitos e valores de Direitos Humanos. A mera positivação não resolve e a própria história da humanidade nos aponta isso. Os valores mudam, a história acontece, as autoridades legitimadoras se reinventam e mesmo com o sistema de petrificação de determinados artigos constitucionais, quem os determina é o próprio homem, através de uma suposta vontade representativa de seus eleitores – o que nos parece incerto e inseguro, no caso do sistema jurídico brasileiro.

Se pudéssemos adotar para o Direito o mesmo caminho dado para confecção das leis da ciência, quais sejam: o método empírico, associando-o aos meios de observação

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para a criação dessas leis; seria o primeiro passo para as grandes transformações e reflexões aos anseios sociais. Se a ideia do Direito é reduzir, evitar ou reprimir conflitos sociais, a voz primeira a ser ouvida deve ser a de seus súditos252.

O Direito e as normas jurídicas ou princípios que se baseiem em probabilidade e estatística geram impropriedades técnicas, pois naturalmente excluem seres do sistema protetivo. Quando lemos muitas normas jurídicas positivadas, nos dá a impressão que foram criadas baseado-se em critérios de amostragem, através de probabilidade e estatística. Quando são criadas normas para os ditos iguais, por exemplo, é porque naturalmente partiram estas dos princípios por um critério de maioria ou minoria, ou em um critério de seleção e identificação de seres para enquadrá-los em categorias, tal como se refere ARISTÓTELES. O Direito e as normas positivas não podem ser determinados por probabilidade. Não podemos saber o que é provável e tentar prever todas as situações possíveis de gerar conflitos sociais.

Quando estamos diante do enquadramento de indivíduos em grupos, por exemplo, o primeiro pensamento é de quem será excluído. O excluído pode não se enquadrar em outros critérios de uma determinada categoria preestabelecida por probabilidade ou estatística. E sobre este excluído aparentemente do sistema jurídico, é que nossas observações devem ser feitas, pois se o Direito e a positivação se propõem a abarcar a todos, não pode excluir ninguém ao acesso a direitos, nem se valer de critérios de categorias impostas por autoridades ou por quem se determine como apto para tanto. É o que acontece quando o Direito tenta positivar o que é igual ou desigual, com mecanismos verticalizados e hierarquizados, ou seja, de cima para baixo e não observando primeiro a realidade social. Os critérios baseados em poder distorcem o sistema jurídico de positivação de normas e princípios. Este é um grande problema em relação à igualdade. Um grande momento que as hipocrisias despontam no tema.

Sempre há a busca, de tempos em tempos, de um novo paradigma jurídico, principalmente para a disciplina do constitucionalismo. Em matéria de Direitos Humanos e seus valores, é que precisamos pensar se queremos um novo paradigma – que obviamente é temporal, ou se precisamos rever aquilo que foi positivado e porque o Direito se presta ao sistema comparativo de um ordenamento com outro que não tem as mesmas bases internas. Podemos ver muito disso, quando no plano internacional. Não que desejemos o total afastamento das normas internacionais em detrimento do sistema interno de cada Estado.

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Aqui a discussão é outra. É pensar no porquê de o sistema positivo precisar tanto importar modelos que não se moldam no quebra cabeça positivado, legislado e valorativo internamente.

Quando estamos diante de Direitos Humanos, observar o regramento internacional é fundamental e necessário, mas discutir valores e princípios também é primordial. A dificuldade está neste último aspecto. O Direito não quer discutir valores que já foram importados. O que se tenta, a todo o momento, é adaptá-lo. E neste ponto é que o sistema se afasta da sua real intenção que é proteger, prevenir e coibir conflitos nas inter-relações sociais. Não há adaptação quando sistemas jurídicos diferentes foram baseados em paradigmas diferentes. Por isso que pensar sobre a existência desses paradigmas e comparações é uma importante reflexão: ou aceitando-os ou afastando-os em prol de um sistema único, talvez. Parece-nos que afastar os paradigmas e comparações seria a melhor medida a ser tomada, porém com as devidas observações e análises de sistemas e valores de cunho geral ou universal.

A análise dos princípios e das normas jurídicas, por vezes reveste-se de meros discursos jurídicos sem representar valores. O Direito como atualmente está, traz a ideia do discurso de um discurso (ou seja, ele narra de maneira reducionista e com um sentido meramente unívoco, quais seriam os valores básicos da cultura e narra como esta cultura deva ser realizada) e do discurso dentro de um discurso (ou seja, o Direito faz um discurso mais genérico do que o próprio discurso de que faz parte).253

Considerar estas questões da positivação em relação ao discurso jurídico, principalmente no que tange à igualdade, é fundamental para o que veremos nos tópicos e capítulos a seguir.