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Hipocrisia e não efetividade do Direito: crítica e poética

3 POESIA E HIPOCRISIA

3.2.3 Hipocrisia e não efetividade do Direito: crítica e poética

Não só nas relações interpessoais existe a hipocrisia nos comportamentos e na manifestação de opiniões. No Direito e na forma da elaboração das normas, princípios, regras, garantias, isto também está presente. As normas positivadas podem e muitas vezes, são lidas e interpretadas como se fossem poemas revestidos de poesia; mas também podem ser lidas e interpretadas como verdadeiras hipocrisias já que não encontramos efetividade e possibilidade de realização prática, principalmente quando falamos de direitos constitucionais fundamentais, provenientes do princípio da igualdade ou da própria igualdade enquanto um valor.

A filosofia e algumas reflexões sobre a Crítica e a Poética são relevantes para analisarmos algumas questões sobre a hipocrisia e sua relação com a não efetividade do próprio Direito.

O Direito positivo tal como está formatado atualmente, é o resultado da Poética ou da Crítica? Antes de responder a este questionamento é necessário traçar um paralelo entre a Poética e a Crítica. Sabemos que a Poética, na antiguidade, representou o ideal clássico, onde não havia distinção entre ficção e realidade e era apenas um discurso para regulamentar o futuro. Se pensarmos na Poética enquanto um conjunto de regras para escrever algo, poderíamos pensar que o Direito se baseia na tentativa de obter uma Poética própria, com suas regras, categorias, métodos e bases de linguagem e discurso. Pelo menos este é o modelo que se apresenta quando nos deparamos com os textos legais, através de suas normas e princípios. Ao mesmo tempo em que o Direito seria revestido pela Poética, poderia também se mesclar com a Crítica já que esta é feita com o olhar direcionado para o que existiu no passado. O Direito não acompanha e não traduz efetivamente o presente e nem tenta prospectar o futuro com caráter preventivo. Pelo menos não é o que testemunhamos, principalmente no ordenamento brasileiro.

É curioso que no movimento da Poética clássica, sendo considerada a “arte de escrever belamente”, quem a financiava e determinava seus critérios era quem detinha o poder, ou seja, os que compunham a Corte. Com o Direito parece acontecer o mesmo. Quem escreve e legisla o Direito posto, está com o poder que o povo o fez representar, mas que não reflete aos anseios deste. O Direito que deseja representar a Poética clássica, com métodos rasos de forma, e despidos de valores intrínsecos, é o verdadeiro Direito hipócrita

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que revela a verdade de quem o torna posto, mas não garante e nem efetiva oportunidades, condições e acesso “iguais”. ROLAND BARTHES68 acerca da crítica reflete:

Pois, se a crítica é apenas uma metalinguagem, isto quer dizer que sua tarefa não é absolutamente descobrir “verdades”, mas somente “validades”. Em si, uma linguagem não é verdadeira ou falsa, ela é válida ou não: válida, isto é, constituindo um sistema coerente de signos.69

ROLAND BARTHES ajuda a identificar, o que acontece quando queremos fazer uma crítica ao Direito posto, já que toda positivação ou codificação de normas, revestidas de signos, entendemos por linguagem, e, portanto literatura. Se a linguagem jurídica é literatura, podemos analisá-la com os critérios da Crítica, ou sob os aspectos da Poética. E assim, BARTHES conclui seu raciocínio:

[...] Essa espécie de decepção, de desapreensão do sentido explica por um lado que a obra literária tenha tanta força para fazer perguntas ao mundo (abalando os sentidos assegurados, que as crenças, as ideologias e o senso comum parecem guardar em seu poder), sem, entretanto nunca a elas responder (não há grande obra que seja “dogmática”) [...].70

Segue e conclui:

É com efeito ao reconhecer que ela mesma não é mais do que uma linguagem (ou mais exatamente uma metalinguagem) que a crítica pode ser, de modo contraditório, mas autêntico, ao mesmo tempo objetiva e subjetiva, histórica e existencial, totalitária e liberal. Pois, por um lado a linguagem que cada crítico escolhe falar não lhe desce do céu, ela é uma das algumas linguagens que sua época lhe propõe, ela é objetivamente o termo de um certo amadurecimento histórico do saber, das ideias, das paixões intelectuais, ela é uma necessidade; e por outro lado essa linguagem necessária é escolhida por todo crítico em função de uma certa organização existencial, como o exercício de uma função intelectual que lhe pertence particularmente, exercício no qual ele põe toda a sua “profundidade”, isto é, suas escolhas, seus prazeres, suas resistências, suas obsessões. Assim pode travar-se, no seio da obra crítica, o diálogo de duas histórias e de duas subjetividades, as do autor e as do crítico. Mas esse diálogo é egoisticamente todo desviado para o presente: a crítica não é uma “homenagem” à verdade do passado, ou a verdade do “outro”, ela é construção da inteligência de nosso tempo Não há regras ou códigos

68 Foi um escritor, sociólogo, crítico literário, semiólogo e filósofo francês.

69 BARTHES, Roland. Crítica e verdade. Tradução Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Perspectiva, 2007.

(Debates; 24). p. 161.

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para escrever romances ou tudo que se determine por literatura.71

(Grifo nosso).

Nessa última passagem das ideias de ROLAND BARTHES, fica claro que nega a Poética, com seus sistemas de códigos e regras para construção da linguagem. Desejamos o Direito escrito sem tantas fórmulas regras ou códigos na sua formulação de escrita, pois com tanto rebuscamento, iremos sempre depender de sistemas de interpretação complexos e difíceis; difíceis até para os que possuem as “técnicas” para tanto.

A Crítica enquanto um movimento que deseja contestar a estética perfeita almejada pela Poética é o que devemos buscar como alternativa à linguagem do Direito escrito, para entendermos seus símbolos e valores implícitos. A hipocrisia nasce na crítica pela crítica, vazia, que muitos estudiosos do Direito realizam sem apresentar alternativas eficientes ao que não é mais eficaz e nem efetivo. O Direito não precisa de tantas normas ou regras, mas, sim, em se preocupar mais em traduzir bem os valores.72 Portanto se entendermos o Direito como uma espécie de literatura, precisaremos refletir sobre não somente como interpretá-lo, mas como fazê-lo e realizá-lo enquanto norma revestida de valor.