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3 POESIA E HIPOCRISIA

4.2 A IGUALDADE E SEU PRINCÍPIO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO E CONSIDERAÇÕES NO DIREITO COMPARADO

4.2.3 Igualdade de oportunidades e igualdade de condições

Tradicionalmente quando falamos em igualdade de oportunidades, rapidamente é possível lembrar, na questão das discussões e estudos sobre a busca da igualdade de direitos entre homens e mulheres, porém não é só sobre este tipo de dualidade que a igualdade de oportunidades se refere e, portanto, merece uma investigação mais aprofundada para dirimir e entendermos os conflitos, dogmas e paradigmas existentes neste tema.

Não há liberdade sem igualdade e vice versa, mas a igualdade aqui entendida é a de oportunidades e acesso aos direitos e garantias que as leis e os diplomas internacionais recomendam. Igualdade como discurso utópico sem um olhar observador às diferenças sociais e econômicas não amenizam ou resolvem os problemas dos “não iguais” ou dos diferentes.

Neste contexto de Direitos Humanos, a igualdade abarca o significado de que as pessoas mesmo com suas diferenças e peculiaridades, têm igual valor. Cabe explicitar que:

Uma sociedade baseada nos direitos humanos é aquela em que as diferenças entre os indivíduos não querem dizer que fazem jus a direitos diferentes. Não se deve fazer qualquer ‘distinção’ entre pessoas com base em aspectos arbitrários de suas identidades. Em outras palavras, quando se tomam decisões que afetam os direitos das pessoas, não se deve fazer escolhas entre determinados grupos da sociedade, impedindo que alguns outros tenham as mesmas oportunidades que os demais. Deve haver

‘oportunidade igual’.224 (Grifo nosso).

224

POOLE. Hilary (Org.). Direitos humanos: referências essenciais. Tradução Fabio Larsson. São Paulo: EDUSP. 2007. (Série Direitos humanos, v. 3). p.107.

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Alguns autores entendem a igualdade de oportunidades, como um desdobramento da igualdade material ou substancial, justamente porque para eles a igualdade é associada ao sentido de justiça, principalmente no da justiça distributiva. A saber:

Por igualdade material, entendemos o equilíbrio de bens, situações econômicas e sociais. No entanto, mais especificamente, podemos dizer que a igualdade substancial tem sido entendida de diversos modos, entre eles os que se destacam fundamentalmente, são dois: a chamada

igualdade de oportunidades ou igualdade no ponto de partida e a

chamada igualdade de resultados ou igualdade no ponto de chegada.225 226 (Grifo nosso, tradução livre).

Para os defensores deste pensamento, a igualdade de oportunidades, por si só, não seria suficiente para gerar uma justa distribuição de poder e acesso a bens e às riquezas, por isso que é necessário haver a igualdade de resultados, complementando este conceito, não como um conceito nivelar, mas como uma forma de satisfação básica das necessidades primordiais de todos os seres humanos, justamente como forma de reduzir desigualdades sociais e econômicas.227 Portanto a igualdade de oportunidades estaria de acordo, em princípio, com a justiça distributiva, dando a cada um segundo sua capacidade, embora as limitações inerentes à igualdade de oportunidades, nem sempre dependem exclusivamente da capacidade individual, em determinados aspectos. Neste sentido, NORBERTO BOBBIO228 afirma que estariam vinculadas às doutrinas políticas liberais.229

Há ainda os que fazem uma distinção sobre igualdade de oportunidades e igualdade de acesso. Esta última pressupõe “[...] uma igualdade de oportunidades puramente formal e se corresponderia ao que os anglo-saxões denominam como teoria da meritocracia.”230 Há várias concepções sobre o mérito. Normalmente o mérito é associado com inteligência, ou habilidades e capacidades intelectuais e até mesmo às virtudes. LUIS

225 FERNANDEZ, Encarnación. Igualdad y derechos humanos. Madrid: Tecnos, 2003. p. 23.

226 Transcrição do texto original: [...] en efecto, por igualdad material suele entenderse [...] el equilibrio de

bienes y situaciones económicas y sociales. Ello no obstante, concretando mas, puede decirse que la igualdad sustancial ha sido entendida de muy diversos modos entre los que destacan fundamentalmente dos: la llamada <igualdad de oportunidades> o igualdad en el punto de partida y la denominada <igualdad de resultados> o igualdad en el punto de llegada.

227 FERNANDEZ, Encarnación. op.,cit., p. 23.

228

Foi um filósofo político, historiador do pensamento político, escritor e senador vitalício italiano. Defensor da democracia socialista liberal e do positivismo legal e crítico de Marx, do fascismo italiano, do Bolchevismo.

229 Cf. BOBBIO, Norberto. Eguaglianza ed igualitarismo. Rivista internazionale di Filosofia del Diritto,

Milano, p. 325-326, 1976.

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GARCÍA SAN MIGUEL 231 elenca duas concepções: concepção intelectualista e a voluntarista.232

A primeira é a conjunção do talento e do esforço em prol da obtenção de um resultado superior ao dos demais. Ainda se entende que o talento ainda dependa do aspecto de sorte, isto é “do nascimento e de certas influências do meio social e não do esforço; merece algum tipo de reconhecimento, sobretudo quando está relacionado ao trabalho.”233 234 Portanto os postos de trabalho devem ser ocupados pelos mais aptos a prestar o serviço aos demais, dando ensejo assim à produtividade social. A concepção voluntarista reside unicamente no esforço, ou seja, quem mais se esforçar mais deve receber, independente de resultados, pois estes dependeriam de sorte.235

Tanto no pensamento liberal clássico como no neoliberalismo atual, o princípio de igual acesso assegura que todos os indivíduos e todas as ocupações são acessíveis a todos, no aspecto formal, pois do ponto de vista jurídico, todos têm os mesmos direitos, de forma que poderiam ascender a variadas posições sociais, portanto.

Este pensamento do igual acesso, do ponto de vista neoliberal torna-se um modelo insuficiente, pois no plano da realidade sabemos que os direitos estão positivados para todos, mas nem todos, efetivamente, o alcançam. A vida em sociedade e a dificuldade tanto de acesso, quanto de oportunidades ou até mesmo de condições efetivas de cada indivíduo ou grupo, faz com que estes direitos não sejam usufruídos de igual forma por todos. Há inúmeros problemas sobre estabelecer a efetiva igualdade de oportunidades, por isso que as medidas de ações específicas e positivas em determinados casos, quando diante de minorias, grupos, são necessárias, principalmente para que esta disparidade e dificuldade no acesso sejam compensadas.

No discurso clássico de igualdade enquanto conceito há dois sentidos fundamentais: como princípio regulativo do princípio de cidadania (igualdade formal e abstrata) e como igualdade de condição (igualdade efetiva). O primeiro se centraliza no âmbito mais propriamente político; tem seu mais fiel reflexo nas instituições do Estado liberal democrático e sua prática jurídico-constitucional formal. Já o segundo, se concentra mais

231 Foi um jurista espanhol, professor de Filosofia do Direito, e famoso autor de publicações e pesquisas. Foi

também reitor da Faculdade de Direito da Universidade de Alcalá.

232 Neste sentido: GARCÍA SAN MIGUEL, Luis. Igualdad, mérito y necesidad. In: _____.El principio de

igualdad. Madrid: Dykinson - Universidad Alcalá de Henares, 2000

233 FERNANDEZ, Encarnación. Igualdad y derechos humanos. Madrid: Tecnos, 2003. p. 123.

234 Transcrição do texto original: [...] del nacimiento y de ciertas influencias del medio social y no del

esfuerzo, merece algún tipo de reconocimiento sobre todo cuando va unido al trabajo.

235

Estas duas concepções correspondem ao que Luis García San Miguel define. Para ele a melhor concepção de mérito é a voluntarista.

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no âmbito econômico e social e é muito mais voltado a uma crítica do formalismo do primeiro princípio, com mais enfoque à realidade empírica.236

Igualdade de oportunidades ou igualdade de condições? Qual delas deve ser a real preocupação do Direito e da vontade política e legislativa? Enquanto a igualdade de condições depende também de fatores externos ao Direito e à vontade política e legislativa, a igualdade de oportunidades é o que está embutido em parte do princípio da igualdade do art. 5º em seu conteúdo de Igualdade formal. Por isso que pode ser hipócrita a Constituição descrever uma igualdade a qual não gera igualdade de oportunidades nem de condições, naquilo que caiba ao legislador, já que a vontade política não é a única saída na criação dessas condições, mas talvez pudéssemos pensar que seja a propulsora.

ALEXIS DE TOCQUEVILLE237 analisou a sociedade democrática238 a concebendo-a não como um conceito puramente normativo e bem delineado, ou como um conjunto específico de instituições ou de estruturas sociais, mas como uma mentalidade ou estrutura de sentimento. “A ‘igualdade de condição’ representava a ausência de hierarquia de status constitutiva das sociedades aristocráticas, e, portanto era consistente com a existência de consideráveis diferenças de riqueza e renda.”239 (Grifo do autor).

As relações entre igualdade de condições e equilíbrio, sempre foram e serão desafios para as sociedades modernas, pois apesar da igualdade, considerada como um ideal, ser uma aspiração ideológica muito difundida, sabemos que o que tem predominado no debate atual é o fracasso justamente na tentativa dessa realização da igualdade como um ideal, e nem tanto as supostas consequências da igualdade de condições, tal como ALEXIS DE TOCQUEVILLE menciona em sua obra. A radicalização da igualdade como um ideal é que parece ser o pior problema, pois enquanto nos preocuparmos com o alcance dos ideais universais e não com o plano da realidade da existência de diferenças e saber como atingir o equilíbrio para a harmonia social e a correção das distorções ou consequências desse equilíbrio, viveremos na aspiração por poesia ao invés de querermos enxergar as

236

VALLESPÍN, Fernando. Igualdad y diferencia. In: REYES MATE, Manuel (Ed.). Pensar la igualdad y

la diferencia: una reflexión filosófica. Madrid: Fundación Argentaria, 1995. (Colección Igualdad, 2). p.

15-33. p. 16.

237 Alexis-Charles-Henri Clérel, visconde de Tocqueville, dito Alexis de Tocqueville foi um pensador

político, historiador e escritor francês. Tornou-se célebre por suas análises da Revolução Francesa.

238 Cf. TOCQUEVILLE, Alexis de. De la démocratie en Amérique I (1835). Paris: Les Éditions Gallimard.

1992. (Collection Bibliothèque de la Pléiade, 1). TOCQUEVILLE, Alexis de. De la démocratie en

Amérique II (1840). Paris: Les Éditions Gallimard, 1992. (Collection: Bibliothèque de la Pléiade, 1).

239

TOCQUEVILLE, Alexis (1992) citado por CALLINICOS, Alex. Igualdad: temas para el siglo XXI. Tradução Jesus Alborés. Madrid: Siglo veintiuno de España editores, 2003. p. 34.

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hipocrisias existentes até mesmo na oferta de oportunidades dadas pelo sistema jurídico- legal codificado.

Não podemos confundir igualdade de oportunidades e igualdade de condições. Igualdade de condições no sentido jurídico representa outro conceito diferente da proposição feita por ALEXIS DE TOCQUEVILLE e que aqui distinguimos.

A igualdade de condições, acesso, oportunidade tem em vista a expectativa de uma igualdade de resultados. Porém sabemos que o pensamento de um ideal de igualitarismo radical é utópico, pois cada vez que fosse alcançada uma determinada meta em termos de resultados, as diferenças apareceriam novamente. Outro aspecto também é o de que não há igualdade de recursos, porque esta não conduz há uma igualdade de resultados, pois não há como manter a mesma igualdade no tratamento em questões complexas e específicas se os seres humanos têm necessidades distintas.

No caráter geral, conjugar necessidades básicas e igualdade é um desafio. A igualdade de resultados, vista como uma vertente da igualdade material deve ter como finalidade a igual satisfação dessas necessidades básicas por todos, isto é, que seja garantida e efetivamente alcançado um nível de bem estar240 suficiente para o alcance e efetivação de outros direitos, sem pensar em critérios de mérito, esforço, capacidades, pois só assim seria possível almejar um ideal de justiça ou equilíbrio social não hipócrita.

Quando falamos em necessidades básicas, pensamos nos inúmeros conceitos de mínimos existenciais, presentes na doutrina e jurisprudência, diante do que é possível efetivar enquanto acesso ao próprio exercício de direitos. Fixar esse mínimo decente, mínimo absoluto, mínimo de justiça241

, ou qualquer outra nomenclatura que se queira dar, é difícil, pois conforme mencionamos, os anseios e desejos diante das necessidades básicas são distintos entre os seres humanos, pelas próprias diferenças que apresentam entre si. Acerca das necessidades comuns, RICHARD HENRY TAWNEY242 afirma:

240 Adela Cortina, fala em bem ser do cidadão, em contraposição ao sentido de bem estar que conhecemos.

Para ela o bem ser é o “mínimo inegociável de justiça.” Cf. CORTINA, Adela. Por una ética del

consumo: la ciudadanía del consumidor en un mundo global. Madrid: Taurus, 2002. p. 170.

241

Ibid., p. 173.

242 Nascido em Calcutá, na Índia, foi um historiador econômico, crítico social, e socialista cristão inglês; e

um proponente importante da educação de adultos. Em outra obra importante deste autor, The Acquisitive

Society de 1920 criticou o individualismo egoísta da sociedade moderna. Já na obra Equality de 1931 –

que aqui citamos a versão espanhola de 1945 -, defende uma sociedade igualitária. Faleceu em Londres, em 1962.

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O fato de que, apesar da diversidade de suas características e capacidades individuais, os homens enquanto tais, tem uma qualidade que é digna de cultivar-se e que uma comunidade é mais adequada para lograr todo o possível desta qualidade se a toma em conta ao planejar sua organização econômica e suas instituições sociais, se da pouca importância a diferenças de riqueza, nascimento e posição social e estabelece sobre firmes bases, instituições que se enfrentam a comuns necessidades e sejam fonte de civilização e de prazeres comuns. As diferenças

individuais que tanto se enfatizam, sobrevivem sempre e não tem de ser lamentadas, mas celebradas. Porém sua existência não é razão para não tratar de estabelecer a maior medida possível de igualdade em relação ao meio, as circunstâncias e as oportunidades. Pelo

contrário, é uma razão a mais para redobrar nossos esforços para seu estabelecimento, com o fim de garantir que estas diversidades nos predicados naturais possam chegar a ser utilizados.243 244 (Grifo nosso,

tradução livre).

Podemos notar com as observações e reflexões as quais ora descrevemos que a igualdade de oportunidades, acesso e de condições, levam a outras reflexões sobre o próprio sentido das necessidades dos seres humanos enquanto iguais ou diferentes e na forma como o Direito traduz estas igualdades que são verdadeiros instrumentos ao exercício de outros direitos, tal como veremos no tópico a seguir. Nesta seara, as hipocrisias jurídicas e o desrespeito às peculiaridades de grupos e indivíduos são um grande entrave ao próprio exercício da igual dignidade de todos os seres.

4.3 O DIREITO E A IGUALDADE: CONTROVÉRSIAS SOBRE A POSITIVAÇÃO E O