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3 POESIA E HIPOCRISIA

4.4 HIPOCRISIA NA IGUALDADE E SEUS DESDOBRAMENTOS LEGAIS

A igualdade enquanto tema e conceito, no pensamento humano, sempre teve diversas acepções. No século do Iluminismo, por exemplo, os conceitos de Liberdade e Igualdade ainda eram bastante controversos. Muitos filósofos iluministas tentaram dar um sentido à humanidade com os lemas da Revolução Francesa: Libertè, Egalitè, Fraternitè.

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Para melhor aprofundar essas questões sobre o que seja o discurso jurídico Cf. BROEKMAN, Jan M.

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Estes “criticavam o conceito de livre arbítrio pelo absurdo da escolha feita sem qualquer condição prévia. Seria um efeito sem causa.”254

Se nem mesmo, houve consenso entre os filósofos iluministas sobre os conceitos de liberdade e igualdade à época da Revolução Francesa, atualmente não poderíamos acreditar que houvesse. Não somos melhores para definir estes conceitos de maneira absoluta, pois as dificuldades são as mesmas de outrora.

Temos vários exemplos normativos de verdadeiras hipocrisias legislativas e até mesmo principiológicas. Não precisamos ir tão longe, mas tanto na Constituição, como no ordenamento jurídico brasileiro como um todo, encontramos normas criadas por legisladores que desejam alcançar a igualdade suprema, declarada na Constituição Federal de 1988, prevista no art. 5º, tanto em seu caráter formal como material, mas que em nada atende às necessidades e reclamações sociais, principalmente ao tolher as escolhas por parte dos indivíduos, ou grupos, e são mais uma tentativa de apresentar um princípio poético que é distorcido através de diversas interpretações à moda e de acordo com o interesse do seu intérprete, de maneira a “parecer” constitucional, porém, sem que o seja, no contexto da realidade.

O legislador sempre crê que realizou a igualdade em seus dois planos, pelo desejo implícito de tentar efetivar a igualdade enquanto valor, mas nem mesmo a realiza enquanto princípio, pois não dá aos iguais o que lhes cabe e nem dá aos desiguais a medida de suas desigualdades. Se o Direito opera através da norma, é a análise do que o Direito faz por meio dela que devemos pensar. A hipocrisia está aí.

Enquanto o Direito pensar como o olhar Kantiano sobre a metafísica de que não podemos conhecer as “coisas em si”, mas aquilo com que elas se parecem, será a grande distorção de qualquer sistema jurídico que deseja se realizar plenamente. Não podemos pensar de acordo com os costumes, pois estes nem sempre se traduzem em justiça ou moralidade e por vezes só reiteram comportamentos sociais sem sentido pela velha repetição de algo preestabelecido historicamente. É o caso, por exemplo, de determinados comportamentos discriminatórios negativos ou ensejadores de um preconceito advindos por empréstimo de um indivíduo para com outro e assim sucessivamente. Temos que refletir e entender bem qual metafísica da igualdade queremos, para não cairmos em um sentimento poético e puramente emocional.

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KAWAUCHE, Thomaz. Nem tão livres, nem tão iguais. Revista de História da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, ano 9. n. 104, p. 31-33, maio 2014. p. 31.

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Abaixo estão alguns exemplos em diversos seguimentos do Direito, em que a lei, traz à igualdade um caráter hipócrita, principalmente quanto à questão da igualdade de tratamento dado pela lei, e suas exceções, por vezes não menos hipócritas ou com aspecto de um idealismo poético de que a igualdade estabelecida pela lei trouxe conforto aos problemas de ordem prática da sociedade. Podemos denominar como hipocrisias na lei, ou hipocrisias jurídicas. Cremos que esta diferença vocabular não interfere no sentido prático ao que determinaremos nos tópicos abaixo enquanto estudo do tema em questão. Tal como bem definiu HERÁCLITO: "A lei é como uma cerca. Quando é forte, a gente passa por baixo. Quando é fraca, a gente passa por cima."255

Trataremos agora das questões da igualdade, o Direito Indígena e a suposta igualdade processual no Direito Civil e no Direito Penal com uma análise breve, sem o intuito de exaurir o tema, mais com o caráter exemplificativo.

I

Em relação aos povos indígenas, os quais têm sua cultura específica, costumes e regras de convivência e conduta sociais próprias, sabemos que mesmo com direitos garantidos tanto na CF/88 como nas leis específicas e até mesmo em tratados e convenções internacionais, ainda vemos o massacre, a intolerância, o desrespeito e a falta de efetividade dos direitos destinados a estes. A hipocrisia aqui está no fato de que claramente não se enxerga igualdade nem de tratamento, nem de oportunidades e nem a própria igualdade material torna-se efetiva quando falamos de questões indígenas no geral, como direitos fundamentais à saúde e educação.

Nem mesmo a CONVENÇÃO N° 169 DA ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO (OIT) (sobre povos indígenas e tribais) que defende o direito de escolha dos indígenas sobre suas vidas, costumes e tradições, bem como no direito à alteridade e diferença256, traz segurança e efetividade a esta suposta “igualdade formal” de direitos assegurados a estes povos com necessidades tão específicas, mas ao mesmo tempo com a falta de gozo de direitos que devem ser usufruídos por todos, indistintamente, independente

255 HERÁCLITO. Disponível em: <http://quemdisse.com.br/frase.asp?frase=49749#ixzz3rfE5D9k3>. Acesso

em: 10 abr. 2015.

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Cf. BARBOSA, Marco Antonio. Autodeterminação: direito à diferença. São Paulo: Plêiade; São Paulo Fapesp, 2001.

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de suas peculiaridades e necessidades particulares; como é o caso dos direitos e garantias fundamentais elencados na Constituição brasileira.

Os povos indígenas não têm o direito de ser quem são e nem o direito a serem diferentes257, diante do que encontramos atualmente no Direito positivo. Eles são o que os ditos “iguais” desejam que sejam na medida do olhar destes. É poético termos um dia especial do índio no Brasil – dia 19 de abril, dia este que deveria ser um dia de homenagens e valorização da sua cultura. Atualmente o que vemos, infelizmente, é um dia comemorado nos bancos escolares do ensino pré-escolar e fundamental, sem que haja um efetivo e real pensamento e reflexão sobre a questão dos povos indígenas que possuem necessidades especifícas e ao mesmo tempo iguais a quaisquer outros povos, tal como já nos referimos anteriormente, pois há traços comuns enquanto seres humanos que merecem a igual dignidade.

Os indígenas são um exemplo de como a lei ou a própria CF/88 pode ser tão poética e tão hipócrita, ao estipular que todos são iguais em direitos. Tanto na acepção formal ou material, os direitos e o devido respeito aos povos indígenas e sua cultura, em diversas localidades de nosso país, são falhos e em alguns casos inexistentes. Portanto estar positivado um direito, sem o exercício ou a possibilidade de efetivação é uma verdadeira hipocrisia jurídica.

II

Quando nos deparamos com o assunto da igualdade processual, os problemas e a hipocrisia legislativa são extensos e incalculáveis em proporções numéricas, que poderíamos exemplificar com vários casos. Sobre a igualdade de tratamento processual, ADA PELLEGRINI GRINOVER258 define:

A igualdade perante a lei é premissa para a afirmação da igualdade perante o juiz: da norma inscrita no art. 5º, caput, da Constituição, brota o

princípio da igualdade processual. As partes e os procuradores devem

257 Abordaremos com detalhes as considerações sobre o conceito e as reflexões sobre o Direito a ser

diferente, em tópico específico.

258

É uma jurista e professora ítalo-brasileira, formada pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo em 1958 e Procuradora do Estado de São Paulo aposentada.

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merecer tratamento igualitário, para que tenham as mesmas oportunidades de fazer valer em juízo as suas razões.259 (Grifo nosso).

Também no art. 125, I, do CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC) brasileiro, há a menção à igualdade de tratamento processual: “O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, competindo-lhe: I - assegurar às partes igualdade de tratamento [...];”260 O que é vago é justamente essa dimensão do que seja efetivamente “assegurar às partes igualdade de tratamento”. É uma expressão que gera muitas discussões na doutrina e jurisprudência e que aqui não é o objetivo esgotá-la, mas mencionar a existência.

A diferença de prazos processuais, descrita na lei, se apresenta como uma exceção à igualdade de tratamento processual, como é o caso do MINISTÉRIO PÚBLICO e da FAZENDA PÚBLICA, por exemplo, pois o art. 188 diz: “Computar-se-á em quádruplo o prazo para contestar e em dobro para recorrer quando a parte for a Fazenda Pública ou o Ministério Público.”261 JOSÉ AMILTON DA SILVA argumenta que:

As partes não litigam em igualdade de condições e o beneficio de prazo se justifica, na medida necessária ao estabelecimento da verdadeira isonomia. A Fazenda, em virtude da complexidade dos serviços estatais e da necessidade de formalidades burocráticas; o Mistério Público, por causa do desaparelhamento e distância das fontes de informação e de provas.262

O que gera perplexidade, é que a fundamentação para esta diferenciação está na própria burocracia judiciária da tramitação dos procedimentos internos dos fóruns brasileiros. É a realidade e o que temos, mas que não deveria se operar desta forma, pois é mais uma benesse em prol da morosidade da justiça, já que o sistema judiciário brasileiro encontra-se desestruturado nas mais diversas escalas de competências. Já sabemos que esta exceção legal, na prática foi uma forma de chancelar e dar validade a um sistema judiciário carente de funcionários, de boa estrutura física, de recursos financeiros, dentre outros fatores. Se este complexo sistema judiciário fosse alvo de uma reestruturação, não precisaríamos de exceções legais à igualdade de tratamento processual, pois esta não se

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CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Candido Rangel.

Teoria geral do processo. 20. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2004. p. 53.

260BRASIL. Código de Processo Civil. Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5869compilada.htm>. Acesso em: 10 set. 2015.

261

Ibid.

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justificaria. Para o momento, fica a sensação e até mesmo o costume de nem ser mais questionada esta exceção legal, pela descrença de que tudo sempre será assim: a morosidade judiciária, a falta de funcionários, etc. O conforto que esta exceção traz, leva à inércia e ao comodismo na tentativa e busca por mudanças em se restabelecer a igualdade de tratamento processual.

Há casos em que a intenção da lei positivada foi sábia, mas a efetividade é questionável, justamente pela nebulosidade da expressão que mencionamos acima. Apesar de saber que a igualdade processual é um importante princípio, a exceção baseada em critérios de diferenças e peculiaridades de grupos ou indivíduos, como é o caso dos idosos e portadores de doenças graves, é extremamente benéfica e necessária, em detrimento da exceção da igualdade processual prevista no citado art. 188, conforme refletimos acima. Como exemplo temos a inserção dos artigos 1.211-A, 1.211-B, 1.211-C, no CPC, redação dada pela LEI Nº 12.008, DE 2009, a saber:

Art. 1.211-A. Os procedimentos judiciais em que figure como parte ou interessado pessoa com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos, ou portadora de doença grave, terão prioridade de tramitação em todas as

instâncias.

Art. 1.211-B. A pessoa interessada na obtenção do benefício, juntando prova de sua condição, deverá requerê-lo à autoridade judiciária competente para decidir o feito, que determinará ao cartório do juízo as providências a serem cumpridas.

§ 1o Deferida a prioridade, os autos receberão identificação própria que evidencie o regime de tramitação prioritária.

Art. 1.211-C. Concedida a prioridade, essa não cessará com a morte do beneficiado, estendendo-se em favor do cônjuge supérstite, companheiro ou companheira, em união estável.

Notamos que a prioridade, portanto no caso de idosos acima de 60 anos ou portadores de doença grave, deve ser requerida e fica a critério da autoridade judiciária a sua concessão ou não. A questão do que seja determinado por “doença grave” também pode gerar controvérsias e assim nem sempre esse direito será efetivado, pois o sistema judiciário precário e moroso é o mesmo para todos e mesmo com esse possível beneficio legal, nem sempre será rápido, pois a própria lei já prevê a extensão do beneficio para cônjuge ou companheiro do idoso – ou seja, há prioridade, mas não há agilidade porque não há estrutura para atender o dispositivo legal e assim a hipocrisia legislativa aparece

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novamente. O direito foi positivado, mas não o enxergamos na maior parte dos casos do judiciário brasileiro.263

Outro exemplo está no PACTO DE SAN JOSE DA COSTA RICA em seu art., 8º, que prevê as garantias judiciais, diante dos Direitos Civis e Políticos, em seu Capítulo II, a saber:

1. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e