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CAPÍTULO 1. POR NOVOS MATERIAIS DIDÁTICOS QUE CONTEMPLEM OS MULTILETRAMENTOS

1.2 NOVAS ESTRATÉGIAS E ELABORAÇÃO DE MATERIAIS DIDÁTICOS

1.2.1 Gamificação na educação

O advento da cultura digital e das tecnologias digitais possibilitou que as experiências lúdicas reconfigurassem e potencializassem a noção tradicional de jogo. Logo, o ato de jogar, que anteriormente era restrito ao espaço, ao tempo e à participação presencial, foi expandido com o auxílio das multiplataformas. Hoje em dia, jogar está mais relacionado a ações como pensar, raciocinar, escolher, interpretar etc.

Por ser uma prática próxima da realidade dos alunos, as pesquisas acadêmicas sobre jogos, games e gamificação, aplicados ou não à educação, são cada vez mais frequentes e têm como objetivo analisar tópicos como: estímulo à criatividade, fator de imersão, engajamento, potencial sociocultural, benefícios cognitivos, motivação, entre outros.

O que também acontece no contexto educacional é o estímulo à produção de jogos e games voltados para conteúdos, com a promessa de que os jogos

educativos são desafiadores como os games de entretenimento e, ao mesmo tempo, eficazes no processo de aprendizagem:

O potencial dos jogos advém da motivação intrínseca ao ato de jogar, de avançar na exploração dos espaços e superar etapas, fases e desafios que resultam num processo de aprendizagem de natureza lúdica, motivada por uma história que se desenrola de forma significativa e contínua. (MASSAROLO, 2013, p. 39)

O que chega à sala de aula, de modo geral, são conteúdos multimídia e atividades interativas com alguns elementos de game, que dificilmente engajam ou contribuem para a aprendizagem de forma significativa, sendo, de fato, um recurso multimídia com elementos, técnicas e/ou design de games, como os conteúdos digitais produzidos para o PNLD 201414

ou, até mesmo, propostas mais lúdicas como o jogo “Mistério dos Sonhos”, da Xmile15

. Isso acontece porque se acredita que, ao utilizar elementos ou estética de games em conteúdos multimídia, já se está apresentando essa lógica adequada ao âmbito educacional.

Há iniciativas que têm como objetivo apoiar o desenvolvimento de ambientes gamificados, como a do Ministério da Educação (MEC), por exemplo, com o Geekie Games Enem16

, plataforma online para o Exame Nacional para o Ensino Médio (ENEM). Segundo o MEC, os resultados desse ambiente foram considerados positivos, a ponto de se levantar a possibilidade de gamificar a avaliação do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA).

Para se pensar em possibilidades de aprendizagem utilizando-se da mecânica, da lógica e da estética dos games, além de “criar espaços de aprendizagem mediados pelo desafio, pelo prazer e entretenimento” (ALVES; MINHO; DINIZ, 2014, p. 76), é necessário conhecer o conceito de gamificação.

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Os conteúdos multimídias do tipo jogos produzidos para o PNLD 2014 pela FTD tinham que atender às especificações apresentadas pelo PNLD/2014: Ensino Fundamental – Anos Finais. Disponível em:

http://www.ftd.com.br/pnldef2_2014/index.php?page=colection&dis=historia&col=12&oed=1. Acesso em: 29 jul. 2018.

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Xmile. Mistério dos Sonhos. Site oficial. Disponível em:

http://www.xmile.com.br/index.php?p=misterio_sonhos1. Acesso em: 29 out. 2018.

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A Geekie Games Enem é uma plataforma que se apresenta como jogo com videoaulas, exercícios e simulados. Embora se diferencie dos materiais didáticos que integrem tecnologias digitais, propiciando que o usuário a personalização do percurso, o material ainda está voltado para a avaliação que envolve o letramento da letra e conteúdos transmissivos, sem possibilidade de participação e colaboração. Disponível em:

Segundo McGonigal (2012), a gamificação consiste em utilizar a mecânica dos jogos em atividades que não estão dentro do contexto dos jogos.

Se, por um lado, os jogos (termo mais amplo, que inclui, inclusive atividades lúdicas) e os games (jogos em plataforma digital; videogames) são cativantes, por outro, a gamificação, termo traduzido do inglês gamification, pode ser definida como “um sistema em que jogadores se engajam em um desafio abstrato, definido por regras, interatividade e feedback, que apresenta resultados quantificáveis que, muitas vezes, provocam reações e emoções.” (KAPP, 2012, p. 08, tradução nossa).

Para Kapp (2012), a gamificação é “o uso de mecânicas, estéticas e pensamentos dos games para engajar pessoas, motivar a ação, promover a aprendizagem e resolver problemas.” (KAPP, 2012, p. 08).

No caso da mecânica dos games, Kapp (2012), refere-se aos elementos e às técnicas indicando que, para se gamificar uma atividade ou criar um sistema gamificado, deve-se contemplar: abstração da realidade, objetivos, regras, conflitos, níveis, tempo, recompensas, feedback, repetições, curva de interesse e/ou narrativa.

Embora o autor indique que a narrativa não seja um elemento essencial nos games, ele afirma que ela é fundamental para a gamificação, pois potencializa o envolvimento e o engajamento dos jogadores.

Santaella (2004, s/p) retoma essa importância ao explicar que a narratividade é um elemento essencial porque permite, entre outras ações, a identificação encarnada, ou seja, a criação de um avatar ou a materialização do jogador dentro do contexto apresentado. Dentro desse contexto, jogador e narrativa tornam-se inseparáveis e um exerce controle sobre o outro, potencializando a natureza participativa, a interatividade e a imersão.

A gamificação deve ser compreendida como uma estratégia que vai além da mecânica e da estética de games. Pois se trata de uma construção de modelos ou sistemas com foco nas pessoas, cuja premissa é a lógica dos games. Por isso, seja na elaboração de propostas, atividades, ambientes ou materiais didáticos, essa estratégia deve ter como foco as pessoas envolvidas, considerando motivações, sentimentos e participação, o que é conhecido como Human-focused design (“Design focado no humano”, tradução nossa).

Um exemplo de gamificação que tinha como objetivo promover a cooperação e a colaboração entre os participantes com foco na resolução de problemas é o trabalho de McGonigal (2012) com os jogos de realidade alternativa, conhecidos, em inglês, como Alternate Reality Games (ARG). Entre os anos de 2001 a 2012, McGonigal desenvolveu uma série de ARG desafiando os participantes a resolver problemas reais.

Um dos exemplos mais conhecidos é o ARG World Without Oil (“O mundo sem petróleo”, tradução nossa), proposto em 2017. A partir da proposta desse jogo de prognóstico, o projeto teve uma prospecção massiva para múltiplos jogadores. A partir da apresentação de uma situação-problema que colocava os Estados Unidos em crise porque quase 22% dos norte-americanos não conseguiam acesso à gasolina, os jogadores eram convidados a pensar em possíveis resoluções de forma colaborativa e participativa. Mais de dois mil jogadores online participaram durante seis semanas dessa simulação colaborativa em prol de um prognóstico imersivo do futuro.

Além de se construir modelos que considerem os participantes e utilizem mecânicas e estéticas de games, deve-se considerar o contexto, no caso, o educacional, com o fim de direcionar objetivos, propostas e práticas, levando em conta as motivações e as habilidades a serem trabalhadas. Os elementos e as técnicas dos games também devem ter foco nas implicações do contexto. A escolha de elementos como feedback, regras, conflitos, níveis, tempo etc. vai depender dos objetivos de aprendizagem e como esses elementos e técnicas podem contribuir com esses objetivos.

No entanto, é importante discutir o uso de alguns dos elementos e das técnicas dos games em propostas e materiais didáticos. Um uso recorrente é o de pontuação e ranking, elementos de game que, no contexto da educação, têm função similar aos sistemas avaliativos tradicionais, como a nota e o ranqueamento. No entanto, a gamificação apresenta outras possibilidades avaliativas, como o feedback e a colaboração entre participantes com foco na aprendizagem coletiva.

Kapp (2012) afirma que a gamificação é, geralmente, utilizada para tornar a aprendizagem mais fácil e trivial. Nesse contexto, vale ressaltar que elementos de recompensas como pontuação e ranking não devem ser excluídos das propostas gamificadas para a educação. Entretanto, deve-se verificar se esses sistemas,

ambientes, materiais didáticos etc. serviriam às práticas do paradigma de aprendizagem interativa.

A gamificação, no entanto, apresenta outras possibilidades avaliativas, como o feedback e a colaboração entre participantes com foco na aprendizagem coletiva. Há elementos, inclusive, que promovem o engajamento de diferentes perfis de jogadores. Por esse motivo, é necessário compreender que a gamificação, assim como os jogos e os games, possibilitam a identificação de tipos de jogadores e padrões de jogabilidade.

Bartle (1996, apud Kapp, 2012) elabora o perfil dos jogadores com base nos arquétipos, separando-os de acordo com suas características, preferências de interação e pelo comportamento que costumam demonstrar nos games. O autor descreve os seguintes perfis: a) predadores (killers), perfil mais competitivo, com foco nos outros jogadores; b) conquistadores (achievers), perfil mais focado em ações, com o objeto de acumular conquistas; c) socializadores (socializers), perfil mais comunicativo, que tem como objetivo interagir com os demais jogadores e comunicar-se com eles; d) exploradores (explorers), perfil mais desbravador, que tem o objetivo de interagir com o mundo, descobrindo segredos, easter eggs, novas funcionalidades etc.

Cada aluno/jogador pode ser enquadrado em um perfil porque possui certas características específicas, mas pode apresentar traços dos demais perfis de jogadores. De acordo com o autor, os tipos predadores e conquistadores são os ativos, que querem conquistas; a diferença é que os predadores gostam de rankings e competições contra adversários enquanto os conquistadores gostam do desafio em si.

Os tipos socializadores e exploradores são mais interativos. Os socializadores são mais comunicativos e gostam de compartilhar e interagir com os outros jogadores, enquanto os exploradores gostam de interagir com o próprio jogo, explorando ao máximo suas possibilidades.

Marczewski (2015, p. 65) acredita que os perfis criados por Bartle são constantemente mal interpretados ao serem aplicados aos sistemas gamificados. Por esse motivo, ele elaborou um hexágono de jogadores, separando-os em: seis tipos de usuários (em um nível básico), sendo quatro tipos intrínsecos: conquistadores (achievers), socializadores (socialiser), filantropos (philanthropist) e

espíritos livres (free spirit), motivados pelos respectivos princípios de domínio, relacionamento, propósito e autonomia, e outros dois tipos com motivações menos radicais: disrruptivos (disruptors) e jogadores (players).

Resumidamente, socializadores são movidos por relacionamento e querem interagir com os outros e criar conexões sociais; livres são motivados pela autonomia com foco em criar e explorar; conquistadores, pelo domínio e procuram aprender coisas novas e melhorar a si mesmos; filantropos, pelo propósito, enriquecendo a vida dos outros de alguma maneira sem expectativa de recompensa; jogadores são motivados basicamente por recompensas; desruptivos são movidos pela mudança, promovendo mudanças positivas ou negativas (MARCZEWSKI, 2015, p. 70).

Apesar da ampliação proposta por Marczewki, vamos nos focar em analisar como e se os conceitos de Bartle podem ser incorporados na gamificação no âmbito educacional com o objetivo de apropriarmos esses conceitos das práticas educativas.

Para tanto, é importante refletir sobre como é possível elaborar um material que propicie que cada um dos perfis se sinta motivado, apresentando uma proposta que garanta o engajamento de todos e, também, adeque a estratégia ao contexto educacional, possibilitando a vivência de diferentes perfis de forma a ampliar a experiência dos alunos enquanto jogador.

A presente pesquisa considera ambas as propostas em relação aos perfis como elemento da gamificação e parte da proposta de elaboração pedagógica e editorial do material, cuja intenção deve estar relacionada à possibilidade de engajamento dos alunos.

O engajamento é uma das grandes intenções da gamificação. Isso porque as etapas de um game podem se aproximar de situações e contextos da vida real. Entretanto, diferentemente da vida real, na atividade, sistema ou material gamificado, os alunos podem errar com maior frequência, retomando ou recomeçando sua ação sempre que desejarem ou acharem necessário.

E, embora a gamificação suponha regras, que envolvem cognitiva e emocionalmente os alunos na construção de sua identidade e posicionamento social diante de desafios cotidianos, ela possui um grande benefício, que são as realidades alternativas. Segundo McGonigal (2012),

em comparação aos jogos, as tarefas do mundo real não nos envolvem tanto. Eles nos motivam a participar mais integralmente daquilo que estamos fazendo. Participar integralmente em algo significa estar automotivado ou autodirecionado, intensamente interessando e genuinamente entusiasmado. Se somos forçados a fazer algo ou se o fazemos com pouca convicção, não estamos de fato participando. Se ficamos esperando passivamente, não estamos de fato participando. (MCGONIGAL, 2012, p. 130)

Desse modo, podemos afirmar que a gamificação, incorporada ao contexto educacional, pode propiciar e potencializar o desempenho dos alunos e tornar a aprendizagem mais envolvente, recompensadora e colaborativa, ainda que a aprendizagem seja o objetivo do material e não a gamificação, sendo possível também trazer práticas da cultura digital que podem, inclusive ser tematizadas.

Vale ressaltar que a simples aplicação desses elementos não torna a gamificação um modelo inovador para a educação, pois, dependendo da intenção, pode ser apenas mais uma estratégia que repete padrões tradicionais dentro de uma nova estética.