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humanitude , uma FilosoFia de Cuidar ao serviço dos idosos

Uma filosofia dos cuidados: que possa ligar ciência e consciência; que nos interrogue sobre o que é uma relação de cuidados entre pessoas.Com vista a não esquecer características preciosas que permitem ao homem sentir-se humano e permanecer humano aos olhos dos seus semelhantes…

O conceito de humanitude, proposto por dois antigos professores de ginástica, Yves Gineste e Rosette Marescotti, é uma noção de natureza antropológica, que nos leva a perspetivar as raízes da nossa condição humana, isto é, a nossa essência. Este conceito leva-nos a percecionar as características que identificam o homem como espécie, que são indispensáveis à sua sobrevivência e ao seu bem-estar. Nas palavras de Albert Jacquard (1987), a humanitude «recobre o conjunto de oferendas de evolução que os humanos se deram uns aos outros no decurso das gerações, desde que têm consciência de ser e que podem ainda fazer um enriquecimento sem limite; é o tesouro de compreensão, de emoções e sobretudo de exigências éticas para si e para os outros que pouco a pouco desenvolvemos com a evolução». Neste sentido, distinguimos entre humanismo e humanitude. Referindo-nos ao primeiro como um conceito filosófico que nos mostra a importância do lugar do ser humano no mundo.

As particularidades da humanitude (Margot, 2010) têm a ver com a verticalidade, o olhar partilhado, a inteligência, a capacidade de

tocar o outro, o sorriso e o riso, o reagrupamento familiar, a refeição e a socialização. Estas características, que nos parecem banais na vida quotidiana, são essenciais para a nossa qualidade de vida e crescimento pessoal, reproduzindo-as de geração em geração. Este conceito visa

relembrar estas particularidades aos cuidadores e profissionais de saúde

no desempenho das suas funções profissionais e cuidados informais às pessoas idosas dependentes e doentes, de modo a acabar com a desumanização dos cuidados. O objetivo desta filosofia é promover uma reabilitação digna e melhorar as relações entre doentes e cuidadores, sejam eles profissionais ou informais. O conceito de humanitude remete- nos a revisitar a condição de fragilidade humana sempre em busca de apoio e proteção.

Muitas vezes, os idosos são maltratados, ignorados e abandonados, onde os mais jovens olham para eles como inúteis e mesmo dispensáveis para a sociedade. Quando as pessoas idosas apresentam um fraco grau de autonomia e possuem uma doença crónica, este sentimento aumenta, enfraquecendo a autoestima do idoso, fazendo com que ele interiorize a ideia de inutilidade e de que já não faz falta a ninguém, pensando cada vez mais na ideia da morte. Esta frustração leva a que o idoso se sinta desprovido de qualquer dignidade e sentimento de pertença, desistindo da sua recuperação/tratamento.

A filosofia dos cuidados da humanitude traz uma metodologia útil para uma melhor consideração das pessoas idosas e das suas necessidades. Assim, esta assenta em «respeitar a pessoa como ser humano único, por inteiro (atingida pela doença, mas que tem forças de vida que é necessário utilizar, estimular ou reforçar). É respeitar a pessoa: nos seus gostos, necessidades, desejos, na sua história e nos seus hábitos, no direito à sua intimidade (o seu corpo, a sua casa, os seus objetos pessoais…), a fazer escolhas e tomar decisões livres e conscientes, no direito a ser ajudada a melhorar ou manter a sua autonomia, e no seu desejo de se superar, de bem-estar, de uma melhor qualidade de vida e de evoluir na sua Humanitude» (Instituto Gineste-Marescotti, 2011). Para isto ser possível o cuidador deve integrar técnicas e estratégias desta metodologia na sua prestação de cuidados diários. Técnicas que nasceram da observação e reflexão a partir de um permanente questionamento dos autores no terreno e posteriores estudos (Instituto Gineste-Marescotti, 2011). Uma simples modificação que o cuidador pode fazer e que faz toda a diferença para o doente, é a substituição da mão em garra para a ajudar o indivíduo a sair da cadeira de rodas, por um gesto mais suave, permitindo a colaboração do doente sem esforço e sem a tentativa de ser agressivo com o cuidador (a mão em garra é percecionada pelo cérebro como um ato punitivo/agressivo). Os autores têm particular interesse

em aplicar esta metodologia nos doentes idosos, doentes atingidos por AVC e nas suas capacidades cognitivas (Alzheimer e outros tipos de demência), doentes em coma, em fim de vida, devido às recuperações significativas, à melhoria da sua qualidade de vida e bem-estar que a esta possibilita.

A aplicação da metodologia da humanitude assenta essencialmente em seis pilares (Margot, 2010): verticalidade, o toque, o olhar, o sorriso, a palavra, a relação com o outro e com a sociedade, os adornos.

O primeiro, por ser a característica que distingue o homem dos animais, Ginete e Marescotti (2011), defendem que o cuidador deve fazer os possíveis para manter o doente de pé, a andar, dado que, para além dos benefícios de saúde (funcionamento respiratório, muscular, das articulações, do coração, da circulação, dos ossos, entre outros) que a verticalidade traz ao indivíduo, faz com que este não perca totalmente a sua independência, elemento essencial para a sua qualidade de vida.

O toque é aqui abordado na forma de substituir o toque utilitário pelo toque carinhoso (Touboul, 2009), na medida em que o toque, como demonstração de carinho, por vezes, alivia mais o doente do que qualquer palavra. O contacto com a mão é uma forma de linguagem, mostrando a outra pessoa confiança, segurança, o sentimento que lhe prestamos atenção e que percebemos o seu sofrimento, em suma, que o estamos a apoiar, e isso, é o que o doente precisa sentir para ter forças para se recuperar. Um gesto afetuoso ou uma massagem de relaxamento às pessoas idosas são atos que os encorajam e os reconfortam.

Quando falamos do olhar, temos em atenção o olhar partilhado, face a face, olhos nos olhos. O olhar revela-se de muita importância, isto porque é no olhar dos outros que nos apercebemos quem somos e o que valemos, desenvolvendo assim a nossa identidade. Assim, se o olhar do cuidador for de apoio e segurança, o doente irá sentir-se valorizado e aceite, sentindo confiança para desabafar e mencionar as suas necessidades.

O sorriso e o riso aparecem aqui como uma “terapia natural”, na medida em que o sorriso manifesta compartilha, felicidade, prazer, confiança, bom humor, relaxamento, diversão. O riso é o remédio mais eficaz para combater o stress e relaxar, tendo o poder de curar certas doenças (Margot, 2010). Para além disso, possibilita desdramatizar as situações de sofrimento do doente, ajudando-o a restabelecer a sua autoestima e bom humor, sentindo-se mais alegre e mais fortalecido.

O poder da palavra é de especial importância, dado que a comunicação se revela vital na vida do individuo. O diálogo entre o cuidador e o doente é essencial para juntos, poderem estabelecer quais as melhores

estratégias para uma reabilitação de sucesso e para que o doente possa desabafar o seu sofrimento e temores em relação à doença e à morte, aliviando assim a sua tristeza.

A relação com o outro e com a sociedade também se revela um pilar fundamental na vida quotidiana do individuo, que, por ser um agente social, necessita da convivência em grupo, de se sentir amado, aceite pelos outros. Os idosos, pela sua situação vulnerável de dependência e doença, têm mais necessidade do contacto que as pessoas saudáveis e jovens, pelo que este deve ser uma preocupação do principal cuidador informal e sua família, sendo, por vezes, o único laço social que lhes resta.

Por último, mas não menos importante, o porte do vestuário e dos adornos são características essenciais na humanitude das pessoas idosas e doentes. Pela carga simbólica que o vestuário e os adornos possuem na nossa sociedade, contribuindo para construir a nossa identidade, determinando o nosso grupo de pertença e até o nosso estilo de vida e classe social, torna-se algo imprescindível da nossa condição humana, estes determinam quem nós somos e como os outros nos percecionam. A falta destes componentes afeta a autoestima e a pertença identitária do individuo. Assim, o cuidador tem de, para além da higiene diária, ajudar o doente/idoso a vestir-se, combinando as cores, colocando um ou outro acessório, arranjar o cabelo, fazer a barba e aplicar um creme e uma maquilhagem discreta. Ao fazer isso, o cuidador está a elevar a autoestima do idoso/doente, na medida em que se sente um ser humano por inteiro, com boa apresentação, sentindo-se bem consigo mesmo e aceitável para a família.

Esta metodologia, bastante objetiva e simples de operacionalizar, estabelece paralelos entre o desenvolvimento das nossas capacidades humanas através dos tempos e das diversas vertentes da nossa vida atual. É orientada para o sentido profundo de ações/cuidados de saúde que prestamos ao idoso em situação de dependência. Mostra-nos como o olhar partilhado, o sorriso, o toque, podem ser fundamentais na comunicação e no relacionamento interpessoal. Mostra-nos também o poder da palavra como geradora de pensamentos e comportamento ao serviço do cuidar.

Como vimos, cuidar em humanitude, é ser solidário, é ajudar o próximo com dignidade, é ver o doente/idoso como um homem por inteiro, com necessidades, desejos, objetivos, limitações, defeitos e qualidades, é proporcionar bem-estar, equilíbrio e satisfação aos sofredores. Esta filosofia visa acabar com a desumanização dos cuidados de saúde verificados nas instituições, em que os cuidadores e profissionais de saúde apenas se preocupam com a cura da patologia em causa, esquecendo que

o ser humano é um agente social. Esperamos que a interiorização deste conceito eleve a qualidade da relação cuidador-utente e a qualidade dos cuidados de saúde prestados.

Terminamos este capítulo oferecendo duas ferramentas práticas: uma destinada ao quotidiano das interações pessoais e profissionais com os idosos; outra destinada a tomar decisões éticas de carácter mais permanente ou estrutural das práticas organizacionais.

FerramentaparaaprátiCa i:

Cuidados a observar para agir de forma eticamente correta e com humanidade com a pessoa idosa, seja no âmbito de uma relação pessoal ou de uma relação profissional.

1. Procurar conhecer o idoso e a sua história de vida pessoal e profissional, dando conta das suas grandiosidades e vulnerabilidades. A melhor forma de o fazer é sentar-se simplesmente ao seu lado e ouvir, partilhar o silêncio se for caso disso, e falar e questionar quando necessário. Sempre sem pressas, aferindo o tempo e o ritmo pelo tempo e o ritmo do idoso. A informação assim recolhida pode ser derramada no dossiê individual do idoso e usada nas situações e na forma julgada conveniente.

2. Chame o idoso sempre pelo seu nome próprio e faça-o frequentemente. O nome próprio é um traço identitário fortíssimo, ouvi-lo confere reconhecimento existencial. Diminutivos ou alcunhas apenas em casos extremos de muita intimidade e cumplicidade, o que é raro verificar-se. No âmbito de uma relação profissional com o idoso jamais devem ser usados, dado que é obrigação do profissional olhar pela normatividade da mesma.

3. Mostre também algo de si. Mesmo no quadro de uma relação profissional estrita veja a interação com o idoso como um momento de partilha de conhecimentos, de saberes, de ideias, de desejos e de sonhos. Evite a atitude mineira de tudo extrair sem nada dar em troca.

4. Vigie as suas caraterísticas pessoais de impulsividade, timbre e volume de voz, gestos, humores, entre outros. A relação com um idoso beneficia largamente de uma interação pautada pela tranquilidade e suavidade do trato.

5. Lembre-se que a atitude das pessoas em relação ao corpo e às formas e momentos de exposição do corpo estão fortemente relacionadas com a cultura e os valores geracionais. Qualquer procedimento que envolva a

exposição do corpo, como a higiene e tratamentos, por exemplo, devem ser rodeados de todos os cuidados que salvaguardem a privacidade do idoso.

6. O toque é um elemento importante da comunicação e da interação pessoal. Em geral o idoso aprecia que a pessoa que interage com ele o toque com carinho, o que normalmente é interpretado como sinal de afeto e de consideração, facto que potenciará a relação pessoal e/ ou profissional entre idoso e cuidador. Caso o idoso rejeite esse tipo de interação a sua vontade deve ser respeitada.

7. Nunca termine uma conversa com um idoso como se fosse a última. Deixe sempre uma mensagem de retorno ou algum assunto para abordar depois. Desta forma o idoso perspetiva o futuro e terá a oportunidade de refletir sobre a conversa anterior facilitando a seguinte.

8. As implicações éticas e a estética do cuidado devem ser abordadas e integradas nos procedimentos de todos os cuidadores envolvidos, assim como da família do idoso (Hammerschimidt, Borghi, & Lenardt, 2006). Elas não podem ser entendidas jamais como uma componente menor do cuidado prestado ao idoso.

9. Quando tiver dúvidas sobre os procedimentos éticos a adotar não invente, antes questione quem possa saber ou simplesmente informe- se nos muitos meios atualmente acessíveis.