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1. Movimentos sociais em interação com partidos políticos

1.3. Movimentos sociais em interação com partidos políticos: evidenciando identidades e estratégias de

1.3.3. Identidade coletiva versus identidade partidária?

Quando a análise da identidade partidária está direcionada para os atores sociais que se tornam partidários de alguma legenda, a questão de interesses e preferências individuais também é uma tônica. Rosenblum (2008) argumenta que há obstáculos para compreender o fenômeno do partidarismo (partisan politics) como identidade (identity politics) quando a distinção é baseada entre grupos de identidade, de um lado, e grupos de interesse e advocacy, do outro. Para ela, se partidarismo é apenas o alinhamento da preferência dos eleitores com o partido, e se proximidade ideológica ao partido é vista como atalho para interesses, então, partidarismo é reduzível a interesses (Ibid., p. 343). Em contraste, Rosenblum considera que grupos de identidade não são definidos por objetivos instrumentais, mas pelos interesses politicamente relevantes e largamente partilhados pelo grupo em função de suas experiências. O ponto em questão para a autora é que identidade social não é reduzível a interesses. Ela propõe, todavia, um paralelo entre partidarismo, ou identidade partidária, e identidade ou identidade social.

A autora usa o termo identity politics com o mesmo significado de identidade social, a ver: “ ‘Identity politics’ (...) begins with mutual identification of people around

recognizable social attributes—usually ethnicity, race, or the catch-all ‘culture’”

(Rosenblum, 2008, p. 343). A compreensão de identidade social, portanto, está associada a grupos sociais específicos ou a uma cultura generalizada. Aqui, é importante fazer um esclarecimento. Os conceitos de identidade social e de identidade coletiva podem ser muito próximos, até mesmo confundidos. Identidade social, em geral, envolve sentimentos de pertencimento a grupos específicos, como étnicos, geracionais etc. Identidade coletiva, conceito aplicado ao estudo dos movimentos sociais, envolve sentimentos como solidariedade, partilha e também pertencimento, mas não se refere apenas a coletividades específicas, como no caso da identidade social, ele parece ser mais amplo. Por isso, adotamos identidade social e identidade coletiva como conceitos muito próximos e complementares. Para mais esclarecimento sobre o assunto, ver Naujorks e Silva (2016).

Para Rosenblum, os marcadores da identidade social podem ser positivos ou negativos, autodesignados ou impostos pelo meio externo e o grupo pode se aparentar como superior ou estigmatizado. Ela argumenta que partidarismo é um tipo de identidade distinta da identidade social e apresenta, como exemplo, o caso de um partido que se constituiu com forte vínculo a um grupo social cristão, mas, que, ao longo do tempo, seguiu a propensão natural de saltar da identidade religiosa para a identidade política, enfraquecendo sua expressão cristã. Dessa forma, a identidade social nem sempre é automaticamente traduzível em identidade política, muito menos a partidarismo (Ibid., p. 345).

Partidarismo é, portanto, uma forma de identidade política não reduzível à identidade

de um grupo social anteriormente formado46 e vai além da identidade social, a ver:

None of this undermines partisanship as identity politics in a register different from other social identities and as something more than their immediate political expression. My way into partisanship may begin with “my own sort of person” in social terms, but the transitional steps from social identity group to partisan political identity involve loosening, eclipsing, or transformation of this prior identity for political purposes. Understanding partisanship as epiphenomenal, an instrumental association in political service of some other social identity, may describe some activists focused on specific policy goals, but it is unfaithful to a common personal experience of partisanship (Rosenblum, 2008, p. 346/7, grifo meu)

O partidarismo, no sentido proposto acima, altera a experiência dos atores partidários que também guardam identidade com diferentes grupos sociais. Rosenblum (2008) afirma que o partidarismo transcende esses grupos e, para muitos, tem o caráter e a força de identidade política original e autossustentada, independente da identidade social. Ela esclarece que focar exclusivamente na origem social dos partidos deturpa a natureza do partidarismo, ou de identidade partidária, sua relativa autonomia ao que concerne os grupos sociais que se identificam com partidos (p. 347). Algo que se apreende da elaboração de Rosenblum é que as múltiplas identidades sociais dos integrantes de um partido serão preteridas em função da identidade partidária. Aqueles mais vinculados a movimentos sociais, por exemplo, teriam dificuldades para defender a identidade social e coletiva do movimento social, caso entrasse em atrito com a identidade partidária que, conforme vimos, está muito baseada em interesses de poder.

46 Isso é oposto à tradição ortodoxa que considera que indivíduos se tornam partidários por conta de sua

Rosenblum descreve, com essa elaboração, a diferença na natureza e na escala da identidade social - ou identidade coletiva - da identidade partidária. Lembrando que consideramos identidade social e identidade coletiva conceitos próximos e complementares, como posto acima. Conforme abordamos nas últimas subseções, há pontos essenciais de distinção entre identidade social/coletiva e identidade partidária, bem como entre estratégia dos movimentos sociais e dos partidos políticos. Identidade coletiva envolve emoção e definições cognitivas, é um processo de ativação das relações que vinculam os atores sociais, pode ser baseada por posições estruturais, mas que nunca são automaticamente traduzidas em identidades, requer esforços para se tornar identidade coletiva. A identidade de um grupo pode ser fraturada, tal como a do partido político, e os grupos terão tantas identidades quantas forem as relações sociais que construírem. Mas, de acordo com Melucci (1996), a identidade coletiva nunca é inteiramente negociável, como pode ocorrer com a identidade partidária, conforme extraímos do trabalho de Panebianco.,

A identidade partidária pode ser baseada em imagens que os cidadãos possuem dos partidos sem pressupor graus de pertencimento, quando não são filiados ao partido. Ela envolve, prioritariamente, a identidade pessoal, ao passo que a identidade coletiva nunca é reduzível ao nível do indivíduo e não é um agregado de identidades individuais (Poletta e Jasper, 2001). O centro simbólico mais importante da identidade partidária é a ideologia (Panebianco, 1995), mas esta, para os atores sociais, não assegura a formação de identidade coletiva, pois, de acordo com Poletta e Jasper (2001, p. 298), “collective identity is not the

same as common ideological commitment”.

Uma forma considerável de manter a identidade partidária é por meio dos incentivos seletivos. O mesmo acontece para a identidade coletiva dos movimentos sociais, mas, no caso dos partidos, esses incentivos são fortemente materiais e se estabelecem muito por interesses. De acordo com a literatura, a identidade partidária implica em cálculo racional para avaliar escolhas balizadas pelos interesses em jogo, diferente do processo de formação da identidade coletiva cujos elementos simbólicos, como pertencimento, reconhecimento e identificação, costumam ser predominantes. Identidade coletiva influencia e sofre influências de interesses, identidades e incentivos, mas, conforme posto, o aspecto simbólico está mais presente do que na identidade partidária.

Retomando o conceito de partido-movimento (movement-party) de Cowell-Meyers (2014), movimentos sociais que se transformam em partidos políticos, a autora chama nossa atenção para o processo de partidos políticos formados a partir de critérios de identidade social, como o partido Coalizão das Mulheres da Irlanda do Norte, formado por representantes do movimento feminista deste país. Nesse caso, a interação entre movimento social e partido político - que atuou por muitos anos no parlamento irlandês, ainda que de forma marginal – se deu fortemente por questões de identidade. A autora argumenta que a formação do partido foi uma tática de confronto utilizada pelo movimento social feminista que otimizou consideravelmente o debate político sobre questões levantadas pelos movimentos sociais. Ela avalia movimento e partido numa relação muito imbricada, sem a diferenciação pontuada por Rosenblum (2008).

Outros exemplos citados por Cowell-Meyers são os partidos verdes na Europa, os quais, por meio de ação baseada em participação democrática, inclusão e deliberação alteraram as formas de representação política do sistema partidário em alguns países e atraíram um conjunto de movimentos sociais, para além daqueles que formaram esses partidos, formando partidos-movimentos. Ao longo da década de 1980, na Alemanha, o movimento ambientalista fez uma manobra política que se consagrou como um marco das relações entre movimentos sociais e partidos políticos. Trata-se da formação do Partido Verde, em 1979, que, já em 1983, conseguiu votos suficientes para posicionar ativistas no parlamento alemão e promover representação política para os movimentos pós-materialistas que se desenvolveram durante a década de 1970 (Boggs, 1986).

A partir do momento em que foram catapultados para a política institucional, os Verdes passaram a adotar uma estratégia dupla que envolvia, simultaneamente, desenvolver o partido e o movimento, as políticas eleitorais e as lutas sociais, a reforma legislativa e as ações de protesto (Ibid., p. 177). A nova ideologia política que pregavam permitia aos Verdes a liberdade de caminharem em “duas pernas”: uma no campo institucional e outra na sociedade. Isso era estratégico e indispensável para resistir, por exemplo, a pressões relativas à absorção institucional. Mas, para tanto, a perna no movimento deveria estar bem fincada e mais sólida do que a outra no mundo institucional. Naquele momento, os Verdes significavam a convergência entre partido e movimentos que sugeria uma larga redefinição

da política, um aprofundamento da democracia que propunha participação ampla dos movimentos sociais na política. Nesse processo, a política eleitoral foi componente de um conjunto mais amplo de atividades e projetos dos ambientalistas e não um fim em si mesmo, como explica Boggs (1986).

A identidade do movimento social, todavia, é muito valorizada por Boggs, pois considera que é ela que permite a criação de partidos políticos. O autor também se preocupa em destacar a importância para o partido em ter sua identidade consolidada e bem definida para poder adentrar a corruptível esfera política. O partido pode se perder nas relações com outras agremiações ou com os novos interesses que surgem no interior do sistema político e, com isso, afetar a dinâmica dos movimentos sociais que representa.

Poguntke (1992; 2001) demonstrou o quanto adentrar o sistema político transformou a ideologia e a organização dos Verdes na Alemanha, no sentido de que suas práticas políticas assumiram padrões da política institucionalizada, inclusive com reorientação das ações dos movimentos sociais que os apoiavam. Com esses estudos empíricos, Poguntke demonstrou o que, mais adiante, Rosenblum (2008) argumentaria sobre como a experiência partidária transforma a identidade coletiva dos movimentos sociais que formam partidos políticos ou que se aproximam deles. A questão de as identidades coletiva e partidária serem opostas é, portanto, campo de disputa e se operacionaliza empiricamente de formas diferentes. Cowel- Meyers (2014) identificou que essa relação é muito pouco explorada pelas literaturas de movimentos sociais e de partidos políticos. Em algumas situações, essas identidades podem ser partilhadas, em outras, podem ser opostas, conforme demonstraremos nesta tese com o caso de um grupo de ambientalistas e sua relação com o PT.

Sobre estratégias de movimentos sociais e de partidos políticos, observamos que, para os últimos, as estratégias estão inseridas dentro de arenas políticas em que a competição e a disputa por votos e por espaço político estabelecem as regras do jogo. Ao contrário, as estratégias dos movimentos sociais geralmente são elaboradas em função de um estoque de repertórios partilhado, de orientação instrumental e também suscetíveis à influência do contexto, mas que são elaboradas mais por características internas aos movimentos em comparação com as estratégias partidárias. Quando partidos e movimentos se sobrepõem em

suas atividades, as identidades e estratégias, que definem seus projetos e comportamentos, podem se chocar pelas diferenças em suas naturezas.