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IMAGEM E MÚSICA: CONVERGÊNCIAS

3.1. VJING E MÚSICA

3.1.3. IMAGEM E MÚSICA: CONVERGÊNCIAS

Nesta era digital, a ligação entre o mundo sonoro e o visual vive numa segura proximidade e multiplicidade. Pensar em imagem sem som, em particular em imagem em movimento, é agora quase inconcebível. As sinergias entre estas duas disciplinas são demasiado vincadas, de tal forma que, quando aglutinadas constroem complementaridades e experiências singulares. Historicamente, apesar da separação entre áudio e visual que os média impuseram numa fase inicial, sempre existiu uma vontade de se fazer corresponder som e imagem, como nas experiências de color music, visual music, no cinema experimental e na videoarte, mas agora, qualquer barreira ou dificuldade na sintetização de sons e imagens desapareceu no advento da tecnologia digital, flexibilizando as relações intermedia entre som e imagem, que os artistas e pioneiros procuravam. Uma das questões transversais a esta procura de relações entre som e imagem prende-se com a tentativa de estabelecer uma correspondência ‘absoluta’ entre audição e visão, levando muitos artistas a procurar um fundamento na física ou na psicologia da percepção. No entanto, os sistemas desenvolvidos aproximam-se invariavelmente da subjectividade sinestésica, fazendo com que cada artista desenvolva os seus próprios parâmetros de correspondência sensorial. Falando em VJing, a imagética, por sua vez, funciona numa formalidade abstracta, o que a faz corresponder ao som. Certo é que, a exploração de uma paridade sensorial começou a ganhar relevância no aparecimento da abstracção visual, quando o abandono progressivo da figuração conduziu à procura de uma linguagem ‘universal’ da forma abstracta, inicialmente aproximando a pintura da música, hoje em dia aproximando o objecto visual dinâmico das sonoridades eléctricas. Nas artes audiovisuais realizadas ao longo do século XX existe no entanto uma orientação paralela ao tipo de analogia e harmonia que Castel configurava. Essa orientação relaciona-se com a noção de correspondência sensorial: a tentativa de traduzir graficamente o som, de produzir uma marca ou materialização visual da sonoridade. A perspectiva de ‘visualização’ do som particulariza assim, a procura

de equivalência sensorial em algo que implica a transformação física de um medium no outro através de meios eléctricos. Esta orientação está na génese das explorações intermedia, que se diferenciam da mera coexistência audiovisual, evidenciando a noção de conversão entre som e imagem, segundo uma possível reversibilidade, i.e., a materialização do som em forma visual e o uso destas para produção de fenómenos sonoros. Esta noção de intermedialidade implica a ideia de uma equivalência entre fenómenos, associada à exploração técnica em torno da conversão e ao fascínio da visualização do som. Em VJing, essa estruturação visual do áudio pode ser realizada por momentos sinestésicos performativos, ou de uma forma mais linear através de tecnologias que ‘desenhem’ o som. A verdade é que, nas experiencias performativas dos novos artistas digitais, em especial em VJing, essa proximidade formal entre a imagem e o som é bastante delineada, seja em termos conceptuais ou performativos. A luz e o som, ambos são frequência, e como Arlindo Machado refere, os " padrões de estimulação de retina são muito semelhantes aos padrões rítmicos da música". (Machado, A televisão

Levada a sério, 2000). Certo é que, a arte de Vídeo Jockeying está profundamente

ligada à linguagem musical, quer na sua origem, como no processo de elaboração de imagens, na interface do software, no acto de colar as amostras e misturá-las, assim como na capacidade de reconstruir o espaço presenteando-lhe uma ambiência particular.

O cineasta francês dos anos 20 Marcel L´Herbier definiu o cinema como a “música da luz”. A cena electrónica dos VJs produz a música da luz na raiz, ou seja, a luz estimulação-cor, a luz-matéria que sofre refracção no encontro com os corpos físicos, humanos ou não. A imagem luz que diluída no ambiente é rebatida ganha poderes semelhantes ao som, é vista e sentida mesmo quando não olhamos para ela directamente. É a imagem-luz para ser lida num regime de visibilidade que pode ou não incluir significados, é em suma, uma luz estímulo. Os sons por sua vez ganham uma materialidade visual.

Cada época tem uma cultura visual, um regime de visibilidade, a nossa inclui a audiovisão. Audioimagem, audiovisão, visuaudição, síncrese, extensão e temporalização são ideias propostas pelo teórico, professor, compositor e realizador francês, Michel Chion, numa série de trabalhos que culminam na obra L’audio-vision em 1991. Falamos da áudio-imagem quando algo que acontece fora do ecrã, mesmo fora do espaço físico onde tudo é ajustado, algo externo aos elementos que se compõem, algo que ao acontecer, interfere no espaço mental de quem quer que esteja a realizar uma interacção. Este fenómeno que Michel Chion define como síntese do audiovisual, ganha autoridade e é explorado por ser uma construção puramente mental.

O som traz constantemente, ao longo de uma série de efeitos, os sentimentos e os significados de como um fenómeno é atribuído à imagem parecendo ‘naturalmente’ pertencer a essa imagem. A definição do audiovisual é proposta pelas circunstâncias onde a percepção é focalizada conscientemente sobre o audível e em cima do qual o contexto visual aplica uma influência predominante, enriquecendo ou deformando a percepção. A condição do audiovisual como consequência dos sons e das imagens combinados não se pressupõe à posteriori, pois a sua percepção é diferenciada. Os sons e as imagens combinados são percebidos como uma organização do espaço-tempo. A imagem tem na sua natureza o espaço enquanto o som tem o tempo.

O trabalho com múltiplas projecções dos VJs e com um fluxo e pulsação de imagens, de gráficos e de luzes é mais próximo do videoclipe do que do cinema figurativo. Tanto a evolução da imagem quanto a sua vinculação directa com o som, no sentido de acompanhar ou ser por ele acompanhado, diz respeito a outro regime audiovisual. Arlindo Machado aponta caminhos para pensarmos esta cultura como tendência da produção contemporânea na qual a sua estrutura não é imagem ou som, só pode ser entendida em termos do audiovisual, ou por uma “estrutura motovisual”: “As imagens do [vídeo] clipe têm sido tão

esmagadoramente contaminadas pelas suas trilhas musicais, que acaba por ser inevitável a sua conversão em música, isto é, numa calculada, rítmica e

energética evolução de formas no tempo. Nesse sentido, pode ser muito útil observar como o [vídeo] clipe está a evoluir de um mero adendo figurativo da música para uma estrutura motovisual que é, ela também, em essência, de natureza musical”. (Machado, op. cit. 2000, p.178)

Esta “estrutura motovisual” está profundamente ligada com as noções de ritmo consagradas por imagem e som. Estando directamente associado ao movimento, o ritmo é uma sequência de eventos temporais justapostos que criam uma unidade métrica, que pode ou não ser repetida. A ideia de ritmo é bastante abrangente e pode ser analisada de diversas formas, desde a organização do movimento, até às sensações temporais. De qualquer forma, o ritmo interessa- nos aqui pela correspondência directa que exerce sobre os movimentos visuais. É segundo uma perspectiva de ‘unificação’ sensorial que Michel Chion na sua obra Le Son (1998) classifica o ritmo como uma forma de “trans-sensorialidade”, que diferencia da “inter-sensorialidade” ou do simbolismo que pode regular uma correspondência entre sentidos. A trans-sensorialidade é relativa a uma

percepção que se define de forma una e partilhada entre os diferentes domínios perceptivos, implicando todos sentidos mas transcendendo-os. Os sentidos são assim considerados como veículos de uma sensação que transcende a sua

especificidade. O ritmo pode então considerar-se uma forma de trans-sensoria- lidade, a principal conforme Chion, bem como as sensações tácteis, de matéria e textura. Esta abordagem trans-sensorial torna-se útil para a compreensão de possibilidades de articulação entre som e imagem que jogam com uma

consciência de equivalência sensorial produzida por ambos os estímulos, mas que ao mesmo tempo os transcendem numa percepção unificada. Embora o ritmo tenha natural afinidade com a imagem e movimento, não apenas pela própria afinidade temporal que partilham som e imagem, está também presente nas imagens estáticas. O ritmo é igualmente responsável pela dimensão temporal de uma obra. Tanto na arte electrónica como na música, a disposição rítmica é um factor de relevância ímpar, que acrescenta ou diminui a sensação de tempo do espectador/ouvinte. DJs e VJs constroem um conglutinado rítmico sonoro e visual. Pode haver complementaridade, quando os dois funcionam em ritmos semelhantes, ou ao contrário cada um dos dois segue caminhos próprios e em alguns momentos cruzam-se. Este é a “estrutura motovisual” desenhada pela sincronia e/ou assíncronia. Como as manipulações das imagens e dos sons se proporcionam ao vivo, é a partir do jogo entre os dois que acontece a montagem, que estabelece o ritmo como um todo e se desenha um espaço.

Existe uma assinalada ligação entre um objecto fílmico, como o cinema ou vídeo, e a junção de áudio. Em audiovisual, existe a capacidade de se estabelecerem relações entre imagem e som através da síncrese. A síncrese, por si, permite que as imagens em movimento sugiram corpo e presença espacial. A noção de corpo está associada à massa do objecto, enquanto que, a presença espacial está associada à localização no espaço fílmico. A expressão material do objecto é devidamente percepcionada quando, mentalmente, se funde aquilo que ouve com aquilo que se vê. Em VJing, por sua vez, não existe essa linearidade, embora se possam construir momentos em que a imagem sugira a sonoridade que está a ser ouvida, por exemplo, o VJ pode usar imagens de um DJ a fazer scratch no cd, e nesse preciso momento o DJ estar realmente a fazer tal. Aqui existe a síncrese, a junção do áudio e da visão.

Som e imagem não podem ser pensados separadamente, são simultâneos e interligados, são audiovisão. A imagem parece musical, a música soa visual.Somos sugeridos para momentos onde a sinestesia predomina. As convergências entre imagem e som, constituem assim, as experiências audiovisuais oferecidas pelas novas produções performativas artísticas, tal como em VJing. As artes do espaço e as artes do tempo convergem-se assim, em novas formas artísticas integrais fazendo com que as linguagens estéticas se concentrem perante os fenómenos perceptivos e respectivos sentidos por estes convocados.