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Capítulo III Situação sociolinguística de Angola

LÍNGUAS Kikongo

3.2. Situação do português

3.2.1. Implantação do português em Angola

O processo de implantação do português em Angola e a sua consequente difusão resulta da colonização portuguesa em África, ao longo de quase cinco séculos. Constitui um dos capítulos da história de Portugal e da sua língua, quando esse país se lançou na aventura da conquista de outros mundos, por razões económicas e de expansão territorial (do império). Com um quadro histórico diverso, o português foi-se implantando paulatinamente, à medida que a presença portuguesa se impunha. Simbolicamente, o ano de 1482, quando a armada portuguesa, capitaneada por Diogo Cão, chega à foz do rio Zaire, no antigo reino do Congo, marca o início da convivência entre as populações africanas e europeias e as respetivas línguas, da qual resultou a variedade do português falada atualmente no país.

Em termos gerais, podemos considerar que a implantação e difusão do português em Angola conheceu três períodos históricos distintos, correspondentes a três fases da história dos dois povos, seguindo a perspetiva de Chavagne (2005:20-21), na qual se

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baseia a descrição detalhada de Filusová (2012:10-18). Cada uma dessas etapas é marcada por vários factos, favoráveis ou não ao desenvolvimento do português e das línguas locais, de que aqui damos conta sucintamente.

Primeiro período – séc. XV a XIX: correspondente à fase dos Descobrimentos e da expansão marítima e comercial, em que Portugal se lança na aventura da descoberta do caminho marítimo para a Índia, em busca de especiarias. Linguisticamente, destaca-se o primeiro contacto entre o português e o Kikongo, podendo ser considerada a fase inicial da implantação do português, marcada pela adoção supostamente voluntária da língua pelos nativos111; e a convivência “pacífica” entre o português e as línguas locais, o Kikongo e o Kimbundu, nos reinos do Congo e de Angola, nesses primeiros momentos da presença portuguesa (Vansina 2001:273; apud Inverno 2009a:2).

Segundo período – séc. XIX até 1974: coincidente com a fase de maior ocupação militar portuguesa (em que muitos dos soldados eram angolanos e cuja formação militar era feita em português) e a consequente colonização dos territórios, na altura pertencentes a Portugal, provocando o aumento da população branca112. Dois factos linguísticos de

relevo a assinalar nesse período:

• Proibição do uso público das línguas autóctones (na altura classificadas errada e pejorativamente como simples “dialetos”) e a imposição do português: entre 1764 e 1772, D. Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho, governador português em Angola, na época, inicia essa ação, ainda no período anterior, ao determinar que os portugueses ensinassem a língua portuguesa aos filhos e também aos negros, como no Brasil. Esta política continuou com Norton de Matos, também Governador em Angola, que, através do conhecido Decreto n.º 77 de 9 de dezembro de 1921, proibiu o uso das “línguas indígenas” no ensino, que não fosse como auxiliares na catequese, para muitos uma atitude glotofágica em relação a essas línguas (Adriano 2014b:60; Cabral 2005:14; Costa 2006:44-46; Mingas 2000:32-33). Esta medida reforça o papel do português na sociedade,

111 Segundo Zau (2007:30) e Samuels (2011:25), referidos por Miguel (2013:115), os habitantes do Congo adotaram o catolicismo, a cultura e a língua portuguesa, voluntariamente, a partir do interesse do próprio soberano local, o Rei Nzinga Nbemba (Nkuvu), que solicitou ao seu homólogo português, D. João II, apoio para a educação do povo bacongo em aspetos daquela civilização europeia.

112 Esta situação foi ditada por dois factos importantes: os receios da independência do Brasil (que poderia suscitar processo semelhante em Angola) e a obrigação de cada potência colonizadora exercer o direito e o controlo efetivo da sua porção territorial, saída da célebre Conferência de Berlim (1885-1886), na qual se decidiu a partilha de África pelos europeus (Inverno 2009a:3; Filusová 2012:12-13).

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criando condições para a sua hegemonia perante as outras línguas em presença, ao longo do século XX.

• Implementação da política de assimilação, que visou a aculturação dos povos nativos a hábitos e valores portugueses, considerados “civilizados”, entre os quais se encontrava o domínio da língua portuguesa. Como consequência, a população local ficou estratificada em assimilados e indígenas. Pertenciam ao primeiro grupo os negros que adotassem os valores da civilização portuguesa, dos quais o conhecimento do português; e ao segundo faziam parte os “indivíduos de raça negra e os seus descendentes” (Mingas 2000:47), que não possuíssem os hábitos portugueses.

Terceiro período - de 1974 até à atualidade: corresponde principalmente à fase da descolonização, refletida na independência do país, em 1975. Este acontecimento teve como consequências imediatas a saída maciça da população de matriz europeia e a emergência de uma elite tipicamente angolana. No plano linguístico, realçam-se dois factos: a adoção do português como língua oficial, garantindo a continuidade do seu uso pelos angolanos, apesar de considerado, no passado, instrumento de colonização, ao mesmo tempo que se lhe insufla outra dinâmica e vitalidade inovadoras113; e a emergência de uma variedade do português angolano, marcadamente caracterizada por traços das línguas locais, e ditada pela nova realidade política do país, incentivadora do resgate e reafirmação da identidade africana.

Estes dois aspetos remetem para uma nova etapa de implantação do português, marcada sobretudo pela forte e rápida difusão dessa língua no seio dos angolanos, concorrendo, para tal, três fatores fundamentais: (i) as políticas de gratuidade, obrigatoriedade e massificação de ensino, implementadas a seguir à independência, que permitiram o acesso de muitos angolanos à escola e a consequente aprendizagem formal e massificada do português, em todo o país; (ii) a intensificação das guerras pós- independência e pós-eleitoral, que forçaram o êxodo das populações das zonas rurais para as cidades, em busca de segurança, obrigando-as à rápida adoção do português, para a sua inserção na nova realidade social; e (iii) o serviço militar obrigatório, que também ajudou a expandir e reforçar a presença do português em todo o território nacional, já que este

113 Segundo Filusová (2012:17), durante a colonização, “o português torna-se um instrumento valioso de dominação colonial, cuja expansão por todo o território visava facilitar o controlo de toda a colónia”.

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processo envolvia o recrutamento de jovens de várias origens étnicas, enviados para diferentes partes do país, onde esta era a única língua de comunicação.

A questão de adoção oficial do português tem grande simbolismo. Integra-se num processo comum à grande maioria dos países africanos que mantiveram as línguas dos antigos colonizadores para essa função. Marcando a nacionalização formal dessa língua, essa adoção resulta da opção livre do Estado angolano, por razões históricas, políticas, linguísticas, económicas e diplomáticas, como enfatizado por muitos autores114.

Face a esse cenário e independentemente das circunstâncias em que ocorreu esse processo, o português encontrou bases políticas e jurídicas para se tornar a língua de todos os angolanos. Com esse estatuto, foi-lhe também garantido o apoio institucional e científico, para a sua promoção e desenvolvimento, fomentando-se o seu ensino e aprendizagem, e também a investigação científica. Constitucionalmente, o português passou a ser também língua angolana, juntamente com as outras línguas africanas115.

Sendo a única língua oficial, o português torna-se uma língua plurifuncional, usada em quase em todos os domínios da vida sociopolítica, económica e cultural, como já dissemos no início do capítulo. É também a língua veicular no país, sobretudo nas cidades, pois permite a comunicação entre os vários grupos etnolinguísticos, ocupando todo o espaço nacional e funcionando assim como instrumento de unidade nacional. Como única língua usada no sistema de ensino, é o meio privilegiado de acesso aos conhecimentos científicos e técnicos.

Celebrado e assumido, por conseguinte, o português deixou de ser exclusivamente língua dos portugueses para ser também dos africanos, pois como bem afirmou Amílcar Cabral, citado por Ferreira (1988:19): “O português (...) é uma das melhores coisas que

114 Para uma melhor compreensão dessa questão, ver Ferreira (1988:22-28), que aborda detalhadamente as razões de adoção da língua do ex-colonizador como oficial pelos cinco “Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP)”: Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e S. Tomé e Príncipe.

115 Parece-nos, no entanto, que a adoção do português como língua oficial em Angola foi primeiro uma decisão política e só depois jurídica. Segundo Coelho (2004), este estatuto foi declarado “no próprio acto da proclamação da independência em 11 de Novembro de 1975”, por Agostinho Neto, embora mal recebido por muitos presentes, a julgar pelos apupos que se seguiram ao anúncio. Já para Cabral (2005:27), a primeira menção desse estatuto está documentada nas decisões de uma reunião política, a “3.ª Reunião Ordinária do MPLA”, em 1978. Como se pode compreender, em nenhuma das primeiras normas jurídicas (sobretudo as duas anteriores leis constitucionais, no pós-independência), vinha expressa esta questão. Só muito mais tarde, na atual CRA – Constituição da República de Angola, de 2010, no ponto 1 do Artigo 19.º, se estatuiu claramente que “A língua oficial da República de Angola é o português”, legitimando-a também “de jure”, nessa função, pois só o era “de facto”.

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os tugas nos deixaram, porque a língua não é prova de nada mais senão um instrumento para os homens se relacionarem com os outros.”; ou como enaltecido pelo escritor angolano Ondjaki, referido por Leão, Gamito e Costa (2007:173): “Depois de língua conquistadora, a língua conquistada virou raiz reprodutora – arma e fogo artificial; embrião e simultânea gravidez”. Cremos que subjaz a todas essas palavras a real dimensão e relevância do português adotado nos nossos países.