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Capítulo I Questões introdutórias ao estudo

1. Alguns conceitos de base e especificação do objeto de estudo

1.3. O léxico como material de partida

1.3.2. A palavra como unidade do léxico

Para o nosso estudo, interessam-nos as palavras das classes abertas, adotando a distinção em Booij 2005:4: “noção de ‘palavra’ em sentido abstrato (lexema) e noção de ‘palavra’ no sentido de ‘palavra concreta tal como usada numa frase’”, acrescentando o autor que “[a]s palavras concretas walk, walks, walked e walking podem ser qualificadas como formas de palavra do lexema WALK” (t. n.). Se, nos estudos sobre o léxico, se coloca no centro a “palavra” como uma das unidades fundamentais da estrutura linguística (cf. Lyons 2004:14), a sua definição clara é uma tarefa complexa, como reconhecem muitos autores.

O conceito parece depender muito da perspetiva teórica que se adota, consoante o domínio linguístico em que se insere o estudo, ou até mesmo consoante a tipologia das línguas (cf. Matthews 1991:3-4; Dixon e Aikhenvald 2002:3-4). No meio da diversidade de definições, parte-se sempre da noção vulgar que se tem desse termo, assente na ideia comum que cada falante tem de uma palavra na sua língua: para os alfabetizados, na escrita as palavras reconhecem-se facilmente pela sua forma gráfica e por estarem delimitadas por espaços em branco. Mas na oralidade, essa caracterização não se aplica, evidentemente. Em qualquer caso, considera-se a palavra como um signo (Aronoff 1994:9-11)13, possuindo determinadas propriedades em diferentes domínios da gramática e podendo desempenhar determinadas funções gramaticais. Como unidade do léxico,

12 Como é sabido, foi Aristóteles quem criou as “categorias de pensamento” (também chamadas “categorias aristotélicas”), que deram origem às “partes do discurso”, as quais se chamariam posteriormente “categorias gramaticais” e, finalmente, “classes de palavras” (Kristeva 2007:122). O português é uma língua estruturada em 10 classes de palavras: nomes, verbos, adjetivos, artigos, pronomes, numerais (variáveis), preposições, advérbios, conjunções e preposições (invariáveis). Para uma explicação mais aprofundada sobre as “categorias ou partes do discurso”, não só do inglês, mas também aplicável a línguas como o português, ver Akmajian et al. (1992:17-20). Ver também Dixon e Aikhenvald (2002:32-34), sobre o estatuto social das palavras, nas diferentes línguas do mundo, condicionado pela cultura de cada povo. 13 Como sabido, na perspetiva sausuriana, a associação arbitrária de uma imagem mental sonora a um determinado conceito corresponde a um signo verbal.

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considerada de forma abstrata, a palavra identifica-se, assim, por uma forma, um significado, uma classe lexical/categoria gramatical e por um conjunto de outras especificações, podendo ser realizada sob uma ou várias formas; nesta perspetiva, está em causa a distinção entre lexema (palavra abstrata) e palavra concreta, flexionada (se a sua classe lexical o admitir) – ver Matthews (1991:1, 30-31),Aronoff (1994:9-11) ou Spencer (2010:328).

Reconhece-se que a definição de “palavra” é uma tarefa complicada e que continua a suscitar variadas posições controversas14. Remete para interpretações mais complexas, ao ponto de ser polissémica, a julgar pela variedade de conceitos a ela associados. Do seu sentido etimológico (do grego parabole, via latim parabola, inicialmente significando ‘comparação’ – lembre-se o significado atual de ‘parábola’), palavra remete para, pelo menos, sete definições, consoante o domínio do conhecimento linguístico: (i) palavra fonológica ou prosódica; (ii) palavra sintática; (iii) palavra morfológica; (iv) palavra semântica; (v) lexema; (vi) forma de palavra e (vii) palavra ortográfica15.

No presente trabalho, interessa-nos essencialmente o conceito de “palavra morfológica”. Morfologicamente, as palavras são estruturas ou unidades maiores analisáveis em unidades menores a que se dá o nome de constituintes morfológicos ou “morfemas”16. Assim, podemos dizer que, em português, uma palavra morfológica

nominal como cabelo é constituída por radical (simples) e índice temático (CABEL- RAD (simples) + o IT) e que cabeleira apresenta um radical complexo, concretamente um radical

14 Ver ainda, por exemplo, Anderson (1992:9-10), Azuaga (1996:217), Babin (2000:1-2), Basílio (2000:9- 10), Halliday e Yallop (2007:1-3), Lehmann e Martin-Berthet (2003:1), Villalva (2008:16).

15 Para o caso particular do português, as definições desses conceitos podem encontrar-se em Azuaga (1996:216-223) e Villalva (2008:15-25); no caso de outras línguas, principalmente as europeias, como o inglês e o francês, ver-se Akmajian et al. (1992), Anderson (1992), Dixon e Aikhenvald (2002), Lieber (2009), Lowie (1998), Lyons (1968), Matthews (1991), Mortureux (2004), Togeby (2004) e Zwicky (1990). 16 Desde a sua origem, com os estruturalistas, passando pelos generativistas, até aos nossos dias, “morfema” é um dos termos/conceitos centrais em Morfologia, tal como “palavra”, concretamente no estudo da estrutura interna das palavras. No entanto, ao longo desse percurso, muitos linguistas têm vindo a questionar a noção clássica desse termo, definido como unidade formal mínima e indivisível, que entra na constituição das palavras, e cuja forma está associada a um significado próprio. Entende-se, pois, que nem sempre é possível esta associação, para além de outros constrangimentos (Anderson 1992; Aronoff 1976; Aronoff e Feudman 2011; Bazell 2004; Lieber 2009; Villalva 1994), o que sugere o uso de outros termos. Sem nos envolvermos em qualquer discussão teórica sobre o assunto, neste trabalho, optámos pelo termo “constituintes morfológicos”, como unidades de análise morfológica, em detrimento de “morfemas”, seguindo a perspetiva de Aronoff (1976:7-15), onde o autor discute e “põem em causa a tradicional definição de morfema, e consequentemente a sua pertinência no domínio da análise morfológica” (Villalva s.d.:2); ver também Rio-Torto 1998:16-17). Sendo assim, ao longo da nossa abordagem, o termo morfema será usado apenas em contexto de citação de um determinado autor. Usaremos também o termo “elemento morfológico” como sinónimo de constituinte morfológico, essencialmente no caso de afixos.

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derivado (CABELEIR- RAD (complexo, com sufixo -eir)+ a IT)17. As palavras simples possuem

um radical simples, não segmentável em unidades menores, como em cabelo, livro, amar, contar, bonita, certo. As palavras complexas possuem um radical decomponível em constituintes menores portadores de maior ou menor significação, dependendo a sua interpretação do conjunto formado pelo radical juntamente com o(s) afixo(s)18. Considerando as palavras realidade, descontável, coisificar, verifica-se que estruturalmente têm os radicais complexos REALIDAD-, DESCONTÁVEL-, COISIFIC- , decomponíveis numa base radical simples (REAL-, CONT-, COIS-) e numa parte afixal derivacional (respetivamente, os prefixos e/ou sufixos -idad-, des- e -vel, -ific-)19. Para

além de traços semânticos, os sufixos acrescentam às bases propriedades morfológicas e morfossintáticas, especificando, por exemplo, as suas categorias gramaticais.

Para além das palavras morfologicamente simples e das morfologicamente complexas (afixadas e compostas, com significado regido por maior ou menor grau de composicionalidade semântica), o conceito de palavra recobre igualmente unidades multilexicais, expressões idiomáticas mais ou menos fixas, provérbios, etc. (“unidades multipalavras”, multi-word units, em Booij 2010:19), correspondendo estes casos a unidades com um significado não composicional (por exemplo, estar com a pulga atrás da orelha ‘desconfiar’; dar à sola ‘fugir’). O princípio de composicionalidade, formulado por Friedrich Ludwig Gottlob Freze, lógico e matemático alemão (1848-1925), e desenvolvido por correntes linguísticas modernas, está diretamente relacionado com a interpretação do significado das unidades complexas, tendo em conta os seus constituintes. Assim, “Quando a interpretação de uma expressão é obtida a partir do significado dos elementos que a formam, diz-se que o seu significado é composicional (...). Quando isso não acontece, (...), diz-se que o seu significado não é composicional” (Bacelar do Nascimento 2013:216). Composicionalidade é, portanto, o princípio básico para a interpretação de expressões linguísticas complexas: “A significação de uma forma

17 Para uma descrição mais aprofundada dos constituintes de uma “palavra morfológica”, em português, veja-se Villalva (2008:22). Em Selkirk (2004:274ss.), faz-se uma abordagem sobre a teoria geral da estrutura das palavras complexas (“sintaxe das palavras complexas”), no âmbito da gramática generativa. 18 Ver, entre muitos outros, Azuaga (1996:217-218), Lowie (1998:1-2), Rio-Torto (2006) e Villalva (2008:29). Segundo Booij (2010:1), na abordagem baseada em morfemas, uma palavra complexa é concebida como uma combinação de morfemas, sendo que a análise morfológica se define como a sintaxe de morfemas.

19 Não se incluem nesses exemplos radicais de palavras complexas que podem ser caracterizados pela coexistência de dois ou mais radicais de palavras distintas como os que ocorrem em compostos do tipo:

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gramaticalmente complexa é uma função composicional das significações dos seus constituintes gramaticais” (t.n.), numa relação entre o todo e as partes (Cruse 2011:65).

“Palavra” pode ter como correspondente “unidade lexical”, conceito lato, conforme definido no Dic. de Termos Linguísticos do ILTEC online (“unidade que diz respeito ao nível da análise relativo ao léxico [podendo] recobrir várias realidades”20),

equivalente de “item lexical”, usado em muitas obras (Bauer 2004:64; Duarte 2000:53; Hoey 2005:1; Lowie 1998:5; Vilela 1979:15). No nosso trabalho, usaremos “unidade lexical” e “item lexical” também como equivalentes e podendo ambos corresponder a “palavra”, como em muitos trabalhos de descrição linguística21 e para abarcar, quando

necessário, todas as unidades pertencentes ao léxico, seja qual for a sua estrutura, natureza ou função, incluindo as palavras funcionais.