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Capítulo III Situação sociolinguística de Angola

LÍNGUAS Kikongo

3.3. Realidade histórico-social geral de Luanda

3.3.3. Traços característicos do Português Oral de Luanda

O português oral de Luanda (POL) define-se como uma subvariedade do PA, não padronizada, periférica e usada em contextos informais, numa sociedade caracterizada por uma grande heterogeneidade sociocultural e linguística (cf. 3.3.2). Consoante a época e as condições socioculturais efetivas, o processo de formação, desenvolvimento e afirmação do POL foi facilitado por fatores diversos, próprios da dinâmica social luandense. Além daqueles fatores já mencionados no âmbito do PA, destacam-se especificamente os seguintes, baseando-nos nas abordagens de Mingas (2000:50), Quelhas (2006) e Weeler e Pélissier (2016:116-117):

(i) Presença portuguesa efetivada, primeiro, pelas práticas de escravidão e comércio, e depois, pela colonização, ditando o contacto entre o Kimbundu e o português;

(ii) Desenvolvimento socioeconómico e industrial de Luanda, sobretudo a partir do início da década de 1960, atraindo muitas populações rurais para essa cidade, que, confinadas nos musseques, desenvolveram uma variedade própria do português, como reflexo das suas origens;

(iii) Europeização da realidade sociocultural de Luanda, com a imposição de valores culturais de matriz europeia, dos quais o português, obrigando os autóctones a aprender essa língua, mas em situação de informalidade;

(iv) Questão sociocultural e demográfica: a maioria dos colonos portugueses mandados para Angola, em geral, e em Luanda, particularmente, era de baixa educação e pobre. Pode depreender-se que a variedade falada por esses colonos já estava bastante afastada da norma do PE e isso ajudou na formação do POL. Depreende-se também que o português falado pela população branca luandense, em número reduzido, não foi capaz de se impor ao Kimbundu, a língua da população maioritária dessa urbe.

(v) Deficiências no processo de ensino e aprendizagem do português, por escassez de professores qualificados, com a saída dos portugueses, logo após a independência. Com a massificação do ensino, muita gente foi para a escola, mas esta não estava preparada para a demanda, recorrendo a professores sem preparação adequada, gerando uma aprendizagem deficitária do português.

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Posto isto, passamos agora a descrever os traços típicos do POL, nos domínios fonético-fonológico, lexicossemântico e sintático (este último em interface com os domínios lexical e morfológico). Essa descrição não é de forma alguma exaustiva, por não ser esse o objetivo principal desta tese, e baseia-se em alguma bibliografia afim, da qual também retirámos alguns exemplos (outros são de nossa autoria)140.

3.3.3.1. Aspetos fónicos

As principais peculiaridades do POL neste domínio têm a ver com a realização das vogais e das consoantes, quer em termos físico-articulatórios quer em termos funcionais. São traços que consistem fundamentalmente na maior abertura do timbre das vogais e em fenómenos relacionados com o comportamento das consoantes. Alguns dos fenómenos adiante referidos podem ocorrer em variedades do PE e noutras variedades do português (em particular, o caso em (viii) relativo às vogais e os casos em (iii) e (iv) relativos às consoantes); aqui, tomamo-los como características do POL, apesar desse facto geral. Em relação ao comportamento das vogais, o sistema vocálico dessa subvariedade pode já ser caracterizado globalmente como estável.

I. Vogais

(i) A vogal [ ] do PE é realizada como [ ] ou [ ], em posição átona medial ou final da palavra: a) [ ] pequenino; b) [ / ] debate (cf. Gonçalves 2013:163)

(ii) As vogais [ ] e [ ] do PE, em posição átona, são pronunciadas como [ ] e [ ], respetivamente: a) [ ] aluno; b) [ ] colega (idem:164).

(iii) As vogais médias [ ], atestadas em PE em posição tónica, são pronunciadas como [ ], o que demonstra a ausência de contraste entre esses dois grupos de sons, quanto ao traço de altura: a) [' ] dedo (cf. Mingas

140 Cf. Bento (2010), Cabral (2005), Chavagne (2005), Gärtner (1989; 1996), Gonçalves (2013), Hagemeijer (2016), Inverno (2008; 2009a; 2009b), Mendes (1985), Miguel (2014), Mingas (2000), Nzau (2011), Nzau, Venâncio e Sardinha (2013), Petter (2008) e Vilela (1995). Lembra-se que os exemplos retomados desses trabalhos foram adaptados de acordo com a nossa perspetiva de análise.

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2000:64); b) [ ] casa; c) [ ] povo. Este aspeto é também extensivo às vogais homólogas nasais [ẽ õ], pronunciadas como [ ã ]: a) [ ] vento

(cf. Mingas 2000:64); b) [ ] recanto (cf. Undolo 2016:184); c) [ ] montra.

(iv) A vogal grafada como <e>, em posição inicial absoluta da palavra e representada em PE como categoria vazia, em palavras como escola, ou como [ ], em palavras como exército, no POL corresponde geralmente a [ ]: a) [ ] escola; b) [ ] exército.

(v) A vogal [ ], correspondente ao grafema <e>, atestada no PE, quando precede um som palatal, realiza-se como [ ], no POL: a) [ ] cerveja (cf. Gonçalves 2013:164); b) [ ] coelho.

(vi) O ditongo médio [ ] do PE, grafado <ei>, realiza-se como [ ] ou é reduzido à vogal [ ], com a supressão do glide [ ]: a) [ ] ou [ ] beira (cf. Mingas 2000:66); b) [ ] ou [ ] peixe (idem).

(vii) Dos ditongos nasais, destaca-se a ocorrência de vogais abertas [ ], em vez das médias [ ], em consequência dos traços dessas vogais nasais, já focados acima: a) [ também (cf. Chavagne 2005:104); b) [ ȷ ] balões.

(viii) Introdução de uma vogal epentética ou paragógica, [ ] ou [ ] (esta última vogal pode tomar a forma de [ ]), a seguir a sílabas terminadas em consoante, provavelmente para se conformarem à estrutura silábica das línguas bantas que não admitem consoantes em coda (interna/final), tipicamente CV: a) [ ] dificuldade (cf. Gonçalves 2013:163); b) [ ] açorda (Mingas 2000:163); c) [ ] vir (cf. Mendes 1985:159); d) [ ] beber (cf. Gonçalves 2013:163).

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II. Consoantes

(i) Ocorrência de consoantes prenasalizadas, em posição inicial absoluta, não atestadas no PE, uma herança das LBA: a) [ ] mboa ‘rapariga, moça’ (cf. Chavagne 2005:114); b) [ ] ndengue ‘criança, miúdo’.

(ii) Variação alofónica entre as vibrantes ([ R]), quer em posição intervocálica quer em posição inicial absoluta de palavra: a) [ R ] ~ [ ] caro (adj); b)

[ ] carro (nome); c) [ ] roda; d) [ R ] corrida.

(iii) A lateral velarizada, em final de sílaba, realiza-se como vibrante alveolar simples [ ]: a) [ ũ] algum; b) [ ] alto. Contrariamente, as vibrantes [ ] e [R] lateralizam-se em alveolar [ ]: a) [ ] marido; b) [ ] rico.

(iv) Supressão da consoante em posição de coda da sílaba final, sobretudo o [ ] dos verbos no infinitivo, também como tendência para a conformação com a estrutura silábica CV das línguas bantas: a) cantar; b) [ ] cometer; c) [ ] partir; d) [ ] sabor. O apagamento da rótica final parece não dever-se necessariamente à influência das línguas bantas, mas sim é uma tendência universal em português, podendo ocorrer também nas variedades do PE padrão (nomeadamente em formas do infinitivo, e.g., falaØ mal; comeØ bem) e do PB (e.g., dançaØ pagode; sentiØ frio). Sobre esta questão, vejam-se Brandão, Mota e Cunha (2003), Brandão, Pessanha, Pontes e Correia (2017) e Oliveira (2018), entre outros autores.

(v) Ocorrência de consoante fricativa glotal [ ], não existente em PE, em início ou no meio de palavra; trata-se de uma das heranças das línguas bantas, concretamente

do Kimbundu: e.g.: a) [] Hoji ya Henda ‘antropónimo/topónimo’;

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3.3.3.2. Aspetos lexicossemânticos

Esses traços situam-se na interface entre os aspetos lexicais e semânticos, resultantes do contributo das LN e do processo inovador interno que é característico de línguas como o português, num contexto de intensa pressão social, como o luandense.

Considerando (i) os empréstimos lexicais bantos no POL e (ii) neologismos internos, criados quer pela formação de novas palavras quer pelo processo de inovação lexicossemântica das palavras vernáculas do português, nesta subsecção, ocupamo-nos apenas e sucintamente do segundo ponto (cf. a Tabela 16). A questão dos empréstimos bantos no POL é tratada no Capítulo V, por constituir o objeto principal da tese.

Tabela 16: Neologismos internos do POL

Palavra Significado novo Significado original (normal)

bife farpa fatia de carne de vaca grelhada ou

frita, depois de temperada

bifar lançar farpas formado a partir de bife

catorzinha rapariga adolescente, entre os 12 e 16 anos

que leva vida considerada leviana

(?) diminutivo do numeral catorze

cromar lavar carro com brilho revestir uma camada de crómio

dar brilho lavar carro / engraxar sapatos fazer brilhar algo (limpeza).

emagrecer apinhar-se (em táxis informais) enfraquecer, definhar

gasosa gorjeta, suborno refrigerante, bebida gaseificada

gasosar dar gorjeta, subornar ---

ignorante indivíduo que despreza, denigre (finge não

conhecer) outrem

inculto, que não sabe

ignorar desprezar, denegrir não saber

madrinha tratamento informal de uma senhora

respeitável

mulher que é testemunha de baptismo ou casamento

manga chefe, rico; indivíduo social e

economicamente importante

fruta de mangueira...

partir braço prática aliciante de extorquir bens magoar / quebrar o braço a alguém

pente prática de extorsão ou usurpação, geralmente

por coação

utensílio para pentear cabelo

pentear extorquir, usurpar. compor ou alisar o cabelo

poucalizar desconsiderar, desprezar, humilhar cf. “fazer pouco de alguém”

tirar o pé arrancar o carro (contexto de serviço de táxi

informal)

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Subsidiariamente, assinalamos também o contributo de outras línguas em presença ou outra(s) variedade(s) do português no enriquecimento do léxico do POL, embora alguns desses empréstimos não sejam específicos a essa subvariedade. Neste caso, destacam-se palavras adotadas de: (i) PB: capoeira ‘jogo ou desporto de luta’, cambalacho ‘transação ardilosa’, fofoca ‘mexerico, intriga, bisbilhotice’, goleiro ‘guarda redes (futebol…)’, guaraná ‘refrigerante de origem brasileira’, jabaculé ~ jabá ‘dinheiro’; (ii) lingala: kwasa-kwasa ‘dança rítmica típica congolesa’, macayabo ‘prato feito à base de corvina frita’, malembe-malembe ‘calmamente, devagar’, mamaleque ‘mulher de origem congolesa’, miqué-miqué ‘notas de dólares americanos de menor valor facial (de 1 a 5 usd); (iii) inglês: bosse ‘chefe, patrão; indivíduo influente’, bisno ‘negociata; burla, furto’, game ‘situação desagradável, problema’; (iv) francês: bureau ‘gabinete’; maquis ‘guerrilha’; naife ‘ignorante’141; (v). Árabe: faíta (< fahita) ‘comida

de tradição muçulmana, feita à base de carne de carneiro e vaca, frango, camarão e pão sem fermento’; salamaleco (< salamalekum) ‘saudação em Árabe, que significa: «que a paz esteja consigo»’; (vi) mandarim: ni hao ‘saudação equivalente a «olá»’).

3.3.3.3. Aspetos sintáticos (e interface com léxico e morfologia)

Um primeiro conjunto de traços situa-se na interface entre a sintaxe e o léxico. Têm muito a ver com as mudanças de natureza categorial que certas unidades lexicais sofrem, afetando as estruturas sintáticas nas quais estão integradas. Por exemplo, a supressão ou inserção de um elemento subcategorizado por uma determinada unidade lexical acarreta logo alteração da função desses constituintes da frase.