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Capítulo II Enquadramento teórico-metodológico de base sociolinguística

N. º Informante Sexo Idade Nível de instrução

2.4. Corpus POL: resultados globais

2.4.7. Interpretação dos resultados

Retomando alguns indicadores referidos ao longo das subsecções anteriores, observamos, neste ponto, a relevância dos resultados, no âmbito geral do trabalho, enquanto material representativo da fala espontânea da comunidade investigada. Situada numa abordagem qualitativa, a nossa reflexão apoia-se em várias teorias discutidas ao longo do trabalho e também no conhecimento que temos da realidade, partindo do pressuposto de que o ponto de vista e a atitude do investigador também são importantes na interpretação e explicação dos fenómenos em estudo.

• Quanto à interpretação dos resultados referentes às línguas bantas que emprestaram palavras ao POL, o Kimbundu destaca-se com 74% do total das palavras, é a língua que maior número de empréstimos forneceu à subvariedade do português em análise. Seguem-se um grupo de palavras bantas diversas (origem comum/indeterminada) e o Umbundu, com 12% e 9%, respetivamente. A partir destes resultados, interessa-nos ressaltar os seguintes aspetos:

(i) Em termos etnolinguísticos, Luanda, que é a comunidade de fala em estudo, classifica-se como região dos povos ambundos, cuja língua é o Kimbundu. Assim, é perfeitamente compreensível que os termos que referem aspetos identitários típicos dos caluandas, como usos e costumes, rituais, danças, culinária e outros, ainda hoje conservados, sejam veiculados nessa língua, e alguns deles adotados no português, para designarem determinadas realidades específicas. Em consequência, mesmo os falantes de outras línguas, uma vez inseridos na sociedade luandense, adquirem esse léxico, já integrado no POL;

(ii) Como observado em 3.3.2.1, abaixo, do ponto de vista sociolinguístico, o Kimbundu é uma das línguas que manteve, desde muito cedo (século XVI), o contacto mais intenso com o português, a par do Kikongo. Sendo a língua mais predominante nos territórios ocupados pelos portugueses, ainda que o português fosse a língua oficial, viria a ser a língua das elites luandenses, de matriz afro-

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portuguesa. Este facto proporcionou as condições para a inserção de muitas palavras dessa língua de adstrato (e mesmo de substrato) no POL;

(iii) Pelo seu valor numérico expressivo, os “quimbundismos” presentes no corpus constituem o material empírico de base para a análise linguística, neste trabalho; é uma das razões pelas quais o consideramos como língua de referência das LBA, como referido logo no início do Capítulo IV;

(iv) Como elemento do perfil dos informantes, o Kimbundu ocupa a segunda posição no elenco das línguas maternas dos entrevistados (cf. Tabela 2, acima), só ultrapassada pelo português. Portanto, este fator também poderá ter concorrido para a presença dominante dos empréstimos desta língua no corpus.

• Em relação à frequência de empréstimos por informante, sabe-se que quanto mais raras as variáveis menos se prestam à análise e quanto mais frequentes mais importantes se tornam para o estudo (Tagliamonte 2006:82-83). Pelos dados apresentados em 2.4.2, nenhum informante atingiu os 50% de uso do total dos empréstimos identificados, situando-se o valor mais alto nos 40% e o mais baixo nos 6%. Em princípio, esses resultados não diminuem a relevância e o valor dos dados, porque nos interessava detetar fundamentalmente o uso deste tipo de palavras nos discursos proferidos.

Como razões para estas discrepâncias, podemos avançar a associação do facto da não total uniformidade no tempo das entrevistas, o desconhecimento de muitos informantes sobre alguns assuntos abordados e os fatores de ordem psicoemocional (falta de motivação, receio em falar). Parece-nos que a questão da língua de origem do informante não pode colocar-se, pois o valor mais alto até pertence a alguém cuja LM não é o Kimbundu e que não nasceu em Luanda (cf. informante AGH, com 99 empréstimos). Pontualmente, interessa referir que as mulheres produziram os valores mais altos (99, 88, 74 e 72 empréstimos) e os homens, os mais baixos (17, 19, 20 e 25 empréstimos), talvez por causa dos empréstimos ligados à culinária, domínio sobretudo feminino, no contexto social em análise. A extensão da entrevista não pode ser determinante, por si só: tal como em determinadas entrevistas longas encontramos poucos empréstimos, em algumas entrevistas curtas identificámos muitos empréstimos.

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• Quanto à classe lexical dos empréstimos, constata-se que as novas palavras são acolhidas consoante a sua classe gramatical; constatámos que 87% dos empréstimos identificados são nomes e os outros verbos (5%) e adjetivos (8%), respetivamente. Estes resultados confirmam que, em situações de contacto linguístico, os nomes são a classe mais visível nos corpora, por a sua integração ser mais rápida e fácil; pode dever-se também ao facto de, nas entrevistas, as temáticas levarem a que tal acontecesse, não favorecendo tanto o uso de adjetivos.O significado de muitas dessas palavras restringe- se ao universo banto, daí que não encontrem formas equivalentes na LA. Desde muito cedo, essas palavras entraram no português, permitindo nomear as novas realidades que foram sendo descobertas ou conhecidas pelos portugueses. Quase todas elas traduzem aspetos típicos da cultura local, constituindo assim um dos elementos identitários intrínsecos dos povos que falam as LO das quais provêm os empréstimos. No caso dos 14 verbos, muitos deles criados a partir de radicais bantos já aportuguesados (tal como a maioria dos 15 adjetivos), parece-nos que a restrição vem do facto de o português não poder receber formas não flexionadas de verbos bantos. Provavelmente, este é um dos aspetos que facilitou a transformação de muitos verbos bantos em nomes, partindo da sua própria estrutura silábica (e.g., KUNANGA [ ] ‘folgar’ – verbo banto > cunanga (nome, em POL) ‘vadio’ – nome aportuguesado; a partir deste, já é possível formar-se o verbo cunangar ‘vadiar’), conforme se pode comprovar no Capítulo 5 (concretamente, referente a integração morfológica dos empréstimos).

• A recategorização lexical dos empréstimos bantos no POL corresponde à mudança de classe lexical que sofreram algumas dessas palavras, no processo de integração. Conforme constatámos nos dados em 2.4.4, há cinco tipos de mudança, com realce para V > N (19 casos, cerca de 7%) e N > ADJ (9 casos, 4%). Os outros três casos podem considerar-se residuais, já que apresentam valores bastante insignificantes. É de assinalar que 87% dessas palavras (222 empréstimos) mantiveram a sua classe lexical, destacando-se os nomes, como já referido no segundo item desta subsecção.

O que interessa aqui comentar é o facto de que, na sua integração, alguns desses empréstimos mudaram da sua categoria inicial, em banto, para uma nova, em português. Nesses casos, uma palavra, ao mudar de categoria, muda também de referente, passando a renomear novas entidades ou realidades, pela retoma de elementos já existentes na língua (Apothéloz e Reichler-Béguelin 1995; apud Silveira 2010:956-957). Consideremos, na tabela seguinte, alguns dos casos retirados dos dados gerais que

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mostram que este processo pode resultar da fácil adaptação de uma forma verbal banta terminada em -a a um nome do português, de tema em -a:

Tabela 9: Recategorização lexical de verbos

Empréstimo Étimo Classe

gramatical

Signficado

LO LA LO LA

cassumbula ku-sumbula V N tirar algo de alguém com destreza

brincadeira infantil; conquista subtil da mulher do outro

comba ku-komba V N varrer ritual do sétimo /

trigésimo dia dedicado aos defuntos

cunanga ku-nanga V N folgar; descansar indivíduo sem ocupação ou entregue ao ócio

quínguila ku-kingila V N esperar cambista informal de

moeda estrangeira

támbula ku-tambula V N receber ofertório religioso, entre os católicos.

zongola ku-zongola V N espreitar; observar à distância ou de forma discreta

bisbilhoteiro; delator; espião

zunga ku-zunga V N de kuzunga ‘vaguear,

andar sem destino’

venda ambulante, pelas ruas da cidade

• Acerca da variação do significado dos empréstimos, é evidente a mudança de significado de algumas palavras, quando são adotadas numa nova língua, sofrendo ou não transformações estruturais. Em PE, há exemplos dessa natureza, como bife (do inglês beef ‘carne bovina’), que passa a significar em português ‘fatia de carne de vaca grelhada ou frita, depois de temperada’ (Correia e Lemos 2005:55). No material empírico desta tese, também encontrámos empréstimos bantos que, integrados no POL, ganharam novos significados, passando a referir novas entidades. Trata-se apenas de 58 palavras, que perfazem 23% do total dos empréstimos, conforme os dados do Gráfico 9, em 2.4.5. Para uma interpretação mais adequada desse processo, consideremos alguns exemplos extraídos dos dados gerais (cf. Anexo 1):

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Tabela 10: Mudança de signifcado de empréstimos bantos no POL

Empréstimo Significado

LO LA

cafuné massagem; de kufuna ‘cravar, enterrar’ afago na cabeça para adormecer, carícia leve (no PB)

curibota perder-se; entregar-se a

futilidades/má vida

traiçoeiro; bisbilhoteiro; alcoviteiro; o m. q.

fofoqueiro (no PB).

madié pessoa do círculo familiar ou de amizade amigo; camarada; mas também pode referir um indivíduo estranho

mujimbo recado, notícia notícia (sem fonte e que pode ser falsa);

zunzum; boato

musseque areia fina bairro pobre ou zona periurbana (de Luanda)

quilápi lápis grande fiado; vale; dívida; crédito

quínguila de kukingila ‘esperar’ cambista informal de moeda estrangeira

tâmbula de kutambula ‘receber’ ritual de ofertório religioso (particularmente os católicos)

zungar de kuzunga ‘vaguear; andar sem destino’ praticar ambulantemente pela cidade venda ambulante; vender

Apesar desse valor baixíssimo, esses empréstimos suscitam certo interesse, na medida em que, a partir deles, podemos encontrar algum indicador da vitalidade do POL, condicionado por um contexto sociocultural bastante dinâmico. Ou seja, em função desse dinamismo social, a subvariedade do português local vai ‘pedindo emprestadas’ muitas palavras das LBA, que, ganhando novas conotações, passam a referir novas realidades. Linguisticamente, é relevante o facto de estarmos perante um processo de inovação lexical, através de empréstimos semânticos (semantic loans), um dos aspetos inerentes deste tipo de palavras, conforme descrito no capítulo anterior.

Este facto linguístico remete-nos para a necessidade de olharmos para as variações semânticas sofridas por determinados empréstimos bantos, aquando da sua inserção no POL. Podemos divisar empréstimos:

a. que conservaram a sua classe lexical original, mas mudaram de significado (e.g. bessangana (N) ‘mulher tipicamente luandense, que se veste de forma tradicional’ < BESA NGANA (N) [ ] ‘tratamento de respeito’; quilápi (N) ‘fiado, dívida’ < KILAPI (N) [ ] ‘lápis grande’);

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b. cuja mudança de significado decorre da sua recategorização lexical, tendo como exemplos os casos estudados no tópico anterior (e.g., comba (N), ‘ritual do sétimo dia...’ < KUKOMBA (V) [ ] ‘varrer’; cunanga (N) ‘desocupado’ <

KUNANGA (V) [ ] ‘folgar’; curibota (N) ‘bisbilhoteiro’ < KUDIBOTA [ ] ‘perder(-se); e quínguila ‘cambista informal’ < KUKINGILA

[ ] ‘esperar’.

Em ambos os casos, o estado de coisas referido inicialmente passa agora a designar a entidade detentora dessa faculdade ou função. Nos verbos particularmente, não se dá nenhuma alteração da estrutura formal do referido termo, um processo similar ao que ocorre em casos de conversão, atestados em português (Capítulo V). Claro que, em todos esses casos, não se muda radicalmente de campo semântico, verificando-se apenas a alteração de determinados traços específicos.

• Relativamente aos empréstimos que equivalem a palavras existentes em português, numa situação de competição entre as formas bantas e as vernáculas da LA, temos um número razoável de empréstimos (24%) do total das palavras consideradas. Consideremos alguns exemplos que retirámos dos dados gerais; na primeira coluna de cada par, figura o empréstimo e, na segunda, a forma correspondente:

Tabela 11: Empréstimos com palavras equivalentes em português

PA PE PA PE

alembamento dote jindungo malagueta; piri-piri

alembar entregar dote jinguba amendoim

cafuné carícia luando esteira

caluanda luandense mujimbo boato

caporroto / capuca aguardente muteta pevides

comba missa do sétimo dia muzongue caldo

cota adulto; mais velho quianda ~ kianda sereia

curibota bisbilhoteiro quijila preceito

cunaga vadio, vagabundo zongola espião; vigia

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A partir desta tabela, constata-se que as entidades ou as realidades e estados de coisa referidos por termos de origem banta podem ser nomeados com recurso a palavras vernáculas do português. Todavia, a opção por esses termos bantos em detrimento de formas do português resulta de razões pragmáticas, essencialmente de ordem sociocultural (função simbólica de restringir o elemento nomeado ao contexto angolano).

Note-se, contudo, que falar de “equivalência” é uma simplificação: muitos desses empréstimos podem ser substituídos por itens do português, dependendo do contexto discursivo ou registo de língua usado na comunicação (informal ou formal), mas poderão não representar ou descrever cabalmente a própria realidade como tal. Quer dizer que há palavras que traduzem especificamente algum sentimento da angolanidade (nos luandenses, em particular), a maneira de ser deste povo, uma vez que os valores que elas veiculam o caracterizam ou identificam como único. Reciprocamente, também se assumem muitas das entidades assim nomeadas como exclusivas dos angolanos, um dos aspetos da sua identidade espiritual e material. Empréstimos como alembamento, caluanda, candengue / ndengue, cassule, comba, caporroto / capuca, cota, cunanga, cupapata, curibota, jindungo, jinguba, muangolé, quilápi, quínguila, sanzaleiro, zongola, zungueira, etc., retratam aspetos específicos da realidade sociocultural dessa população e, se substituídos por outras palavras “equivalentes”, o seu valor pragmático é alterado (fora do país, muitas dessas palavras permitem facilmente identificar um angolano). Em princípio, tem-se a ideia de que quem diz jindungo ou jinguba, em vez de piri-piri / malagueta ou amendoim, respetivamente, só pode ser um muangolé, até se provar o contrário. Neste caso, está evidente o aspeto de identidade linguística como elemento identitário do grupo ou etnia, que pode concorrer para conservação de certos aspetos linguísticos ou manutenção de uma língua ou variedade, em situações de bi/multilinguismo, como é o caso de Luanda (cf. 2.1.1, sobre “atitude perante a nova língua” e “identidade linguística”, como fatores de contacto entre línguas).

Conforme a abordagem feita em (2.4.6), contrariamente aos outros 76% de empréstimos, que consideramos como culturais (2.2.2), esses 24% constituem “empréstimos de prestígio”, tomados de LBA para o POL, mais por razões de autoafirmação identitária do que por necessidade cultural de nomear novas realidades, coocorrendo com palavras vernáculas da LA. Todavia, muitos desses empréstimos funcionam como simples “modismos”, sobretudo quando designam uma realidade

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recente e em voga na sociedade, podendo não persistir com o desaparecimento do fenómeno que representam.

Interrogando-nos sobre a total equivalência entre empréstimos e palavras existentes na LA que podem ocorrer num mesmo contexto linguístico, interrogamo-nos também sobre a existência de sinónimos no seu sentido mais estrito, mas sabendo-se que não existem sinónimos perfeitos nas línguas (e.g., alembamento = dote; candengue = miúdo; maca = problema; quilápi = fiado; quizango = desgraça; xídi = azar). Algumas dessas palavras podem ajudar a desambiguar situações de ambiguidade semântica (e.g., fuba [de bombó ou milho] vs. farinha [de trigo, batata, peixe]; quinda [típico de cargas domésticas] vs. cesto [de cargas, flores, roupa]; cassumuna / quissonde [tipo específico de formigas] vs. formiga [genericamente]).