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IMPORTÂNCIA DA RELAÇÃO DE EMPREGO NO SISTEMA SOCIOECONÔMICO

A relação de emprego consiste na principal relação socioeconômica de prestação de trabalho característica do sistema capitalista. O capitalismo erigiu-se, na história, a partir do século XVIII europeu, em torno dessa relação laboral peculiar que era, na época, essencialmente inovadora, perante as relações escravistas e servis que preponderaram durante o percurso da humanidade por milênios.

A verdade é que, provavelmente  segundo pondera Mauricio Godinho Delgado , sem a relação empregatícia não haveria o sistema socioeconômico capitalista. A relação de emprego foi o eixo que permitiu, na história, a harmonização racional da liberdade alcançada pelo trabalhador (em contraponto às modalidades escravagistas e servis de labor da Antiguidade e da Idade Média) com a direção preservada pelo tomador de serviços, no tocante aos objetivos a serem realizados por esse trabalho e pelo respectivo trabalhador.116

De fato, as relações de trabalho escravistas e/ou servis, segundo o mencionado autor, jamais se mostraram aptas a gerar um sistema econômico altamente produtivo, tecnologicamente criativo, que fosse capaz de instigar a pessoa humana ao uso máximo de sua vontade, paixão e inteligência no exercício do trabalho. Apenas o trabalho livre e o trabalhador, igualmente livre, poderiam reunir tais aptidões e características.117

Mas não se trata apenas do trabalho livre, se considerado totalmente independente e/ou autônomo, o qual tende a ser disperso e incontrolável. O fundamental, segundo o mesmo autor, para se realizar o alto grau de apuro e de criatividade produtivas e técnicas no sistema econômico e social  como próprio ao capitalismo  é que sejam também subordinados tais trabalho e trabalhadores livres; ou seja, o fundamental é que exista uma relação de trabalho com liberdade, porém, na mesma medida, com subordinação.118

Daí que a doutrina tem vinculado o surgimento da relação de emprego à presença, na Europa Ocidental, do trabalho livre, a partir da Idade Moderna, com a decadência das relações servis no campo do feudalismo europeu. Esse trabalho livre foi, tempos depois, reconectado a um novo sistema produtivo, o sistema industrial capitalista surgido na Grã-Bretanha. Porém, foi reconectado por meio da subordinação, dando origem à relação empregatícia que se tornaria dominante nas décadas e séculos seguintes à Revolução Industrial britânica do século XVIII fenômeno que contribuiu para deflagrar o capitalismo na história.119

116DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 16. ed. São Paulo: LTr, 2017. Sobre o papel cardeal da relação de emprego no surgimento e evolução do sistema capitalista, consultar, particularmente, o Capítulo III dessa obra, “Origem e Evolução do Direito do Trabalho”, p. 88-113.

117 Ibidem. Para o autor, as relações de trabalho escravagistas e/ou servis jamais se mostraram capazes de gerar um sistema econômico tecnologicamente avançado, inovador, com grande criatividade e produtividade, apto a instigar a pessoa humana ao uso máximo de sua vontade, paixão e inteligência no exercício do trabalho. Ao revés, o trabalhador escravizado ou servidão mantinha, como prioritários objetivos nesse sistema econômico coercitivo, garantir sua sobrevivência e, se possível, almejar a sua liberdade.

118 Ibidem.

119 DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 16. ed. São Paulo: LTr, 2017, p. 88-113, particularmente o Capítulo III “Origem e Evolução do Direito do Trabalho”. Na mesma direção, do mesmo autor, o livro Capitalismo, Trabalho e Emprego – entre o Paradigma da Destruição e os Caminhos de Reconstrução. 3 ed. São Paulo, LTr, 201, entre outros.

O “trabalho livre, mas subordinado”, contudo, não trouxe vantagens apenas para a nova classe social e economicamente dominante. Conforme bem demonstra o citado autor (e a própria história do Direito do Trabalho), a classe trabalhadora europeia  à diferença dos segmentos social e economicamente dominados nos séculos e milênios precedentes , sendo formada por trabalhadores livres, conseguiu, com o desenrolar do capitalismo, bem compreender a lógica de funcionamento do novo sistema econômico, bem como a lógica de funcionamento do sistema político liberalista, instaurado pelas revoluções políticas e filosóficas dos séculos XVII e XVIII no Ocidente. E, dessa maneira, conseguiu se organizar nos planos social, político, cultural e filosófico, a ponto de alcançar, tempos depois, a institucionalização jurídica de uma série de direitos, proteções e garantias no contexto da relação empregatícia, em um campo jurídico novo, o Direito do Trabalho.120

Todo o século XIX, na Europa Ocidental  principalmente a partir de sua segunda metade , e as primeiras décadas do século XX foram períodos de enorme avanço para o sistema capitalista, à base da relação de emprego, bem como para o segmento social dos trabalhadores, por meio do Direito do Trabalho e, também, em boa medida, do Direito da Seguridade Social.

O avanço do Direito do Trabalho, conforme se sabe (e também do Direito da Seguridade Social), aprofundou-se depois da Segunda Guerra Mundial, com a institucionalização do Estado de Bem-Estar Social nos países ocidentais desenvolvidos, particularmente na Europa Ocidental. Nesse quadro, a ideia de direitos individuais e sociais fundamentais floresceu e se sedimentou, alargando as proteções, as prerrogativas e a renda trabalhistas dos segmentos populacionais que viviam de seu próprio trabalho subordinado  a anteriormente denominada classe trabalhadora, já então bem mais diversificada e complexa do que a classe trabalhadora de décadas atrás.121

120 DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 16. ed. São Paulo: LTr, 2017, p. 88-113.

121 Sobre o Estado de Bem Estar Social e suas características direcionadas para a alta ascensão dos direitos e poderes do conjunto da população trabalhadora, com maior distribuição de renda e de poder no seio do Estado e da própria sociedade civil, consultar, ilustrativamente, a seguinte bibliografia: DELGADO, Mauricio Godinho.

Capitalismo, Trabalho e Emprego – entre o Paradigma da Destruição e os Caminhos de Reconstrução. 3 ed.

São Paulo, LTr, 2017; DELGADO, Mauricio Godinho; PORTO, Lorena Vasconcelos. O Estado de Bem-Estar Social no Século XXI. São Paulo: LTr, 2007; CONDÉ, Eduardo A. Salomão. Laços na Diversidade – a Europa Social e o Welfare em Movimento (1992-2002). Juiz de Fora: UFJF, 2008; KERSTENETZKY, Célia Lessa. O Estado de Bem-Estar Social na Idade da Razão – a Reinvenção do Estado Social no Mundo Contemporâneo.

Rio de Janeiro: Elsevier, 2012; PIKETTY, Thomas. O Capital no Século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014;

WILKINSON, Richard; Pickett, Kate. O Nível - por que uma Sociedade Mais Igualitária é Melhor para Todos.

Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.

Se balizado o período histórico europeu iniciado em meados do século XIX, quando o Direito do Trabalho começou a dar seus passos de modo mais diversificado, até a década de 70 (século XX), trata-se de 120 anos de evolução trabalhista  período de nascimento, de ampliação e, por fim, de solidificação de direitos sociais vinculados à relação de emprego , fazendo elevar, significativamente, as condições de pactuação e de gestão da força de trabalho na economia e na sociedade ocidental, particularmente a europeia.

Tudo isso se comprova, objetivamente, até mesmo pela circunstância de o capitalismo, nos países europeus mais desenvolvidos, ser estruturado, ainda hoje, em torno da relação empregatícia, evidenciando, conforme já referido, que mais de 85% da PEA desses países é composta por efetivos “trabalhadores livres, mas subordinados”, sejam públicos, sejam privados. É o que demonstra a OIT em estatística bem explicitada pelos autores Lorena Vasconcelos Porto e Augusto Grieco Sant'Anna Meirinho, referindo-se à pesquisa efetivada na transição do século XX para o século XXI e divulgada na 95ª Reunião da OIT, de 2006.122 Tais estudos da OIT, segundo os dois autores, fornecem dados sólidos no sentido do uso efetivo da relação de emprego para operar o sistema capitalista bem desenvolvido, com alta tecnologia e sofisticação organizacional, a par de um elevado nível de proteção social à pessoa humana (como o dos já mencionados países europeus: Noruega, 92,5%; Suécia, 90,4%; Dinamarca, 91,2%, entre outros).123 Em outras palavras, como já disseram Lorena Vasconcelos Porto e Augusto Grieco Meirinho, há uma estreita associação entre a inclusão das populações no sistema econômico e social capitalista por meio do emprego e países desenvolvidos.124

Não obstante o sistema capitalista continuar necessitando do “trabalho livre, mas subordinado” para se desenvolver e evoluir (o trabalho empregatício, em suma), o fato é que se tornou relevante para os segmentos dominantes, nas últimas décadas, conferir novas roupagens formais para a relação de emprego. Isso visando a diminuir ou a inviabilizar a incidência do Direito do Trabalho sobre tais relações, permitindo a contratação trabalhista com menor números de direitos, de proteções e de garantias.

122 PORTO, Lorena Vasconcelos; MEIRINHO, Augusto Grieco Sant'Anna. O Trabalho Autônomo e a Reforma Trabalhista. In: COSTA, Ângelo Fabiano Farias da; MONTEIRO, Ana Cláudia Rodrigues Bandeira;

BELTRAMELLI NETO, Silvio (Coord.). Reforma Trabalhista na Visão de Procuradores do Trabalho.

Salvador: JusPODIVM, 2018, p. 77-109. Os dados estão à p. 81 do artigo acadêmico.

123 Ibidem.

124 PORTO, Lorena Vasconcelos; MEIRINHO, Augusto Grieco Sant'Anna. O Trabalho Autônomo e a Reforma Trabalhista. In: COSTA, Ângelo Fabiano Farias da; MONTEIRO, Ana Cláudia Rodrigues Bandeira;

BELTRAMELLI NETO, Silvio (Coord.). Reforma Trabalhista na Visão de Procuradores do Trabalho.

Salvador: JusPODIVM, 2018, p. 77-109.

Essa nova fase de reversão dos 120 anos de evolução trabalhista  deflagrada a partir de finais da década de 70 no Ocidente  assume, aparentemente, três grandes caminhos, conforme a realidade de cada país ocidental:125 de um lado, a pura e simples "informalidade trabalhista", ou seja, o não cumprimento pleno (ou parcial) do Direito do Trabalho e do Direito da Seguridade Social; de outro lado, a multicitada argumentação no sentido do ocaso da relação de emprego, de maneira a poder, ato contínuo, conferir novas roupagens aos fenômenos sociais de prestação laborativa, desde que sejam aptos a combinar, na prática empresarial concreta, “liberdade com subordinação”; por fim, a desconstrução normativa do Direito do Trabalho e do Direito da Seguridade Social, por meio de reformas legislativas precarizadoras de regras de proteção trabalhista e previdenciária, em conformidade com o contexto histórico dos países. Evidentemente que esses três caminhos podem ser combinados na mesma realidade histórica e geográfica.

Nesse quadro, segundo avalia Domenico De Masi em recentíssima obra, cem anos atrás a luta dos pobres contra os ricos "visava à conquista da igualdade". Entretanto, nas últimas décadas, essa dinâmica foi transformada em luta “dos ricos contra os pobres, que visa à imposição das diferenças”.126

No caso brasileiro, a importância da relação de emprego para o sistema econômico e social capitalista se mostra também manifesta. E aqui têm ganhado relevância as três estratégias elaboradas para se utilizar o “trabalho livre, mas subordinado”, porém sem as amarras e limites do Direito do Trabalho: ou a pura e simples "informalidade trabalhista"; ou o uso de roupagens formais alternativas para viabilizar o manejo da relação empregatícia, mas sem os custos estabelecidos no ordenamento jurídico trabalhista e previdenciário; ou o implemento de reformas legais no sentido da precarização da contratação e da gestão do trabalho humano na economia e na sociedade brasileiras.

125 DELGADO, Mauricio Godinho. Capitalismo, Trabalho e Emprego – entre o Paradigma da Destruição e os Caminhos de Reconstrução. 3. ed. São Paulo, LTr, 2017. O autor explica essa fase de reversão socioeconômica e civilizatória experimentada no Ocidente, nas últimas décadas (com pesos diferentes, segundo os países, é claro.

126 DE MASI, Domenico. Alfabeto da Sociedade Desorientada - para Entender o Nosso Tempo. São Paulo:

Objetiva, 2017; Eis as duras palavras do autor, que construiu carreira intelectual bastante próxima à realidade do mercado econômico capitalista nas últimas três/quatro décadas: “Cem anos atrás, os desesperados do mundo tinham doutrinas, partidos, projetos e líderes de referência: hoje não têm nada disso tudo, e a luta de classes dos pobres contra os ricos, que visava à conquista da igualdade, foi subvertida em luta de classes dos ricos contra os pobres, que visa à imposição das diferenças” (p.99). Em outro trecho, assim explica Domenico De Masi o mesmo fenômeno:“A luta de classe dos ricos contra os pobres é global, assim como é global a economia capitalista agora triunfante em todo o planeta. Nessa luta, os ricos não economizam despesas para financiar universidades, escolas de negócios, empresas de consultoria, clubes, congressos internacionais, editoras, revistas, pesquisas, sites, contratando exércitos de economistas, gurus, gestores e jornalistas” ( p. 476).

Esta dissertação, porém, conforme já exposto, enfatiza a subestratégia do dumping social, que se encaixa, de um modo ou de outro, nos caminhos acima especificados.