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A interven¸c˜ao do Conde do Lavradio

2.1 A estranha estrela 1830 do cat´alogo de Groombridge

2.1.1 A interven¸c˜ao do Conde do Lavradio

Em Lisboa, o Conde do Lavradio26 aproveitando a presen¸ca, na sess˜ao de 26 de Mar¸co de 1850 da Cˆamara dos Pares, do Ministro da Marinha, o Visconde de Castel˜oes,27 declara que

nestes ultimos tempos se tinham occupado as mais celebres Academias de Sciencias da Europa, da observa¸c˜ao de uma notavel estrella conhecida pelo nome de Argelander [...] e que por consequˆencia j´a se via que o observatorio de Lisboa era o ponto mais importante para se observar aquella estrella. [...] Que era indubitavel que Portugal entre os seus sabios contava alguns Astronomos, muito distinctos, e de certo muito capazes de fazer aquellas observa¸c˜oes, mas que acreditava que o Sr. Ministro da Marinha n˜ao negaria, que no Observatorio n˜ao existiam os instrumentos indispensaveis para bem se fazerem aquellas observa¸c˜oes [...] seria vergonhoso que ellas n˜ao fossem feitas por Astronomos portuguezes, quanto mais que se tal acontecesse podia dar-se como certo, que haviam de vir a Lisboa Astronomos de todos os Paizes, Francezes, Ingleses, Russos, com os instrumentos proprios para as observa¸c˜oes. E que era pois, para que se podesse evitar aquella vergonha, que se ia mandar para a Mesa uma proposta ou convite ao Governo, pedindo que fosse remettida directamente ao Sr. Ministro da Marinha.28

Desta proposta conclui-se que o Conde do Lavradio tinha conhecimento da interven¸c˜ao de Herv´e Faye na sess˜ao da Acad´emie des Sciences de Paris no dia 11 do mˆes anterior mas que n˜ao tinha, ou pelo menos n˜ao o demonstra, a no¸c˜ao das dificuldades associadas `a medi¸c˜ao da paralaxe anual. N˜ao ´e cred´ıvel que algum astr´onomo estrangeiro se deslocasse a Lisboa com o intuito de determinar a paralaxe de uma estrela. Seria n˜ao s´o necess´ario garantir a coloca¸c˜ao adequada do(s) instrumento(s) a utilizar, como tamb´em v´arios meses de observa¸c˜oes. Para contextualizar estas dificuldades bastar´a talvez mencionar que para determinar o valor apre- sentado no in´ıcio de 1850, Otto Struve efectuou, no bem equipado observat´orio de Pulkova, medi¸c˜oes, entre 4 de Novembro de 1847 e 2 de Dezembro de 1849, da declina¸c˜ao da estrela

Gmb 1830.29 Por outro lado, analisando os resultados anteriormente obtidos (tabela 2.4) verifica-se que o valor da paralaxe de Gmb 1830 era da ordem de grandeza das incertezas. Ou seja, seria extremamente dif´ıcil melhorar os resultados anteriores. De facto, alguns anos depois Wichmann escreve

24

Struve, William: ´Etudes d’Astronomie Stellaire sur la voie lact´ee et sur la distance des ´etoiles fixes. St- P´etersbourg: Imprimerie de l’Acad´emie Imp´eriale des Sciences. 1847a.

25

Faye, Herv´e: M´emoire sur le collimateur z´enithal et sur la lunette z´enithale propos´es par M. H. Faye. Comptes Rendus de l’Acad´emie des Sciences de Paris, 23 1846c.

26

D. Francisco de Almeida Portugal (1796–1870).

27

Jos´e Maria Pereira Forjaz Sampaio (1773–1858). Maltez, Jos´e Adelino: Tradi¸c˜ao e Revolu¸c˜ao - Uma biografia do Portugal Pol´ıtico so s´eculo XIX ao XXI. Em 1820-1910 . 1 Tribuna da Hist´oria. 2004, p. 322.

28

Portugal, Francisco de Almeida: Sess˜ao de 1 de Abril de 1850. Di´ario do Governo, 75 1850.

29

Struve, Otto von: Investigation of the Parallax of Groombridge 1830. Monthly Notices of the Royal Astrono- mical Society, 10 1 1850a.

Valores de 1850 Valores actuais Estrela p (msa) ∆p (msa) ∆p/p p (msa) ∆p (msa) ∆p/p

Polar 91 10 9,1 7,56 0,48 16 α Lyrae 232 23 10 128,93 0,55 234 Capella 46 200 0,2 77,29 0,89 87 ι Ursa Major 133 106 1.3 68,32 0,79 86 Sirius 230 70 3,3 379,21 1,58 240 Arcturus 127 73 1,7 88,85 0,74 120 α Centauri 970 55 17.6 742 - - 61eCygnus 374,4 10,7 35,0 287,18 1,51 190 Gmb 1830 34 29 1,2 109,22 0,78 140

Tabela 2.4: Estrelas cuja paralaxe era conhecida em 1850. Para compara¸c˜ao apresentam-se as para- laxes actuais das mesmas estrelas segundo Simbad. Os valores s˜ao apresentados em milisegundos de arco (msa, ou na sigla inglesa mas)

I should not, however, be surprised if, after all, many astronomers will doubt whether the science of observation is sufficiently advanced to prove the existance of a parallax of 0.14′′

[140 msa] or whether the influence of one or more unknown causes may not by accident be so nearly coincident with the march of the parallax as to make the calculations indicate a sufficiently great degree of probability.30

Ao que o tradutor inglˆes acrescenta

Such an investigation as that elicited by Dr. Wichmann’s anomalous result31

is perhaps at this epoch of more value than would have been the successful determination of the parallax of Argelander’s star (Groombridge 1830)32

A proposta do Conde do Lavradio foi, no entanto, unanimemente aprovada.33 A decis˜ao

baseou-se no vago conceito de “honra nacional” em vez de ser apresentada uma justifica¸c˜ao t´ecnica.

Como consequˆencia da interven¸c˜ao do Conde do Lavradio, o Ministro da Marinha, Vis- conde de Castel˜oes, enviou um of´ıcio ao ajudante encarregado da direc¸c˜ao do observat´orio, Raimundo Silveira,34 datado de 3 de Abril, no qual se pretendia que este “declarasse com a devida brevidade de que instrumentos carecia este estabelecimento para se poderem fazer as observa¸c˜oes da estrela de Argelander”.35 O encarregado do observat´orio reuniu com os

ajudantes do mesmo e concluiu que:

• o local do observatorio real da marinha, por n˜ao dar as garantias de estabilidade que demandavam as observa¸c˜oes t˜ao delicadas, e por estar quasi ao n´ıvel do Tejo, rodeado da evapora¸c˜oes das aguas e dos fumos do arsenal, devia infallivelmente ser rejeitado;

30

Wichmann, M.: Abstract of a Paper on the Parallax of Argelander’s Star. Monthly Notices of the Royal Astronomical Society, 16 1856.

31

A paralaxe de uma das estrelas de referˆencia era maior que a de 1830 Gmb, Council of the Royal Astronomical Society: Report of the Thirty-fourth Annual General Meeting of the Society. Monthly Notices of the Royal Astronomical Society, 14 1854, p. 126.

32

Wichmann, M.: Abstract of a Paper on the Parallax of Argelander’s Star. Monthly Notices of the Royal Astronomical Society, 16 1856.

33

Portugal, Francisco de Almeida: Sess˜ao de 1 de Abril de 1850. Di´ario do Governo, 75 1850.

34

Raimundo Jos´e da Silveira (datas desconhecidas).

35

• como o observatorio astronomico n˜ao tinha um unico [instrumento astronomico], foi igualmente de- cidido que n˜ao havia considera¸c˜oes economicas que podessem dispensar, alem do telescopio zenithal de mr. Faye uma s´erie de outros instrumentos (tabela 2.5).36

Esta informa¸c˜ao foi enviada ao governo a 13 de Abril de 1850, lembrando ainda “a grande vantagem que resultaria para o servi¸co, se mr. Faye se quizesse encarregar de mandar cons- truir e fiscalisar a construc¸c˜ao de todos os instrumentos”.37 A 30 de Julho, o encarregado do observat´orio recebeu informa¸c˜ao de que a agencia Financial de Londres tinha sido autorizada a proceder `a compra dos instrumentos indicados no of´ıcio de 13 de Abril. Herv´e Faye em Pa- ris ´e informado pelo embaixador portuguˆes Francisco Jos´e de Paiva38 dos planos do governo

aos quais sugere pequenas altera¸c˜oes a n´ıvel de equipamento (tabela 2.5) e uma ordem de Proposta do Governo Portuguˆes Altera¸c˜oes sugeridas por Faye

luneta zenital

instrumento de passagens

theodolito repetidor ou instrumento altazimutal petit circle m´eridien pendula de inteira confian¸ca

dois barometros dois thermometros dois hygrometros

dois aneroides an´emographe

dois thermometros de maximo e minimo

Tabela 2.5: Lista de instrumentos a adquirir para o observat´orio da Marinha de Lisboa

trabalhos para o reformulado observat´orio:39

1. Observer tous les jours les ´etoiles z´enithales comprises dans une certaine zone jusqu’`a la 7e grandeur, et d´eduire de ces observations les parallaxes, la constante de l’aberration, la latitude, etc.;

2. Observer les culminations lunaires pour la d´etermination des longitudes;

3. ´Etudier, d’une mani`ere suivie, la marche des chronom`etres destin´es au service de la marine;

4. Observer les com`etes pendant toute la dur´ee de leurs apparitions;

5. Observer pareillement `a l’´equatorial les petites plan`etes nouvellement d´ecouvertes, vers les oppositions et les quadratures;

6. Observer les ´eclipses et les occultations;

7. Faire les observations m´et´eorologiques d’apr´es la marche adopt´ee le plus g´en´eralement, et comprenant au moins la description de l’´etat du ciel, les indications du barometre, des thermom`etres, de l’hygrom`etre, et celles de l’an´emographe;

8. Envoi imm´ediat de toutes les observations des com`etes et des nouvelles plan`etes aux corps savants et aux journaux astronomiques;

9. R´eduction syst´ematique des observations;

10. Publication, ann´ee par ann´ee, des r´esultats acquis dans l’ann´ee pr´ec´edente.

36

Folque, Fillipe: Relat´orio. Di´ario de Lisboa, 1866, Nr. 195.

37

Ibidem

38

Francisco Jos´e de Paiva (1819–1868). www.arqnet.pt/dicionario/paiva1v.html.

39

Faye, Herv´e: Sur l’Observatoire de la Marine `a Lisbonne; projects du gouvernement portugais. Comptes Rendus de l’Acad´emie des Sciences de Paris, 30 1850b.

Segundo Faye, o fim especial do observat´orio seria o estudo das estrelas zenitais podendo, no entanto, contribuir secundariamente para alguns dos ramos da astronomia solar (na altura esta express˜ao significava a astronomia do sistema solar). Faye escrevia

que para melhor desempenho da sua incumbencia precisava de uma planta do observatorio real da marinha; e que finalmente, antes de fazer a encommenda definitiva dos instrumentos desejava conferenciar com mrs. W. Struve e O. Struve a respeito das dimens˜oes e do plano a seguir nas indaga¸c˜oes astronomicas, a que elles eram destinados.40

O modesto valor de 12000 francos franceses aproximadamente 2:160$000 r´eis foi o or¸camento previsto para a compra dos instrumentos.41

Raimundo Jos´e da Silveira decidiu apresentar a mat´eria ao conselho da escola naval que, por sua vez, em 17 de Outubro de 1850, enviou um of´ıcio ao governo relembrando a situa¸c˜ao delicada que

a acquisi¸c˜ao dos instrumentos [...] n˜ao bastava para o desempenho das obriga¸c˜oes volunta- riamente contrahidas, porquanto formalmente declarava que o local do observatorio real da marinha, sendo absolutamente improprio para os fins que se tinha em vista, a construc¸c˜ao de um edificio com as condi¸c˜oes de estabilidade, visibilidade e commodidade n˜ao eram exi- gencias caprichosas, mas sim as condi¸c˜oes essencialmente caracteristicas de um observatorio astronomico.42

Entretanto, em Setembro de 1850, quase dois anos ap´os o falecimento de Matheus Valente do Couto43 em Dezembro de 1848, foi finalmente nomeado um director n˜ao interino do ob- servat´orio. A escolha recaiu sobre Jos´e Cordeiro Feio,44 lente jubilado da Escola Polit´ecnica. Em resposta ao of´ıcio de Outubro, o “governo, dando a devida atten¸c˜ao a informa¸c˜oes dadas por auctoridades t˜ao competentes, nomeou effectivamente uma commiss˜ao para tratar d’este grave assumpto”.45 A comiss˜ao era constitu´ıda por Jos´e da Silva Costa, engenheiro militar e director da Escola Polit´ecnica de Lisboa; Filippe Folque, director dos trabalhos geod´esicos e lente de Astronomia e Geodesia na Escola Polit´ecnica; Antonio de Serpa Pimentel doutorado em matem´atica pela universidade de Coimbra e lente da Escola Polit´ecnica; Daniel Augusto da Silva matem´atico e oficial de Marinha e, por ´ultimo, Antonio Diniz do Couto Valente, lente da escola naval e ajudante do observat´orio da Marinha.46 Segundo Filippe Folque “a materia foi fortemente discutida” e

enviou para o governo um extenso relatorio, acompanhado da planta e perfis do edificio do novo observatorio.47

Contudo, a inst´avel situa¸c˜ao pol´ıtica portuguesa alterou-se de novo no in´ıcio de 1851. Em Abril desse ano, o Marechal-Duque de Saldanha48, tinha-se sublevado contra o governo de Costa Cabral49 for¸cando a rainha D. Maria II50 a demiti-lo bem como ao respectivo governo,

40

Folque, Fillipe: Relat´orio. Di´ario de Lisboa, 1866, Nr. 195.

41

Durante a segunda metade do s´eculo XIX a taxa de cˆambio entre as moedas portuguesa e francesa ´e apro- ximadamente igual a 3 francos franceses para 540 r´eis. Ver Esteves, Rui Pedro e Ferramosca, Fabiano: O Mecanismo dos cˆambios em padr˜ao-ouro. Estabilidade cambial e viola¸c˜oes dos pontos de ouro, 1854-1891. 2000.

42

Folque, Fillipe: Relat´orio. Di´ario de Lisboa, 1866, Nr. 195.

43

Matheus Valente do Couto (1770–1848).

44

Jos´e Cordeiro Feio (1787–1884).

45

Ibidem

46

Jos´e Feliciano da Silva Costa (1797–1866); Filippe Folque (1800–1874); Antonio de Serpa Pimentel (1825– 1900); Daniel Augusto da Silva (1814–1878) e Antonio Diniz do Couto Valente (1800–1867).

47

Ibidem

48

Jo˜ao Carlos Greg´orio Domingos Vicente Francisco de Saldanha Oliveira e Daun (1790–1876).

49

Ant´onio Bernardo da Costa Cabral (1803–1889).

50

Maria da Gl´oria Joana Carlota Leopoldina da Cruz Francisca Xavier de Paula Isidora Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga (1819–1853).

a 26 de Abril. Um executivo liderado pelo Duque da Terceira51 durou apenas 4 dias. A

1 de Maio o Duque de Saldanha ´e nomeado pela rainha para formar o que seria conhecido como o primeiro governo da Regenera¸c˜ao. Segue-se uma ´epoca de estabilidade pol´ıtica e de optimismo.52 Curiosamente, este movimento reformista n˜ao teve express˜ao imediata no desenvolvimento da astronomia nacional e travou as iniciativas em curso. Segundo Folque

N’esta epocha estava infelizmente o horisonte politico mui carregado, e os negocios publicos tomaram t˜ao grave aspecto, que d’elle resultou uma nova administra¸c˜ao, conhecida pela de- nomina¸c˜ao de regenera¸c˜ao; este miniterio, tendo fortemente a peito o desenvolvimento dos chamados interesses materiaes do paiz, de que tanto carecia, os melhoramentos da admi- nistra¸c˜ao da fazenda, e muitas outras reformas, n˜ao pˆode dar logo atten¸c˜ao ao assumpto de que temos tratado; por´em ´e certo, que os muitos e variados objectos do servi¸co publico, occupando todos os cuidados do novo gabinte, pouco a pouco lhe fizeram esquecer os mui serios compromissos que pesavam sobre a anterior administra¸c˜ao do paiz, e que voluntaria e officialmente havia aceitado com os elogios de dois homens eminentes da sciencia, como eram o mr. Struve e mr. Faye, que escreveram sobre o assumpto.53