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SOCIABILIDADES, PRÁTICAS CULTURAIS E LAZER NOS TEMPOS LIVRES DOCENTES

4.2. Lazer e outras práticas culturais

Durante muito tempo, de acordo a tradição, o trabalho foi classificado como superior, como um dever moral com um fim em si mesmo, enquanto o lazer fora classificado vulgar- mente como preguiça, como destacam Norbert Elias e Eric Dunning (1992). Havia, pois, uma distinção equivocada entre trabalho e lazer, conceitos totalmente distorcidos por uma concep- ção de juízo e valor. Por esse e outros motivos, na atualidade existe a noção de que o lazer pode ser explicado como atividade complementar ao trabalho, merecendo discussão e análise específicas.

Neste momento, é importante retomar uma distinção clara, tal qual os autores formu- lam, entre tempo livre e lazer. O primeiro é todo o tempo liberado das ocupações de trabalho profissional, ou do trabalho produtivo. Trata-se de um conjunto de atividades similares ou diferentes, sobrepostas ou separadas, individuais ou coletivas, as quais representam categorias diferentes. O segundo é uma das muitas atividades que fazem parte do tempo livre, a sua prin- cipal função é o relaxamento das tensões desagradáveis e a produção de tensões agradáveis, tanto em relação ao trabalho, quanto às relações amorosas, familiares, da rotina do dia a dia, dentre outros, ou são realizadas simplesmente por prazer, satisfação pessoal. Podemos então inferir, a partir da concepção de Norbert Elias e Eric Dunning (1992), que todas as atividades de lazer, sem distinção, são atividades do tempo livre, contudo nem todas as atividades de tempo livre são atividades de lazer.

Nos tempos cotidianos docentes, podemos observar nos relatos das/dos docentes pes- quisados/as, que o lazer aparece como uma forma de revigorar a energia para o trabalho, além

197 de ser um meio de satisfazer-se, ter prazer, como destacam as professoras Mary e Telma e o professor Márcio.

(...) nossa! Eu tô estressada de tanto trabalho de escola, ahhh! (risos). Eu preciso sair para espairecer. (Professora Mary, Grupo Focal nº 04, em 14 de maio de 2013).

(...) ainda bem que chegou o recesso, mesmo sendo um tempo curto vou po- der sair me divertir, me desligar do trabalho por um tempo, aliviar um pou- co, né? Porque a jornada é pesada. Vou aproveitar para ir à praia (se fizer sol, kkkk), curtir um pouco a família para eliminar o estresse. Coisa que du- rante o trabalho é impossível (Mensagem de Márcio, pela internet, no dia 20 de julho de 2013).

Olha, lazer pra mim é necessidade, sabe? Num tem aquele momento em que você não suporta mais filho, marido, casa, trabalho e quer fugir das respon- sabilidades? É nesse momento que eu quero viajar, sair de casa, ir pra praia. Mas aí... (pausa) falta dinheiro, tem as responsabilidades, então eu me con- tento com aquilo que tá ao meu alcance: um programa de TV, uma pizza com a família, entendeu? Agora, pra mim, lazer é uma necessidade humana (Entrevista concedida pela professora Telma, no dia 20 de outubro de 2013).

Podemos observar nos relatos das/os docentes, mais uma vez, a concepção de lazer como atividade do tempo livre vinculado ao trabalho, seja para o relaxamento e/ou para a sa- tisfação pessoal e prazer. É importante ressaltar que os relatos foram escritos em períodos letivos diferentes, ou seja, no mês de maio a professora Mary diz que está estressada por cau- sa do trabalho da escola, por isso precisa sair para espairecer. Em julho, o professor Márcio diz que precisa se desligar do trabalho, eliminar o estresse. A professora Telma, no mês de outubro, diz estar em um momento de não suportar nem mesmo os filhos e marido, quiçá o trabalho. Os relatos demonstram o quanto o trabalho está presente na vida dos/das docentes e como está instituída a exaustão em seu corpo, em qualquer época do ano, embora em certas ocasiões seja ainda mais difícil, como nos períodos de entrega de diários, de correção de ava- liações e outros. Diferentemente, os períodos após os recessos, são mais leves, porque é pos- sível que eles e elas estejam mais descansados.

A professora Telma sublinha que, nesses momentos de tensão, o seu desejo seria via- jar, sair de casa, ir à praia, contudo as responsabilidades, dentre elas o próprio trabalho, os filhos, marido e outras, somadas à falta de dinheiro, suspendem seus sonhos, sua necessidade, o que comprova que não basta escolher as atividades de lazer, como diz Norbert Elias (1992): é necessário também possuir recursos para acessá-las. Diante da frustração de não poder fazer

198 o que deseja, a professora faz aquilo que está ao seu alcance, ou seja, vê um programa de TV, come uma pizza com a família ou algo que seja possível e viável.

Contentar-se com as sobras nada mais é do que uma assunção dos padrões do merca- do, ou seja, há atividades de lazer para todas as classes, contudo desiguais e excludentes: en- quanto uns viajam para o exterior, outros não conhecem nem o próprio estado; enquanto uns participam de almoços e jantares em restaurantes, outros fazem churrasco em família; enquan- to uns vão ao cinema, outros veem filmes no DVD. Isso comprova que existem linhas abissais entre o lazer das classes populares e o lazer das elites.

De qualquer modo, as práticas de lazer, na sociedade atual, mesmo sendo mercantili- zadas, transformadas em negócios, reportando às iniciativas comerciais, não comerciais ou públicas, introduziram mudanças nas práticas de tempo livre dos indivíduos, independente das classes sociais a que pertencem. Nesse contexto, podemos dizer que o lazer é uma das ativi- dades do tempo livre mais almejado pelos indivíduos, porque é o modo mais completo de satisfazer a si mesmo pelo corpo, tendo sentimentos agradáveis, criatividade, imaginação, como ressalta Joffre Dumazedier (1994).

Detalhando um pouco mais, o autor conceitua lazer como

um conjunto de ocupações às quais o indivíduo pode entregar-se de livre vontade, seja para repousar, seja para divertir-se, recrear-se, entreter-se, ou ainda desenvolver sua informação ou formação desinteressada, sua partici- pação voluntária ou sua livre capacidade criadora, após livrar-se ou desem- baraçar-se das obrigações profissionais, familiares e sociais ( p. 34).

Sendo assim, incluem-se nas práticas de lazer não somente as visitas a parques, mu- seus, monumentos e equipamentos antigos, mas também os passeios, a televisão, as viagens, as novas práticas do corpo: a ginástica, a dança, as lutas, dentre outras, além de tudo que é lucrativo ou não, interessado e desinteressado. Tais atividades e congêneres são escolhidas pelos indivíduos fora das suas obrigações profissionais, conforme explica Joffre Dumazedier (1994).

O lazer, segundo o autor, é um tempo de expressão de si mesmo, quer seja individual ou em grupo. Também é a emergência, continua ele, de práticas sociais cada vez mais varia- das, sedutoras e ambíguas, que exercem grande influência na vida cotidiana. Podemos tam- bém afirmar que o lazer é uma forma nova de afirmação de si mesmo, do sujeito social em relação ao trabalho e a outras instituições de base nos seus espaços de vivência.

O relato do Professor Daniel demonstra um pouco dessa discussão de Jofre Dumazedi- er (1994), ou seja, um indivíduo construtor e dono do seu próprio tempo, que busca a satisfa-

199 ção, despreocupado com o relógio e o calendário, que, como diz o professor, “faz o que der

na cabeça”. Do mesmo modo, o lazer também apresenta ambiguidades, uma liberdade de

escolha e um tempo liberado que tem limite, que nem sempre se aparta totalmente de preocu- pações e responsabilidades, nas quais podemos inferir que estejam o trabalho principal, a fa- mília e as convenções reificadas socialmente:

(...) esse tempo é meu e eu faço dele o que eu quero, o que me der na cabeça eu faço, dentro de minhas responsabilidades, é claro! (...) Então eu não cos- tumo trabalhar esse tempo em forma de calendário não, tomo cerveja com meus colegas, moderadamente, mas eu tomo. Vou pra rua, quando tem uma festa à noite, eu vou, se eu tiver a fim. Também eu curto tudo, menos drogas, né? (...) É isso. E às vezes eu resolvo ficar em casa (Grupo Focal nº 02 – rea- lizado em 06 de maio de 2013, relato do professor Daniel).

Em relação à função das práticas de lazer na vida dos indivíduos, Jofre Dumazedier (2004) destaca quatro, dentre outras: A primeira é permitir todas as formas possíveis de ex- pressão individual e coletiva de si e para si, o prazer. Sendo assim, os indivíduos necessitam desligar-se temporariamente da tutela cotidiana das instituições às quais estão ligados pelo nascimento, não para romper, mas para se liberar periodicamente da sua rotina, valorizar tem- porariamente uma individualidade mais liberada. A segunda é proporcionar ao indivíduo mo- mentos de entretenimento, recreação e diversão, ou seja, a evasão da vida cotidiana, da repeti- tividade das atividades obrigatórias do trabalho profissional, da casa, das responsabilidades diárias. Já a terceira é permitir uma maior participação social, com liberdade de escolha, de- sinteressada, do corpo, da sensibilidade e da razão. Por fim, a quarta função é possibilitar a integração voluntária a agrupamentos recreativos, culturais e sociais. Além dessas funções, o autor destaca que os tempos de lazer proporcionam a aprendizagem, aquisição e integração, pois mobilizam uma diversidade de conhecimentos, modelos e valores da cultura, enquanto tempo de fruição.

200 4.2.1. A expectação televisiva

A televisão tem ocupado uma parcela significativa do tempo livre dos indivíduos, atu- almente está presente em 97% dos lares brasileiros31. Mesmo com a inserção da internet no cotidiano dos atores, assistir TV ainda é uma prática de lazer muito usual, muitas vezes ao mesmo tempo em que navegam na internet.

Nos tempos cotidianos, assistir televisão cumpre várias funções, como se observa no relato da professora Janine:

(...) o que eu mais faço no meu “tempo livre”, entre aspas, mas pode colocar

as aspas bem grandes (risos) é assistir TV. Não que eu só goste de assistir TV, não é isso. Eu bem que gostaria de ir ao centro, de ver outras coisas, mas co- mo? Se eu sair, a casa para, o trabalho não rende. Então, a TV, ela me descan- sa, eu não preciso sair de casa, eu ligo ela na sala e continuo fazendo meu tra- balho, seja o da escola ou o doméstico, quando alguma coisa me chama a a- tenção eu paro e olho, depois volto a trabalhar. A gente aprende a trabalhar em casa com a TV ligada. Além disso, a TV é uma companhia, sabia? Às vezes ligo a TV na sala e vou fazer alguma coisa no quarto, dá uma sensação que tem alguém em casa conversando. Estranho, não? (risos) (Entrevista concedi- da pela professora Janine, em 10 de dezembro de 2013).

Para Janine, e por suposto, para milhares de sujeitos, são várias as funções da televisão em suas casas, em suas vidas: descansar sem sair de casa; proporcionar a continuidade do trabalho, uma vez que o aparelho fica ligado na sala, e ela continua a trabalhar, seja com tare- fas da escola ou da casa; informar, pois mesmo trabalhando, quando passa algo que lhe chama a atenção, ela para e ouve e/ou assiste, a depender de em que lugar da casa esteja. Além disso, a professora diz que lhe faz companhia, pois ela tem a sensação de que tem alguém em casa. No entanto, ressalta que ela gosta de outras coisas que são mais difíceis de poder fazer, en- quanto a televisão está ali ao lado, basta apertar um botão.

Esse tipo de interação, na concepção de John Thompson (1995), é a quase-interação mediada, ou seja, um tipo de relação criada pelos meios de comunicação de massa, onde não há uma ligação direta entre os emissores e receptores das mensagens, por isso ele denomina de quase-interação. Segundo o autor, nesse tipo de interação os indivíduos assistem à pro- gramação do seu gosto, ou aquela considerada agradável naquele momento, ou ainda a que lhe chama a atenção por algum aspecto. Discutem, tecem comentários, mesmo que estejam

31Pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Opinião e Estatística - IBOPE, em setembro de 2013, para com-